O estrépito do silêncio

As personagens de Lydia Davis aproximam-se do leitor com uma premência e uma intimidade surpreendentes - o que tem tanto de agradável como de repelente

Quando, pelos anos 1980, o termo dirty realism surgiu na gíria da crítica literária - cortesia de Bill Buford, o então editor da revista Granta - aplicado ao género de narrativas curtas onde se procurava o máximo efeito com o mínimo de floreados, aconteceu uma verdadeira revolução. Raymond Carver (1938-1988), o “Papa” dessa geração que incluía autores como Tobias Wolff, Richard Ford, Cormac McCarthy e Jayne Anne Phillips, repudiava o uso de advérbios, passava ao lado das metáforas e desdenhava o monólogo interior, preferindo focar a atenção em pormenores banais e permitindo que os objectos e o contexto, o chamado “ambiente” - normalmente destroçado pelo desespero avassalador das personagens, empurradas para uma alienação explosiva, mistura de álcool, pobreza e solidão -, conferissem todo o sentido ao desenrolar da história. Este minimalismo formal, esta economia de meios - no caso de Carver, a controvérsia instalar-se-ia depois, quando a sua viúva impôs a edição da versão completa das suas histórias, anteriormente amputadas pelos golpes drásticos do editor Gordon Lish - fizeram escola. E foram adoptados, embora de uma forma bastante singular e radical, por Lydia Davis (n. 1947) cuja obra, desde a década de 80, a Relógio D''Água reúne nesta volumosa edição, Contos Completos.

As histórias estão agrupadas da seguinte forma: Acerto de Contas (1986), Quase sem Memória (1997), Samuel Johnson está Indignado (2001) e Variedades de Perturbação (2007). As datas de publicação revelam a separação por décadas - à excepção da obra de 2001 -, mas é fácil perceber que Davis escreve sempre, compulsivamente, registando as oscilações de tudo o que a rodeia com a precisão de um potentíssimo radar (que é, também, telescópio e microscópio), carregando as frases com um potencial tão explosivo - à beira das lágrimas, do terror, da demência e também do humor, do nonsense e do riso - que a coloca, decididamente, num universo à parte e totalmente singular, como se Tchékhov e David Foster Wallace estivessem a competir dentro da sua cabeça.

Lydia Davis tornou-se conhecida, principalmente, pelas suas aclamadas traduções de Proust - Em Busca do Tempo Perdido: Do Lado de Swann -, um facto que certos críticos apontam como irónico, dada a brevidade de grande parte dos seus contos, que oscilam entre o tempo de uma frase (ou mesmo metade de uma frase) e (raramente) 20 escassas páginas. No entanto, Davis está obviamente contaminada pela narrativa proustiana, uma vez que, mesmo nos registos curtíssimos, encerrados em cápsulas espaciais e temporais - veja-se o conto Samuel Johnson Está Indignado, que reza apenas isto: “por haver tão poucas árvores na Escócia” -, é criado um universo contínuo, uma narrativa fluida que evoca o arco narrativo do escritor francês. O crítico Dan Chiasson, num ensaio sobre Contos Completos, compara-os às notas suspensas de John Cage e às personagens de Samuel Beckett, isoladas e provocantemente alheias à sua relação com a realidade, mas agudamente conscientes dos próprios tumultos interiores.

Em Contos Completos, Lydia Davis acompanha o ritmo da sua própria vida - existe uma ténue e constante referência autobiográfica-, abarcando universos e realidades paralelas: há tarefas domésticas, esforços, apontamentos poéticos, reflexões filosóficas, cenas imobilizadas no tempo, pessoas surdas, senis, distraídas ou muito atentas; há mães, pais, maridos, amantes, filhos, cunhados, criadas, amigas e vizinhos que, só pelo simples facto de existirem, e quando colocados perto uns dos outros, criam a tensão dramática necessária; há muitos animais - gatos, cães, ratos, peixes, baratas, lagartas, moscas (no conto A Mosca, escreve: “Pus aquela palavra na página, mas ela acrescentou um apóstrofo”) -, que surgem em vários lugares como actores de uma estranha diversão num universo simultaneamente familiar e misterioso. Davis não tenta dar explicações, apenas avança com constatações e observações, como as que emite sobre o amor, a leitura, partes do corpo e roupas, o medo e a solidão, o silêncio e a escuridão. As personagens, contaminadas por uma espécie de autismo visionário que as afasta da chamada “normalidade”, aproximam-se do leitor com uma premência e uma intimidade surpreendentes, que têm tanto de agradável como de repelente.

Apesar de Lydia Davis ser conotada com Beckett e Kafka, com os quais partilha o uso de uma devastadora comicidade e de um acutilante absurdo (no conto Kafka Faz o Jantar, imagina-o à espera de Milena, preparando-se nervosamente para a receber), grande parte das suas peças sofre a influência directa de uma educação clássica, de uma prática aturada de leitura e da predilecção pela técnica dos haiku japoneses, aplicando a sua essência, ou seja, os “recortes” (kiru) representados pela justaposição de duas imagens ou ideias com uma palavra de corte (kireji) pelo meio. Davis mostra uma forte aversão pela narrativa convencional e utiliza em seu lugar a brevidade, a concisão - as listas são uma das suas predilecções - e um discurso que se processa essencialmente dentro da cabeça dos intervenientes, embora seja estranho ao ritmo da corrente de consciência. Joyce e Woolf, se a pudessem ler, ficariam certamente perplexos e, quiçá, pouco satisfeitos.

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