Classes médias espanholas em trânsito

Continuam a comprar casa, em vez de alugar. Saem para beber um copo, menos que antes. Saem também em viagem ou para emigrar. Há novas classes médias espanholas, globais, para quem a ambição já não é ter uma casa, mas ter uma experiência fora do país. A crise vem baralhar isto? Quarta reportagem da série sobre as classes médias

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Javier Arias, professor, músico e compositor, faz parte da geração que comprou casa e ficou em Espanha Lucia Antebi
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Santiago García e Fernando López del Prado planeiam em breve partir para Londres Lucia Antebi
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Silvia Hernández mudou umas 20 vezes de casa: uma mala de viagem com quatro rodas tem enormes vantagens, diz Lucia Antebi
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Elena de Miguel dirige um restaurante onde tem pratos que fazem parte da cozinha das novas classes médias Lucia Antebi
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Luiz Dias Mauriño, arquitecto, na sua casa no centro de Madrid: a cozinha tornou-se quase a sala de estar Lucia Antebi

Madrid fecha para férias em Agosto. Porta sim, porta não as pequenas lojas, vinerias e cervejarias têm um papel a avisar que voltam em Setembro. Os negócios estão em pausa. A temperatura não chega aos 40 graus, mas os toldos em triângulos brancos e azuis que fazem sombra até à Porta do Sol sabem mais do que bem. Nas ruas torra-se. E essa é a razão pela qual a cidade se esvazia no Verão. Tudo foge. Será? Mal a noite cai, as esplanadas enchem-se de gente a partilhar tapas, cervejas, vinho, uns copos. Em Chueca ou Malasaña, bairros no centro histórico, as ruas desembocam em pequenos pátios onde há pessoas a beber em mesas e jovens sentados no chão a comprar cervejas aos vendedores de um mercado paralelo.

As classes médias espanholas são isto: gente que janta fora e vai beber um copo várias vezes por semana. Chueca, Malasaña não são Madrid e Madrid não é Espanha. O facto de as esplanadas estarem cheias não serve de barómetro, serve de termómetro. Em vez de várias vezes por semana, os espanhóis passaram a sair uma ou nenhuma vez por mês, dizem os locais. 

Em Malasaña os prédios estão cuidados e há algo que lembra o Bairro Alto lisboeta, muito pelo ambiente, mistura de popular e trendy. Santiago García e Fernando López del Prado gostam de viver aqui. Vivem num prédio antigo e renovado. A casa, um estúdio transformado em T1, não terá mais de 40 metros quadrados, e a marca são materiais novos - chão, acabamentos, mobília, decoração. Nas paredes espalham-se fotografias das viagens, nas estantes há livros e objectos trazidos de África, onde Fernando foi várias vezes quando trabalhava numa organização não-governamental. Acabou de ser despedido ao fim de nove anos. Meses antes, o marido tinha sido promovido numa empresa de aluguer e leasing a consultor de sistemas de informação europeu. Santiago conta que o despedimento de Fernando foi um sinal de mudança para eles, casados há mais de um ano depois de quase uma década de relação. Estão à espera de saber quanto é que a empresa de Santiago lhe oferece de salário se se mudar para Londres e fizer aquilo que uma grande massa de espanhóis jovens, como em Portugal, está a fazer: emigrar (os números divergem e estarão sub-representados, mas entre 2010 e 2011 os espanhóis residentes no exterior aumentaram em quase 130 mil, segundo o El País). 

Aos 36 anos, ambos querem finalmente experimentar viver fora de Espanha, "evoluir" noutro país, mesmo que isso implique abdicar de alguns hábitos. Para Fernando, desempregado mas com direito a subsídio, é uma oportunidade de procurar uma alternativa, aprender coisas novas, alargar horizontes, talvez estudar, quem sabe descobrir outra vocação. Ele está francamente entusiasmado quando fala da sua vida por vir, sentado numa almofada no chão, t-shirt e calções, pernas cruzadas. Santiago, ainda com a camisa azul e calças de trabalho, sentado no sofá, também: os olhos abrem-se, quando começam a imaginar o futuro em Londres. 

Fernando viveu um ano nos Estados Unidos, em Wisconsin, com uma bolsa dada pela empresa do pai, operário; fez intercâmbios em França, viajou muito em trabalho e sempre gostou de bandeiras. Cursou cooperação internacional, fez a seguir um mestrado. Santiago tirou um curso profissional em administração e finanças, não viveu fora de Espanha. Os dois têm um background social parecido: pais sem curso universitário, trabalhadores da classe média, porque "não passavam dificuldades mas não viviam à larga", aposta na educação dos filhos. E duas famílias que aceitam pacificamente o facto de eles serem homossexuais e de se terem casado, algo que os espanhóis podem fazer desde 2005 e que ajudou a mudar a forma como a sociedade encara as relações gay - mais positivamente no caso dos homens do que no das mulheres, diz Fernando. "[Até aí] continuamos a ser machistas." 

"Hoje não fica bem a ninguém criticar e discriminar os homossexuais, a questão é mais quando é o sobrinho ou o filho", diz Fernando. "Mas se falar com um homossexual de 50 anos - ou fora das grandes cidades - a experiência pode ser muito diferente", diz Fernando, a quem os sobrinhos de Santiago tratam por tio.

A aceitação da orientação sexual de cada um é uma questão de classe? Santiago: "Acho que os homossexuais sempre foram associados à classe média: a ideia de que não têm filhos, podem dedicar muitas horas ao seu trabalho, têm dinheiro, etc." Obviamente que não é por isso que os dois se consideram classe média, um conceito heterogéneo e tão diverso que tanto o inclui a ele, Fernando, como a amiga filha de dois catedráticos, tanto inclui a classe média que gosta das telenovelas como a que vai ao teatro, tanto inclui a que achou que era rica e "europeia de primeira", desatando a comprar casas e engrossando a bolha imobiliária, como a que, como eles, beneficiou do crescimento económico de Espanha a partir dos anos 1980, e muito do boom entre 1997 e 2007 - ou, como lhe chama Santiago, da "orgia económica". "Eu e o Santiago,se queremos ir jantar fora uma vez por mês e gastar 100 euros, vamos." "Mas não somos gastadores, fazemos as coisas com cabeça", acrescenta Santiago. "Vamos de férias aos Estados Unidos, mas ficamos em casa dos pais de uma amiga. Marcamos bilhetes de avião com antecedência para ser mais barato." Fernando diz que gosta de se ver como classe média, sim, "mas ilustrada": "Ou como diz um amigo: burguesia com consciência social!"

Definir as classes médias é dos temas mais controversos em Sociologia (ver revista 2de 5/08), mas um estudo sobre classes sociais, Informe España 2011, mostra que as novas e as velhas classes médias formam metade da população espanhola. As velhas são os pequenos proprietários - no campo têm as suas próprias terras, na cidade os seus pequenos negócios, diz à revista o sociólogo Miguel Requena, um dos autores do estudo e director do Instituto Universitario General Gutiérrez Mellado de Investigación sobre la Paz, la Seguridad y la Defensa. As novas são os profissionais - pessoas com títulos que correspondem à sua actividade profissional, ou seja, um médico só pode exercer medicina, se tiver o curso - ou técnicos, por exemplo, pessoas que trabalham em joalharia ou desenho gráfico, e em termos de formação abaixo dos universitários. Miguel Requena recusa caracterizar as classes médias em termos de ambições e valores, porque isso ninguém sabe - nem sequer a ambição de ter uma casa é factor que a possa distinguir num país em que 90% da população é proprietária do sítio onde vive, defende. Há uma grande fatia jovem nas novas classes médias, mas não se pode contabilizar. Requena dá, no entanto, luzes: "Têm novos tipos de consumo e um consumo superior em cultura, música, livros, cinema e teatro, assim como em gadgetsde tecnologia doméstica."

Falar de classes médias em Espanha é falar também da crise. Com um desemprego jovem que supera os 50% num país onde a percentagem global anda pelos 24%, é natural que jovens de várias classes sociais tenham sido afectados, mas o drama atinge sobretudo a classe trabalhadora, dizem vários peritos. Ao contrário do que tem sido prognosticado com alarme, a classe média não está em risco de desaparecer, considera Requena, porque, se há uma descida nos salários deste estrato social, também ocorre no das classes trabalhadoras e portanto as diferenças relativas entre os grupos mantêm-se. 

Espanha é sobretudo composta por classes médias desde o século XIX, defende à revista 2 Alfonso Ortí, sociólogo jubilado. O que mudou foi o tipo: de classe média patrimonial (a que herdou algum património) Espanha passou sobretudo a ter uma classe média funcional (a que exerce profissões que a classificam como tal). Reconhece um novo grupo, constituído por jovens, e ao qual chama "tecno-cosmopolitas". Partilha com Portugal uma característica - a sobrequalificação: os licenciados dispararam, mas o sistema não tem lugar para tantos. Assim se explica a vaga de emigrantes licenciados nos dois países, de classes médias, porque as classes trabalhadoras, com a mudança da força de trabalho para a China, Índia e Tailândia, já não têm para onde ir na Europa, lembra Requena. 

Estas novas classes médias são grupos mais dependentes dos mercados globais - e portanto mais dependentes da instabilidade, porque os mercados locais eram muito mais estáveis do que agora, observa a socióloga Lina Gavira, da Universidade de Sevilha. Apesar de terem fracos rendimentos, consomem através de estratégias low cost e diferenciam-se das classes médias tradicionais pelo seu maior capital cognitivo: daí estarem muito mais abertos ao mercado global, tanto do ponto de vista de produção como de consumo. Lina Gavira está a falar de uma realidade sobretudo urbana em Espanha, que acontecerá noutras cidades como Lisboa, Londres, Nova Iorque, Berlim... A diferença, diz, é que "em Espanha as regiões são muito diferentes: um professor que viva em Madrid e outro que viva em Badajoz ou Barcelona não tem nem os mesmos custos nem as mesmas oportunidades, e os preços também não são iguais. Há um universo de desejos e expectativas em torno de um imaginário global, mas ele assenta nas condições históricas que são locais - e ambientais", defende.

Sair, viajar, emigrar, ter experiências fora de Espanha será uma ambição das novas classes médias espanholas, mais do que ter uma casa ou um carro, por exemplo? Ou uma questão de idade? As classes médias da geração que hoje está na casa dos 40 anos, pelo menos a madrilena, não saíram nem fizeram disso uma prioridade, diz Javier Arias, 47 anos, músico e professor, e Marisol López de la Villa, 45 anos, economista e desempregada. 

Marisol voltou há pouco tempo do Peru, onde esteve seis meses a desenvolver um trabalho que não correspondeu às suas expectativas. Viveu 15 anos no México, onde fez várias coisas, entre trabalhar na comissão de direitos humanos do governo a trabalhos de direcção em administração pública. Voltou a casa da mãe há sete anos. Pensou: para quê ter duas casas? Por outro lado, se faz voluntariado para outros, por que não ficar ao lado da mãe que precisa? Tem sido, porém, uma experiência desafiante, até pelo seu carácter rebelde, que a levou aos 21 anos a sair de perto da família. 

Marisol escolhe um hotel no bairro do Retiro para nos encontrarmos. É um edifício que tem uns 30 anos, com um hall enorme e uma decoração que parou no tempo, com cadeiras de metal branco, como se fossem de jardim, a destoar num espaço interior. Ela própria o descreve como "feio" e "impessoal", mas "muito cómodo para alguém que foi emigrante". "Um hotel é um sítio de passagem, como um aeroporto", diz entre um golo de cerveja. "Quando se emigra, aprendemos a não nos comprometer com nada, nem com ninguém." 

Sair foi o melhor que fez: ampliou horizontes, deu-lhe experiência, permitiu-lhe ver as classes médias a emergirem "em três anos" num país em desenvolvimento, o México. Mesmo que agora esteja desempregada e o seu currículo não caiba no mercado espanhol - "Não interessa a experiência em países "inferiores"" -, Marisol não parece nem por um minuto arrependida de ter emigrado. Hoje vai fazendo revisão de textos e acupunctura, nada muito estável; podia ir limpar casas, mas não quer. Ser classe média para ela é poder beber uma cerveja ou ter "uma educação que permite seguir em frente", porque "a classe mais baixa não tem os recursos económicos, sociais, culturais". "Já parto de um escalão animicamente e socialmente superior. Não sou uma derrotada, por isso sou classe média - vou continuar a lutar." 

Ela vê a sua história como representativa das novas classes médias actuais, não da sua geração, que não precisou de sair e não valorizava o valor da experiência de viver fora - não conhece pessoas da sua idade com dinheiro que mandem os filhos aprender inglês em Londres, como ela foi, o que lhe parece "fatal". Os novos saem hoje por uma questão de sobrevivência, lembra, mas a experiência será "igual no sentido em que têm de fazer uma vida por conta própria e um esforço para se integrar num país desconhecido". 

Se tivesse uma proposta de trabalho, Javier Arias talvez saísse de Espanha, mas acha triste ver jovens a partir sem nada nas mãos. Acha triste toda a publicidade à volta do fenómeno, com programas de televisão sobre "espanhóis pelo mundo", "madrilenos pelo mundo" a darem o retrato dos casos de sucesso e nunca o dos que "passam dificuldades". Ele é naturalmente pessimista sobre a opção de emigrar, porque as pessoas vão para países que estão em crescimento económico, mas daqui a dez anos estarão iguais à Espanha de hoje "e nessa altura as pessoas têm mais dez anos". Os amigos da sua idade não saíram, os mais novos sim, muitos começaram pelo Erasmus, o programa de intercâmbio europeu, o que permitiu uma abertura maior às línguas estrangeiras - e sim, sair, fazer com que os filhos viajem e vivam fora transformou-se na ambição das novas classes médias.

Professor do ensino secundário desde os 25 anos, este compositor foi, de certa forma, um emigrante dentro de Espanha. Mudou-se da Galiza para Madrid aos 21 anos, ajudado pelos pais, partilhando casa com outras quatro pessoas. Vive na mesma casa no centro de Madrid, perto da Porta del Sol, há 15 anos, mas não nos convida a subir porque o prédio está em obras - e, de facto, ouvimos o barulho das máquinas durante a nossa conversa na esplanada da chocolateria San Gines onde não bebemos chocolate com churros como a maioria dos estrangeiros, mas café, o dele com leite. 

Há um desencanto no humor de Javier Arias, quando fala da sua geração e das classes médias, que descreve como estando muito desiludidas: ele olha à volta e não vê amigos que "se tenham realmente saído bem", olha à volta e não vive melhor do que os pais, apesar de ter um curso universitário, olha à volta e percebe que a ambição dos pais e das classes médias assente na ideia de que, se os filhos trabalhassem, iriam ter êxito não corresponde à realidade. "Há uma fissura na sociedade espanhola, o ascensor social não existe, a não ser no futebol, onde há investimento e vencem os melhores", diz. Mas a ideia das novas classes médias sairem de Espanha traz algo positivo, reconhece num tom sarcástico: "Algo que caracteriza o espanhol é o enorme sentido do ridículo - temos muita vergonha de não saber inglês, de dançar à frente dos estrangeiros. A minha geração é incapaz de estar de forma natural com pessoas de outros países, é um complexo de inferioridade. E não quer que os filhos passem pelo mesmo."

Aos 29 anos, Silvia Hernández já mudou umas 20 vezes de casa, entre elas quando foi viver para Lisboa, há um ano, onde ficou um par de meses. Nasceu nas Canárias, estudou em Barcelona, foi para Berlim durante três meses, vive agora em Madrid. Acabou de se mudar para um apartamento a dez minutos do Museu Rainha Sofia, que partilha com mais duas pessoas, porque o rendimento como web designer freelancenão lhe chega para pagar as contas sozinha. Trabalha regularmente com uma empresa numa situação parecida com a dos falsos recibos verdes em Portugal. 

Silvia queria levar-nos ao centro cultural perto de sua casa, mas o terraço e o bar estão fechados, portanto guia-nos para um café perto de Lavapiés, onde por estes dias há barracas parecidas com as que existem nas cidades portuguesas durante as festas populares. Vê-se uma população diversa nas ruas, social e etnicamente, mas dentro do café, com um estilo art déco, há sobretudo brancos e jovens. O sair de um sítio e começar de novo noutro é natural para ela. Diz como piada que os pais perceberam agora a maravilha que é ter uma mala com quatro rodas em vez de duas. 

Na época dos pais, as classes médias queriam ter uma casa, carro e família. Para a sua geração, importa mais a possibilidade de ter experiências do que ter coisas materiais, afirma. "Para mim e para os meus amigos ter uma casa já não é uma prioridade, estamos mais à procura não tanto de ter isto ou aquilo, mas de viver isto ou aquilo. Ter uma casa já não é uma prioridade - aliás, andamos tanto de um lado para outro que ter uma casa começa a ser um problema. As casas são sítios de passagem e por isso temos que ter o mínimo."

Silvia não tem propriamente poder económico, mas tem aquilo que diz ser típico das classes médias - inquietude intelectual. Consegue, porém, ter acesso a consumos culturais mais baratos, como música, exposições, filmes. Mas tem consciência de uma coisa: beneficiou do investimento que a geração dos pais fez na dela - por exemplo, o pai teve de trabalhar para conseguir estudar, ela não. A sua preocupação não é se vai ter dinheiro para comer, como as classes trabalhadoras, mas antes se vai ou não poder ir ver a exposição X ou viajar até à cidade Y para um tour cultural. A sua preocupação quando convida amigos a ir lá a casa é perguntar se alguém é vegetariano ou tem alguma intolerância alimentar, algo que os pais nunca fariam. 

Se há outra coisa que mudou no estilo de vida das novas classes médias urbanas, foi a comida. Hoje fazem-se pratos de todo o mundo, usam-se ervas e misturam-se sabores que a cozinha tradicional não ousaria. Elena de Miguel, dona de um pequeno restaurante-café no espaço de coworking Utopic-us e de uma empresa de catering virada para a alimentação sustentável e ecológica, lembra que a mãe, cozinheira, passava horas a fazer um prato, cheio de pequenos passos e muito lume. Já ela, só com dois ou três ingredientes baratos, como arroz e umas ervas ou um legume, usa imensos alimentos crus, cereais, frutas, iogurtes, faz pratos com uma enorme paleta de cores e aspecto fresco. É aquilo a que chama "comida optimista", porque não dá sono nem moleza, ao contrário dos tradicionais pratos espanhóis, pesados. Uma salada de frutas com iogurte e cereais seria o prato simbólico das novas classes médias: saudável e energético para dar combustão a dias de trabalho agitados. 

Elena põe na apresentação da salada que nos chega à mesa - pepino e tomate, alface, lentilhas frias, grão, espargos, uvas e manjericão a dar um toque final - a mesma mise en scène que a fez cursar design de moda, área em que esteve a trabalhar durante 20 anos. O espaço, em tons de areia, tem frases pintadas nas paredes com tinta a descascar: "Comer com os olhos não é tão mau." Há uma enorme mesa de madeira claríssima ao centro, cadeiras altas, e muitos objectos que ela trouxe da sua casa e das viagens. Elena vai-nos apontando os objectos que reciclou e transformou noutros, como os candeeiros suspensos com mangueiras. "Aqui não temos fritos, tudo o que fazemos é natural, fresco e processado de forma caseira sem aditivos." 

Comer é ao mesmo tempo um "acto social e muito íntimo", por isso ela quer "desenvolver todos os componentes", até porque se estão a criar cada vez mais "mundos à volta da comida". "A nova classe média espanhola está a experimentar mais. Está mais aberta às influências internacionais. E antigamente quem podia fazer isso era a classe alta, mas a classe média está a adquirir hábitos de classe alta com a procura de produtos mais especiais. As próprias marcas também estão a fazer gamas mais variadas de produtos intermédios. Há também uma inovação muito grande na embalagem, na apresentação gráfica - quando se compra, compra-se também o que se vê. Acho que entrei na altura certa neste sector." 

Foi há ano e meio, primeiro com vários serviços para a área da moda, inclusivamentecatering, e há dois meses com a abertura do restaurante. Juntou-se aos Utopic-us, uma fórmula "sustentável", porque se trabalha de forma autónoma, mas com possibilidade de colaboração com outros trabalhadores independentes. 

O lema desta organização horizontal é dar ênfase à ideia de comunidade. O conceito decoworking nasceu nos Estados Unidos e está em expansão na Europa (Lisboa tem um na LX Factory, na própria Espanha há vários do género). O espaço dos Utopic-us é contíguo ao restaurante de Elena de Miguel. Um enorme open space com dois andares onde se espalham mesas e jovens nos seus computadores, silenciosos. Na cave, há sofás, pequenos recantos para reuniões, objectos de arte nas paredes. Uma vez por mês os fundadores organizam um convívio para estimular o networking entre os sócios, agora mais de 100. 

O fundador Juan Zaballos, 36 anos, dono de dois restaurantes em Madrid e dois no Brasil, explica a ideia: "A força de muitas pessoas consegue atrair projectos que uma pessoa sozinha em casa tem mais dificuldade em realizar. Aqui cada posto de trabalho é uma realidade empresarial. É verdade que o coworking é uma tendência laboral: as grandes empresas perceberam que não faz sentido ter muito pessoal, quando se pode contratar trabalho externo. A tendência mundial é as grandes empresas contratarem serviços externos na figura de freelance, porque o freelance é alguém que é supercomprometido com o que faz, é normal ter formação elevada, tem capacidade de mobilidade e é pouco provável que diga não." 

O modelo de freelance não é totalmente novo e faz parte de uma tendência em algumas áreas. O percurso de Luis Diaz Mauriño, nascido em 1963, é um pouco esse, misturado com o do empreendedor. Colabora há anos com amigos dentro e fora de Espanha. Numa folha branca em cima da mesa enorme na cozinha de sua casa desenha-nos o esquema de trabalho, cheio de linhas e bolas, para mostrar que faz associação com outros arquitectos de acordo com o projecto ou então contrata arquitectos. Acaba de chegar do Porto, onde está a desenhar com um português, Pedro Mendes, um prédio.

A casa, no centro, foi comprada em 2009 e mantida quase intacta, com o seu pé-direito alto, portas e janelas ainda antigas, e uma decoração minimalista, aqui e ali com objectos vintage comprados em Portugal. Na sala não há televisão, mas um projector de filmes; também não há sofá, só cadeiras e poltronas. Numa divisão vêem-se bicicletas penduradas quase junto ao tecto, uma delas da filha de cinco anos. 

Vem de uma família de 11 irmãos, que mostra numa fotografia a preto e branco. Podia ser uma família portuguesa dos anos 1960-70, com os filhos vestidos de igual. Saiu de casa dos pais, enorme, aos 30 anos, depois de trabalhar com o arquitecto espanhol Rafael Moneo, quando se mudou para o Porto, onde esteve dois anos no atelier de Siza Vieira. A vida ia decorrendo "mais ou menos bem", até 2009: entre 2008 e 2012 os seus rendimentos devem ter caído uns 30 a 40%. A arquitectura sofreu com a estagnação da construção civil, área que muito contribui para os actuais índices de desemprego espanhóis, os concursos públicos diminuíram a pique, não há margem para poupar, nem "expectativas de futuro". Há é muita conversa entre amigos sobre trabalho e sobre dinheiro, o que antes não acontecia. "Antes da crise andava-se na rua e achava estranhíssimo que, em poucos meses, os carros mudassem; notava-se também no ambiente, pessoas a comer em sítios caríssimos. Toda a gente falava em comprar e vender casas." Agora tem amigos que fecharam os ateliers, mudaram-se para a Alemanha ou para o Chile, e alunos excelentes que não encontram trabalho nem por nada e emigram para a Suíça ou Alemanha. Luis Diaz Mauriño viaja cada vez menos, compra menos o jornal (poupa 500 euros por ano...), bebe menos café e copos na rua, deixou de jantar fora. A sensação é que "não há futuro". 

Mas afinal, quem são as classes médias espanholas? "É toda a gente", diz. "As roupas, os miúdos são iguais em todo o lado. Vêem as mesmas séries, os mesmos filmes, vestem nas mesmas lojas, no campo e na cidade. Antigamente, quando se viajava pelas aldeias, notava-se muito a diferença. Agora é impossível ver pela forma como as pessoas estão vestidas a que classes pertencem." Diferenças em relação a Portugal? "Nenhuma. É completamente igual."

Esta reportagem foi publicada na Revista 2 a 26 de Agosto de 2012 no âmbito do projecto PÚBLICO +

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