Sonoridades luxuriantes e desafios ao intelecto pela Filarmónica de Berlim

Ouvimos a Filarmónica de Berlim e ficamos deslumbrados com o seu som opulento e inconfundível.

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Simon Rattle realizou uma leitura exemplar, atenta aos mais minuciosos detalhes Fabrizio Bensch/Reuters

Crítica de música
Filarmónica de Berlim
Sir Simon Rattle
Obras de Ligeti, Wagner, Debussy, Ravel e Schumann
Lisboa, Grande Auditório Gulbenkian
23 de Novembro, às 21h
5 estrelas

A Filarmónica de Berlim, dirigida por Sir Simon Rattle, esgotou o Grande Auditório Gulbenkian na passada sexta-feira com um programa magnífico, sobretudo pelo inteligente alinhamento da primeira parte, que colocou em perspectiva as ousadias e os subtis fios condutores que unem algumas das mais fascinantes obras de Ligeti, Wagner, Debussy e Ravel. Tratando-se da mítica e centenária formação alemã — o Rolls Royce das orquestras como alguém já lhe chamou — qualquer programa provocaria certamente uma enchente de público, mas Simon Rattle é conhecido pelos desafios que gosta de colocar aos intérpretes e aos ouvintes e esta proposta não foi excepção.

Ouvimos a Filarmónica de Berlim e ficamos deslumbrados com o seu som opulento e inconfundível, com a sua coesão e perfeição técnica e com as paisagens tímbricas exuberantes que emergem das suas interpretações, mas a sedução não foi apenas sensorial, mas também intelectual. Tocar sem interrupção as Atmosphères, de Ligeti — peça celebrizada junto do grande público devido à sua utilização por Stanley Kubrik na banda sonora de 2001: Odisseia no Espaço — e o Prelúdio do 1.º acto da ópera Lohengrin, de Wagner, fazendo assim a ponte directa entre as micropolifonias e as inusitadas texturas compostas de ínfimos detalhes do compositor húngaro e as resplandecentes sonoridades wagnerianas é de grande clarividência. O resultado foi como uma passagem dos caos à ordem, ou das trevas à luz, com as cordas a produzir um cantabile mágico e luxuriante na peça de Wagner. Mas todos os naipes da orquestra são de nível superlativo. Além da proficiência técnica, as madeiras e os metais revelam também enorme plasticidade e capacidade de colorido.

Textura, movimento, tempo e forma musical são também parâmetros chave na partitura de Jeux, bailado composto por Debussy em 1913, que coloca em cena um rapaz e duas raparigas num jardim ao anoitecer à procura de uma bola de ténis perdida. Simon Rattle realizou uma leitura exemplar, atenta aos mais minuciosos detalhes e em permanente fluxo do movimento, desta inovadora composição, uma das preferidas de Boulez. Seguiu-se a Suite n.º 2, do bailado Daphnis et Chloé, de Ravel, escrito também em 1913. Nesta obra de orquestração sumptuosa, mas igualmente pródiga em efeitos de detalhe e subtis nuances, a Filarmónica teve momentos superlativos no 1.º andamento (Lever du jour), criando uma autêntica pintura sonora e obtendo um controlo absoluto da sua enorme paleta dinâmica e colorística. Na Danse générale final transmitiu uma energia incandescente e a Filarmónica deu mais uma prova de virtuosismo orquestral.

Depois desta audaciosa primeira parte, a Sinfonia n.º 3, Renana, de Schumann, tocada depois do intervalo, soou algo convencional no plano da composição, mas a interpretação foi de novo irrepreensível, mostrando a Filarmónica de Berlim em plena forma e uma abordagem assertiva dos variados contrastes da obra, que entusiasmou o público. Prolongados aplausos saudaram uma prestação que ficará na memória como um momento culminante desta temporada.
 

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