Manuel Alberto Vieira: cada palavra existe para fazer a diferença

A compilação de contos “Caderno de Mentiras” é o primeiro livro a ser editado pela Editora Liríope e marca, também, a estreia literária de Manuel Alberto Vieira

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Manuel Alberto Vieira (1979) é tradutor e editor do blogue Kid A. A compilação de contos "Caderno de Mentiras" é o primeiro livro a ser editado pela Editora Liríope (chancela Eucleia) e marca, também, a estreia literária do autor.

Manuel Alberto Vieira depura a prosa até chegar ao indispensável. As frases são purgadas dos excessos, não há espaço para lirismos, e cada palavra existe para fazer a diferença.

A acção é abordada pelo prisma intelectual. É uma prosa essencialmente “cerebral”. A psique do ser humano é captada, de forma surreal, em cada narrativa curta.

A intertextualidade com a prosa de Gonçalo M. Tavares parece evidente. “Água, cão, cavalo, cabeça”, de Gonçalo M. Tavares, partilha a mesma abordagem intelectual, austeridade lexical e rigidez sintáctica.

As 26 histórias conseguem dar grande intensidade ao livro. A tensão é constante. A inverosimilhança causa estranheza e seduz o leitor.

“Para melhor compreender o mundo, experimentou, por um dia, andar ao contrário. (...) Quando, ao final do dia, regressou à posição original, sentiu vertigens e o mundo tornou-se confuso. Tentou recolocar-se sobre as palmas das mãos, mas os braços não deixavam. E como o corpo não mente, aceitou a verdade que este lhe apresentava.”

O corpo conta para o mundo visível, faz parte desse mundo. É dentro desta perspectiva que o autor transporta o mundo para a escrita. A percepção é essencial ao processo criativo. A forma como olha o analisável molda a perspectiva. Assim sendo, o processo criativo e até o social é muito mais do que o espírito; é também um processo mecânico.

O que o escritor português aborda em “Caderno de Mentiras” foi matéria de reflexão por Merleau-Ponty em “O Olho e o Espírito”

“Tudo o que vejo está, por princípio, ao meu alcance, pelo menos ao alcance do meu olhar, edificado sobre o plano do «eu posso». Cada um destes planos está completo. O mundo visível e o dos meus projectos motores são partes totais do mesmo Ser” (Merleau-Ponty)

Manuel Alberto Vieira constrói a sua obra, dividida em 3 partes, explorando diversas posturas “mecânicas” de análise: Vertical, oblíqua, horizontal. É sobre estes pilares que é construída a acção essencial à caracterização emocional das personagens. É através do comportamento activo ou reactivo de cada personagem que o leitor tem a possibilidade de fazer a sua própria avaliação. As personagens são levadas até ao limite. Elas são o que a acção mostra sobre elas.

A tentativa de surpreender constantemente o leitor tem o risco de se tornar repetitiva. Devido a isso, a surpresa pode perder efeito em algumas narrativas menos conseguidas. “Caderno de Mentiras” é a auspiciosa estreia de um escritor que parece ter muito para contar. Os contos “Um compromisso necessário”, “O perigo de espreitar o outro lado”, “Encontro”, ou “Nota Final” pertencem à melhor ficção que foi editada, este ano, neste género literário.

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