Se o fado era uma cantadeira, agora também é uma diva cosmopolita

Com esta voz me visto é uma exposição no Mude e no Museu do Fado que explora a história do fado através da sua indumentária. E pode esconder as raízes do futuro da moda de autor portuguesa.

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Carminho envergou este vestido da criadora Lidija Kolovrat Miguel Rodrigues/Voiture Maximum

Quando Amália cantava o fado, estava de negro. Quando Amália cantava folclore, explodia em cor. Severa, a mítica fundadora, tinha o xaile nos braços e a Mouraria na voz. Depois Paulo Bragança descalçou-se e entrou de grandes lenços e peito nu em palco. Agora, Carminho veste as escamas de Lidija Kolovrat e Mariza faz a ponte entre a tradição e o espectáculo global, com os seus longos Tenente ou João Rôlo.

No dia 27, passa um ano sobre a classificação do fado como património cultural imaterial da humanidade (e o Museu do Fado tem programação especial a começar este fim-de-semana). A sua história atravessa três séculos e a sua imagem, que vem das ruas da classe trabalhadora e foi parar ao Carnegie Hall, também. É ela que, até 31 de Março de 2013, está no Museu do Design e da Moda (Mude) e no Museu do Fado. 

A ideia de olhar para o fado através da sua indumentária partiu do Mude, antes da classificação da Unesco. As peças foram cedidas pelos intérpretes (no masculino, de Paulo Bragança, Rodrigo ou Marceneiro), pelo Museu do Fado, pela Fundação Amália Rodrigues e pelo Museu Nacional do Teatro. "Foi sempre nossa intenção privilegiar o traje de cena, de palco", explica Bárbara Coutinho, directora do Mude, ladeada por um balandrau colorido de Amália e por um figurino usado por Alexandra no teatro de revista.

Ao longe, num dos quatro núcleos da exposição Com esta voz me visto - O Fado e a Moda, co-produção em tempos de crise do Mude e do Museu do Fado, vários xailes nos contemplam: réplicas de peças da Severa, símbolos de um passado mítico. Joaquim Pais de Brito, director do Museu Nacional de Etnologia, escrevia em 1999 no artigo O fado: etnografia na cidade que o fado, na linguagem quotidiana, "é uma realidade plural, fragmentada e descentrada". É uma realidade que já foi dos bairros históricos e do fadista-tipo, descrito por Ramalho Ortigão e citado por Pais de Brito, com a guitarra e o seu "Santo Cristo" - a sua navalha - como ferramenta. Depois, é o fado que se expandiu pela rádio e cinema, com uma imagem cuidadosamente construída, no Estado Novo. Que se tornou espectáculo depois da "reconciliação", como se lhe refere Sara Pereira, directora do Museu do Fado, no pós-25 de Abril, e que apanha boleia do boom da world music e se torna mais cosmopolita. "E esta reconciliação também é acompanhada pela moda", assegura Sara Pereira.

Pensemos nos anos 1980, em que "há uma geração de criadores [de moda] importante que moldou a imagem de nomes como Alexandra, Maria da Fé, Lenita Gentil", explica Sara Pereira, "o Augustus, o Zé Carlos, marcantes na consciência da indústria do entretenimento", continua Bárbara Coutinho. E neste século já XXI a moda "vai ao encontro das vozes da nova geração, adapta-se a elas e promove-as", completa Sara Pereira. Sem se sentirem obrigadas ao revivalismo e com foco na identidade. No trabalho de Cristina Branco com o designer Luís Buchinho, explica a cantora, "sou eu primeiro, o meu conforto, a segurança que preciso para enfrentar o palco", sem esquecer "a "personagem", o mote da história que quero contar".

Amália e ADN
Hoje, na indumentária do fado assinada por criadores como Nuno Baltazar, Filipe Faísca ou Ricardo Preto (cedidos para as exposições pelos corpos que os vestiram, como Cuca Roseta, Mafalda Arnauth ou Kátia Guerreiro), "é possível perceber que, sendo o fado tão plural, se continua a trabalhar sobre algumas matrizes", indica Bárbara Coutinho. E que "se forem mais trabalhadas" - dá o exemplo de Miguel Vieira, que recentemente explorou o fado numa colecção -, poderão "contribuir para que a moda em Portugal encontre o seu ADN". Uma identidade que falta a um país periférico e que pode ter neste trabalho sobre os ícones de algo tão português "um dos seus eixos de investigação", prossegue, salvaguardando: "Não quer dizer que seja uma identidade nacionalista, porque o que resulta também [da imagem contemporânea dos fadistas] é a universalidade do fado".

Entretanto, e por falar em essência portuguesa, houve Amália. Ela é todo um marco geodésico, um post-it temporal, um capítulo próprio. "O branco e o preto são cores lindas, mas o branco não é para o fado. Não há dúvida que o vestido preto com o xaile preto, que eu comecei a usar, deu uma presença mais agradável ao fado", disse Amália, citada nas paredes do museu. Sara Pereira não hesita: "Há claramente um antes e depois de Amália". Tal como na sua obra, "também na imagem opera uma revolução. Amália reabilita a imagem tradicional da fadista", ainda marcada pelo lastro da Severa nas primeiras décadas do século XX, "e dá-nos esta imagem cosmopolita de femme fatale, coquete, internacional, diva, uma estrela", elenca. "E para isso concorre a moda e [as costureiras] Anna Maravilhas, Maria Teresa Mimoso e Ilda Aleixo, a costureira que a acompanhou até ao fim e que criou os modelos que Amália idealizou."

Se o negro de Amália, "intensificando todo o dramatismo associado ao momento do canto, a solenidade, o sentido trágico", como diz Sara Pereira, é um símbolo visível, Anna Maravilhas, Ilda Aleixo e Maria Teresa Mimoso são as heroínas não cantadas da moda portuguesa do século XX. Com esta voz me visto faz também "uma pequena evocação da história da moda em Portugal, com nomes que pouca gente conhece e que nunca tinham entrado nesta casa", nota a directora do Mude, citando as três artífices. "É um universo que é importante conhecer, dos anos 1940/50, das casas de costura, de modistas que abriam no Marquês de Pombal, na Rua Castilho, na Avenida da Liberdade, ruas que ainda hoje estão marcadas pela moda." 

Hoje, então, a moda portuguesa veste um fado internacional, talvez existencialista e não só amargo-português. As peças de performance são de força. Luís Buchinho, que veste Cristina Branco, fala-nos de um trabalho "muito orgânico, muito natural" de escolha de peças das suas colecções para servir "todos os propósitos do palco, de uma forma mais contemporânea, até mais urbana - não é o fado histórico. Porque o fado hoje é interpretado de forma diferente, é uma ideia completamente nova, mais fresca", frisa. 

A palavra fado tem a carga ontológica da portugalidade, mas não é uma obrigação para os fadistas actuais. "Valorizo muito o ser portuguesa, mas defender os valores do meu país passa mais por uma atitude característica de se ser do Sul, além daquilo que digo a quem me veio ouvir", explica Cristina Branco por email. "Não preciso de mais elementos, tive que fazer uma escolha entre contar a minha história, que se entrelaça na do meu país, ou contar a história do fado onde eu própria seria a personagem." 

No final da exposição estão os "modelos que vestem uma fadista, mas que podiam vestir uma qualquer estrela e diva", nota a directora do museu. Correremos o risco de nos perder quando não identificamos de imediato naquele vestido curto o fado? "O fado ali está na voz e no corpo da fadista. Há uma clara vontade de arrojar na imagem, acertadíssima, mas quando a Carminho canta... é fado", sorri Sara Pereira.
 

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