A ferida que não fecha

A suprema evasão ou como vale tudo para evitar o confronto com o que há de mais íntimo em cada um. Goste-se ou não, A Piada Infinita é obra de génio. Leitor, está disposto a entrar neste inferno?

Agora apetece o silêncio. Assim, a quente, não há palavra escrita que não pareça histriónica, redundante, medíocre. A Piada Infinita, no seu efeito imediato, fechada a última página, cala. A sensação de ferida aberta que perpassa todo o livro persiste. Em inglês a palavra é woundedness. Mais do que mágoa. Magoa. Na relação entre livro e leitor, cada nervo foi tocado e agora não resta nada a não ser o vazio do luto e uma experiência que mudou coisas. Leitor, está disposto a esta viagem de 1198 páginas?

Já avisámos: escrevemos a quente sobre um livro originalmente publicado em 1996, considerado umas das obras mais marcantes da literatura contemporânea norte-americana, escrito por um dos seus mais intrigantes e geniais autores, alguém que não suportou andar sempre à procura da resposta para a pergunta “o que é isto de ser humano?”, e que aos 46 anos acabou com a vida, deixando ao lado um romance inédito, The Pale King, publicado no ano passado nos EUA, onde acabaria por vencer o Pulitzer.

A expectativa era alta. A leitora começara pelo fim, ou seja, pela obra publicada postumamente, e ia agora entrar em David Foster Wallace pela primeira vez em português, e logo com aquela que é considerada a sua peça de génio, “a” obra - A Piada Infinita, tradução do original The Infinite Jest, retirado de uma das falas do quinto acto de Hamlet: “I knew him, Horatio; a fellow of infinite jest, of most excellent fancy.” Uma infindável paródia, alucinantemente incómoda e provocadora, sobre a sociedade norte-americana, situada num futuro não muito distante do momento em que Wallace a escrevera, aos 33 anos, após sete anos de uma travessia no deserto, com depressões, internamentos, excessos de droga, álcool, auto-medicação, incapacidade de lidar com muitas das responsabilidades pedidas a um adulto. David Foster Wallace refugiara-se, tanto quando pudera, no ensaio e na cátedra, mas eram insuficientes para quem queria inventar uma nova maneira de fazer literatura. Nada menos.

Nessa realidade paralela ou virtual, A Piada Infinita começa pouco depois do assassínio do presidente Limbaugh. Os EUA fazem parte de uma confederação maior, a ONAN, com o Canadá e o México; parte da Nova Inglaterra é refúgio de um grupo de separatistas do Quebeque. É neste ambiente que encontramos Harold Incandenza, 18 anos, interno desde os sete na Academia de Ténis Enfield, em Massachussets - um sobredotado no desporto, capaz de resultados brilhantes, com um saber enciclopédico, e dependente de marijuana (ou, como escreve o narrador, alguém que “adora apanhar pedradas em segredo, mas um segredo ainda maior é que gosta tanto do secretismo como de ficar pedrado”). Harold é filho de Avril Mondragon, mulher “extremamente alta e nervosa, mas também muitíssimo bonita, elegante, completamente abstémia”, catedrática que em tempos teve contactos com elementos da esquerda separatista quebequense - uma personagem construída um pouco à imagem da mãe do próprio Wallace, implacável com as palavras e as regras da gramática -, e tornada Incandenza através do casamento com James O. Incandenza, fundador da academia, alcoólico, que no último período da sua vida dera cabo do património pessoal e familiar para se dedicar à produção de documentários, tendo acabado com a cabeça a explodir num micro-ondas aos 54 anos. Hal é irmão de Orion, um jogador de futebol americano, e de Mario, o mais novo da família, um pouco retardado. A este núcleo acrescente-se a figura de Don Gately, “um drogado em narcóticos orais (preferia Demerol a Talwin) e um ladrão trepador mais ou menos profissional”, “expoente alegre e implacável da escola do não te irrites-vinga-te”, que vai conquistando um protagonismo cada vez maior à medida que o livro avança, nunca se sabe bem para onde.

Esse é um dos segredos melhor geridos nesta narrativa nada linear. A cronologia é errante e obedece aos valores de uma sociedade que promove a evasão. Com a crise aberta pela morte do presidente Limbaugh, o calendário americano foi vendido à publicidade. Os anos são identificados pelas marcas que os compraram. O ANO DA ROUPA INTERIOR PARA ADULTOS DA MARCA DEPEND, ANO DE GLAD. E o que parece uma paródia é, afinal, uma crítica feroz ao modo como a sociedade sucumbiu ao poderio das marcas e aos meios que as veiculam para promover a tal evasão. Hal Incandenza e Don Gately, nas suas crises de identidade, nos seus vícios, não são mais do que produtos dessa busca incessante de fuga de si que tem no entretenimento - uma das palavras mais repetidas e trabalhadas de todo o livro - o grande objectivo. Não é por acaso que os terroristas separatistas a escolhem como a sua última arma: entreter As verdadeiras substâncias tóxicas são as recreativas. Podem ter nomes de séries, de medicamentos - e há aqui há uma verdadeira enciclopédia (Wallace domina, por experiência, a nomenclatura clínica) -, de estâncias de férias, de agregações. “A experiência americana parece sugerir que as pessoas carecem virtualmente de limites na sua necessidade de se entregarem a vários níveis”, lê-se ainda o livro vai no adro. Uma centenas de páginas à frente, justamente na 900, Hal continua a tentar a evasão, “começa a percorrer mentalmente uma lista alfabética dos sítios bem longínquos onde preferia estar naquele momento”. E o patético na fronteira do maior dos desesperos. “Ainda nem chegou a Adis Abeba quando Kevin Bain aquiesce e começa a pedir, muito baixinho e hesitantemente, ao homem da cara simpática, Jim, que entretanto já pousou o iogurte mas não o ursinho, para vir, por favor, amá-lo e abraçá-lo. E quando Hal se imagina a cair pelas cataratas do Niágara abaixo, na extremidade sudoeste da Concavidade, dentro de um velho e enferrujado bidão de transporte de lixo nocivo, já Kevin Bain pediu a Jim onze vezes, e cada vez mais alto, para vir acarinhá-lo e abraçá-lo, mas em vão. O tipo mais velho limita-se a ficar ali sentado, agarrado ao ursinho com o iogurte na ponta da língua, com uma expressão algures entre o simpático e o vazio.” Parágrafo. “Hal nunca tinha visto uma pessoa a chorar como se estivesse a disparar projécteis.”

Entre as lágrimas e o riso, Wallace gere de forma magistral vários registos de linguagem, do calão de rua à academia, gerando tensão mas também tédio capaz de levar ao bocejo com descrições científicas ou técnicas, alternando o detalhe mais comezinho do quotidiano com experiencias interiores extremadas como o suicídio. Tudo num embrulho cheio de referências literárias, científicas, desportivas - com o ténis em destaque -, sem perder o pé do real, mas de um real sempre muito autocentrado. Não há rótulos para isto. Chamam-lhe pós-pós-modernista, discípulo de Thomas Pynchon, louco, lunático: David Foster Wallace é herdeiro de muitos mas fez a sua síntese. Ele é isso tudo. Mas não é só isso. Conseguiu aquilo a que se propôs: inventar uma fórmula, desafiar a sua resistência e a do leitor. Nem todos estarão para isso, para entrar neste inferno que é a cabeça genial de Wallace. E se entrar não é fácil, mais difícil é sair.

Já agora, a tradução: seria mesquinho apontar defeitos, mas há gralhas de revisão que se podem anotar numa errata. Um trabalho destes merece.

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