A chave do reino agora é do mundo

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Baluarte da Conceição

Atravessou os séculos enclausurando-se em fortificações e este ano viu-as serem declaradas Património da Humanidade. Já não há exércitos em Elvas, mas a reforma pode ser dourada. Neste canto do país que já foi o "fim da linha", as portas da história estão escancaradas para se ensaiar o futuro.

Há um sítio em Elvas onde a poesia tem cores. Ou melhor, os poetas têm cores. Florbela Espanca é ocre como as searas batidas pelo vento; António Botto é azul; José Régio é verde; Fernando Pessoa é vermelho como o sangue, "daqui a dois mil anos ainda nos correrá nas veias". E "Lecas" Dores vive e chora como se fosse Fernando Pessoa. Faz poemas para a mulher e a mulher faz artesanato. Decidiu fazer sacos com os seus poemas bordados; daí a outros poetas foi uma pirueta da imaginação. Joana Leal é uma espécie de instituição em Elvas, nós conhecêmo-la por acaso - noutra instituição da cidade, a Adega da Adélia, ponto de encontro de músicos, sede dos Amigos do Paco Bandeira.

O atelier de Joana Leal, a Casa da Joana, é na porta ao lado e corre o andar superior desta casa solarenga na Rua de Alcamim, eminentemente comercial e a única pedonal. A sua casa a sério é numa das alas e tem uma "sala da poesia", estantes pesadas, carregadas de livros. É no salão que encontramos Lecas, entre folhas coladas nas paredes com versos escritos à mão. "Ar. Que ninguém me dê piedosas intenções." "Poetas somos todos", diz, cigarro na mão. E aqui, em Elvas, com "cada vez menos tertúlias, menos gente, a gente ou se isola e escreve ou dá em doido a falar de sportings". A opção de Lecas é clara e, naquele grande espaço, indisciplinado e confortável, conversa com as muralhas. Está a escrever "Eu e as muralhas da minha cidade".

As muralhas de Elvas estão por estes dias a ser sobrevoadas por balões. São cinquenta, enchem a planície alentejana sem transpor a fronteira com a Extremadura, e lá de cima proporcionam uma vista sobre aquilo que o homem separou. Separou para glória de cada um dos vizinhos ibéricos e a Elvas-Elvas, com Badajoz à vista, que se desenvolveu como contraponto ao inimigo espanhol, envelheceu bem. Está reformada da sua actividade bélica e vive os anos dourados do resto da sua vida como Património da Humanidade. Havia destinos piores para a "chave do reino", como ficou conhecida para a história a cidade.

Foi no dia 30 de Junho que, da Rússia, com amor, chegou a notícia. O maior complexo de fortificações abaluartadas terrestre é declarado Património da Humanidade pela Comissão do Património Mundial da UNESCO, reunida em São Petersburgo. Houve festa sobre festa em Elvas: o Festival Medieval viu o céu tomado por fogo-de-artifício, uma orquestra tomou o palco na Praça da República, houve projecção de panorâmicas da cidade. A Idade Média perdeu rapidamente protagonismo, celebrou-se o turbilhão dos séculos que em Elvas se encontram, se sobrepõem, se misturam e se consubstanciam nesta cidade de fronteira, que já foi de praça de guerra e que agora vive para as suas memórias.

Não significa tal que Elvas não esteja no século XXI e até apostada em ir renovando a sua singularidade no espaço entre Lisboa e Madrid - o seu coliseu, inaugurado em 2006, é exemplo disso: é das poucas estruturas com capacidade para sete mil pessoas e desde 2008 recebe a maior pista de gelo coberta de Portugal, entre Novembro e Janeiro; em mostrar o seu arrojo - o Museu de Arte Contemporânea de Elvas (MACE) é o primeiro do país fora do circuito Lisboa-Porto e o único dedicado apenas a artistas nacionais (está instalado num edifício setecentista, antigo hospital civil, jogando com o aparente paradoxo entre o modernismo das peças e o classicismo do espaço); ou até a viver o ar do tempo e abraçar o antigo inimigo em projectos que derrubam fronteiras - a eurocidade Elvas-Badajoz está no horizonte. Porém, numa região onde a indústria é escassa e os empregos parecem sumir-se, não falta quem veja no seu património, que agora é do mundo, uma oportunidade do futuro. "Creio que foi a melhor prenda que Elvas recebeu", nota António Direitinho, do grupo musical Chumbo Torto, de Vila Boim. A cidade é "madrasta a nível industrial", logo "tem de lutar pelo que é natural, a identidade histórica". "Felizmente, hoje em dia a história vai-se mostrando."

E a história pode ser o futuro, encerrado nas muralhas que sempre marcaram a silhueta de Elvas. Primeiro no século VIII ou IX, com a primeira delas, muçulmana; a segunda, ainda sob domínio árabe, chegou no século XI; a terceira, "fernandina", concluiu-se em 1369 ; a quarta e última, a "seiscentista", resultou numa obra-prima da arquitectura militar e teve uma longa gestação entre os séculos XVII e XIX (o núcleo principal entre 1642 e 1653). Foi na Idade Média que Elvas consolidou a sua vocação como território basilar para a defesa da soberania portuguesa e se estamos aqui hoje foi porque soube adaptar essa sua propensão ao contexto demográfico e histórico. De cada vez que o núcleo urbano crescia, acrescentava-se um pano de muralhas; de cada vez que as formas de guerra evoluíam, as muralhas respondiam ao desafio; de cada vez que a história o exigia, elas cumpriam. E quando o contexto histórico (a Guerra da Independência, no século XVII) e a mudança de paradigma de guerra (com a pirobalística) se aliaram, o padre jesuíta Cosmander foi chamado a colocar em prática os princípios da escola holandesa. A muralha seiscentista (com largura de 25 metros, num perímetro de 3800 metros), os seus complementos e a organização da cidade conseguiram a manutenção da independência nacional e hoje são testemunho de mil anos (ainda que Elvas seja muito mais antiga - a sua fundação datará de 999 a.C.) de evolução da engenharia e do armamento militar. E são do mundo. "Agora há um compromisso com a humanidade. As muralhas alargaram ao mundo inteiro, o que vamos oferecer?", reflecte Roberto Cabral, da associação cultural Gota d"Arte . Por agora, um slogan da autarquia: Elvas promete "momentos fortes, monumentos únicos".

Cruzar os séculos

Na Praça da República, o palco está montado, as cadeiras empilhadas e anuncia-se o espectáculo da noite; os cafés em redor estão em ritmo de sesta, com poucos lugares ocupados nas esplanadas, sempre à sombra; o quiosque está fechado. Não é grande, a praça, ladeada por edifícios brancos com lista amarela (o amarelo militar): a Casa da Cultura (antigos Paços do Concelho) sobressai com a loggia renascentista singela, o Posto de Turismo exibe um alpendre de mármore semi-redondo (lemos que é em forma de carpa, reminiscência da Casa do Peixe, que ali funcionava), um prédio moderno intromete-se na arquitectura tradicional.

A tutelar tudo, a antiga sé (actual Igreja de Nossa Senhora da Assunção), para onde nos viramos com o repicar dos sinos. São cinco da tarde e a escadaria que leva ao adro está à sombra da igreja, do século XVI e estilo gótico em transição manuelina, de rosto petrificado cuja frontaria se ergue maciçamente numa torre sineira que lhe empresta um ar de fortaleza. Estamos em território de antigo episcopado (o paço é agora a sede da PSP) e subimos uma das ruas acompanhando a fachada lateral da sé, passando a casa do Cabido que hoje é o Museu de Arte Sacra. O casario corre do outro lado e o sol só volta a bater-nos desapiedadamente no Largo de Santa Clara, onde nos deparamos com a pequena Igreja das Domínicas, clara inspiração templária, octogonal, o pelourinho manuelino e uma porção da cerca islâmica original, a abrir-se em arco na Porta do Templo (por aqui entraram os cavaleiros templários na conquista definitiva).

A que passamos para continuarmos a subida é romântica, do século XIX - por detrás do gradeamento está a original, que dava acesso à alcáçova. Cruzamo-nos com pouca gente: há silêncios, murmúrios de televisões ou conversas amenas nos degraus de casas nas estreitas ruas de Elvas intramuralhas numa tarde de Verão. São tão estreitas que Carlos Alberto Moedas não pode estar mais satisfeito por morar fora das muralhas há quatro anos. "Não tenho saudades, saía de casa e só via paredes. Agora, tenho ar", diz-nos na Praça D. Sancho II, a estátua do rei da conquista definitiva ao centro.

Aí, estamos fora do centro histórico de Elvas, por onde nos escapulimos pela Porta da Esquina, sob a Capela de Nossa Senhora da Conceição, para nos aproximarmos do grande postal de Elvas, o Aqueduto das Amoreiras: quem vai descendo a colina vê-o como uma centopeia, de várias matizes ocre até desaparecer aos pés do Fortim de São Domingos. Há que reconhecê-lo: mais do que as imagens da cidade abaluartada, cujo desenho - um polígono de 12 lados, com sete baluartes e quatro meios baluartes, um redente, 12 cortinas, três portas e outros complementos externos - só se percebe quando vista do céu, é o aqueduto que se apresenta como incontornável e imediato. Quando atravessa o vale, chega a atingir trinta metros de altura, divido em três andares em arcos - o seu comprimento chega quase aos oito quilómetros; agora até faz parte do sistema viário da cidade extramuros, com quatro das suas arcadas a darem passagem às vias da circular de Elvas. Se a seguirmos avistamos as muralhas que existem na Elvas fora das muralhas: os fortes da Graça e de Santa Luzia; os fortins de São Domingos, São Pedro e São Mamede; a obra coroa. Tudo combinado, são as fortificações de Elvas - o património que a UNESCO distinguiu.

Nesse couraçado seiscentista, o castelo, refundado em 1228, parece quase insignificante. Subimos até lá pela Igreja de Santa Maria de Alcáçova, passamos o cão que suscita o aviso dos vizinhos quanto "às doenças" que carrega e espalha no terreiro onde o castelo se levanta num canto que depois se transforma na Parada do Castelo e corre à altura da muralha (para o outro lado, também empoleirado, um recanto bucólico: o Cemitério dos Ingleses, que faz as vezes de jardim). É pequena, a fortaleza, com laranjeiras no pátio e nesta ocasião é toda nossa - chega um casal, mas, ao aperceber-se do pagamento, opta por não subir aos adarves e torres. Nas nossas costas, fica o casario prisioneiro das muralhas, do lado de fora cresce a nova Elvas, menos ansiosa aqui a norte. Vemos o Forte da Graça e o Paiol de Santa Bárbara, mesmo abaixo de nós, arruinado, é palco de brincadeiras de miúdos - fora o barulho deles, só o vento se escuta. "É a hora da sesta", hão-de dizer-nos. "E ao sábado e domingo isto é como um monte, a não ser que haja excursões." E excursões sempre tiveram: os portugueses continuam a chegar em camionetas; os espanhóis vêm em peregrinação - "têm mais sensibilidade para as questões do património", nota o sargento- mor Álvaro Matroca, nosso guia no Museu Militar. No Posto de Turismo dizem-nos que o Património da Humanidade trouxe muitos turistas japoneses, que vêm com essa distinção na ponta da língua e muita informação para descobrir; este ano trouxe também muitos holandeses e franceses.

Em compasso militar

Vêm ver as muralhas, as fortificações, o centro histórico, onde a placidez do cenário torna difícil vê-lo como palco de grandes batalhas, de pelotões militares a passar, de maquinaria de guerra a desfilar, do pânico da população. Longe vai o tempo da Batalha da Linha de Elvas, o feito épico, de que nos chegaram abundantes descrições e um padrão a assinalar o local; porém, é claro que a natureza militar moldou a forma de Elvas. Afinal, foram muitos séculos com militares aqui estacionados, em alguns períodos a ultrapassar bastante o número de habitantes da cidade. Quando a lei do aboletamento, que obrigava a albergar os soldados nas casas civis, se tornou insuportável, o rei ordenou uma mini-revolução urbanística na cidade: a construção de quartéis. Ainda os vemos hoje, mas já despidos das suas funções primitivas: os da apropriadamente chamada Rua dos Quartéis tornaram-se oficinas-lojas de artesanato, o Quartel do Trem é a Escola Superior Agrária, os Quartéis do Casarão albergam o Museu Militar.

Agora, a presença militar aqui é residual - depois da artilharia, cavalaria e lanceiros terem saído até 1975, a reestruturação do Exército nacional acabou com o Regimento de Infantaria n.º 8 em 2007 e os únicos militares que se vêem são os que trabalham no Museu Militar (ver caixa), inaugurado em 2009; e é aí que vemos as únicas máquinas de guerra - quem não entrar vê alguns exemplares, no terreiro da entrada, entre a cabeceira gótica da Igreja de São Domingos e o portão do museu: um carro de combate e um obus.

A Igreja de São Domingo, que já foi convento e ganhou fachada barroca, é paradigmática dos sacrifícios dos edifícios civis e religiosos, em nome da actividade militar - a parte reservada ao hospício foi demolida para abrir espaço às muralhas seiscentistas (entretanto, o que restou do convento passou a albergar um quartel). Mas ainda sobram muitos exemplares, que atravessam os séculos, da intensa devoção da cidade onde as capelas dos Passos da Via Sacra se atravessam inesperadamente, pequenos recantos entre outros que abundam entre este casario: caminhar em Elvas é uma surpresa feita de pormenores.

Contudo, sendo uma praça-forte numa das mais fortificadas (e mais antigas) fronteiras da Europa, muitos dos edifícios mais representativos da cidade estavam consagrados a actividades militares. E são esses que, sobretudo, sobressaem quando se percorrem as ruas inclinadas de Elvas, pela sua imponência ou singularidade. Estão despojados das suas funções bélicas, ganharam novos usos com os ventos da história e agora fazem parte do tecido mundano da cidade. Por exemplo, o Convento-Hospital Real Militar, que começou a funcionar no século XVII e só deixou o "serviço" em 1976, é, desde 2004, o Hotel São João de Deus (o fosso das muralhas a seus pés é o Jardim das Laranjeiras, cheio das árvores que lhe dão o nome e com bancos em carris, buscando sombra e sol consoante as vontades); a Casa das Barcas, do início do século XVIII, local de construção e armazenamento de barcas durante a Guerra da Sucessão Espanhola, mais tarde prisão, teatro e cinema, e agora mercado municipal; o Paiol de Nossa Senhora da Conceição, que hoje acolhe uma extensão do MACE; o Forte de Santa Luzia é museu que recria o quotidiano das guarnições na praça, material de guerra incluído, para o olhar de público jovem, sobretudo.

Alguns encontram-se encerrados a visitas, outros abandonados - o caso mais flagrante é o Forte da Graça, um dos ex-líbris do património classificado pela UNESCO, que, mais do que abandonado, está a saque. É impressionante, o gigante que se empoleira numa colina a sul do perímetro muralhado, onde se chega por terra batida entre oliveiras e cenário com algo de bíblico: pela beleza e dimensão; pelo estado de decadência acelerado em que entrou. É um labirinto de muralhas, casamatas, guaritas com vista a 360º e a casa do governador a erguer-se como uma ilha, um pináculo que termina em cúpula.

A comissão que atribuiu o estatuto de Património da Humanidade a Elvas não é alheia a tal situação. No seu relatório sublinha a existência de inúmeros edifícios desocupados, sujeitos ao vandalismo e a invasão por vegetação, e dá destaque à especial situação do Forte da Graça, que, estando isolado, é mais vulnerável. Há quem se lembre de ainda lá ter estado estacionado, em serviço; nós vemos garrafas, latas e outro lixo espalhado - os portões estão abertos e dos vigilantes que dizem ter não vemos sinal.

Na cidade, não é segredo o estado do forte e todos apontam o dedo ao Ministério da Defesa, proprietário do espaço. Roberto Cabral acredita mesmo que algum do cepticismo com que a distinção da UNESCO foi recebida na cidade se deve precisamente a essa questão, "à lacuna do Forte da Graça". "Talvez comecem a acreditar mais [na mudança que a classificação pode significar] quando virem o forte recuperado". Também o facto de vermos lixo nas muralhas, em locais de fácil acesso e de passeio de turistas, não é bom sinal. Fernando Charréu, toda a vida vivida dentro da praça-forte, diz que "houve sempre pessoas que atiraram lixo para a muralha". As gerações antigas, diz, que nunca valorizaram o património. "Houve alturas em que eram estrumeiras." Mas isso passa-se cada vez menos, afirma.

Fim da linha

De qualquer forma, considera Roberto Cabral, "as pessoas vêm ver as muralhas mas querem fazer mais". E Elvas "pode dar mais, culturalmente". É uma questão de se juntarem sinergias. Há um ano, Roberto, conhecido como Kikas, fez parte da equipa que fez nascer a associação cultural Gota d"Arte, instalada bem junto ao Forte de Santa Luzia em espaço cedido pela autarquia. Por lá já passaram 130, 140 alunos para aulas de guitarra, canto, bateria, artes plásticas, dança. Não leccionam formalmente, é mais uma espécie de "despertar para as artes e cultura" - que agora tem o bar Art Rock, onde os "alunos" têm oportunidade de actuar. Querem ser um "espaço alternativo ao que se passa no interior", "aos futebóis e ao comércio" que em Elvas são uma cultura própria.

E não falamos do que Joana Leal cultiva no seu atelier-loja - esse é mais a cultura de que Kikas fala. Ela é artesã, sacerdotisa de saberes que acumulou desde miúda, técnicas de rendas e de bordados que correm o risco de perder-se. O ponto "dos esquecidos", o "do anel", o "da cana", são alguns dos que ensina como aprendeu de velhas mestras; brinca com os tecidos no que chama de "trapologia" ("roubada" por todos, essa forma geométrica de encaixar tecidos). No seu espólio há peças que vão dos lenços das sortes a caixas de correio em tecido, toalhas de copeira, camisas de dormir, aventais e trajes tradicionais, de ricos e de pobres. Tem tecidos seculares e tecidos modernos que trabalha de forma tradicional, bordados em papel e tecidos casca de ovo, toucas do século XVIII e o vestido de noiva, "Pureza", que fez com 16 técnicas diferentes de bordados sobre linho e linha e foi premiado em França.

Na verdade, o comércio que faz a fama de Elvas na região é mais prosaico. Pela cidade, há apelos para o comércio tradicional, no centro histórico. E não sabemos se o negócio anda bom ou mau, mas o centro de Elvas é uma espécie de centro comercial. Pelas ruas comerciais, altifalantes debitam música e no Verão há nuvens de água para refrescar enquanto se passam ourivesarias, ópticas, cafés, lojas de artesanato, de recuerdos; os atoalhados continuam a trazer pessoas do outro lado da fronteira diariamente: na Rua da Cadeia, as lojas vendem paños, toallas e têm rebajas. Na rua, está visto, o português fala-se boca a boca com o espanhol.

E a noite traz canções portuguesas de mão dada com espanholas, fado e flamenco, canções do Baixo Alentejo, "castiças e populares", música popular portuguesa e música popular brasileira, música extremenha e mornas. Se numa noite de Verão um viajante em Elvas encontrar a Praça da República deserta (a noite vive-se fora das muralhas, nas zonas do campo de futebol e do coliseu) e escutar um som abafado de música, siga-o. Nós fazemo-lo até ao Café/Pastelaria Primor (mais conhecido por "O Albertino"): à porta tiram-se fotos (emigrantes de visita à terra); lá dentro o espaço pequeno está bem composto - de gente e de minis a circular. No único canto, os músicos, guitarras clássicas e portuguesa, violas, vozes.

Horas antes, uma das Noites de Verão trouxe os Chumbo Torto à praça; agora, o grupo de Vila Boim junta-se aos amigos e improvisam noite fora - não só todos se parecem conhecer (as ironias voam tão afiadas quando as guitarras estão afinadas), mas todos parecem tocar algum instrumento. "Muitos fizeram parte de grupos da terra, há 20, 30 anos." São também um pouco da cultura elvense e é aqui que conhecemos Kikas, guitarra na mão entre as gerações mais velhas. "Este intercâmbio faz parte do nosso modo de estar", afirma. Porque a música aqui é tradição - grupos vêm-se formando desde os anos 1950 e 60, quando "havia contrabando e música, com influência de Badajoz" -, passando de pais para filhos.

Albertino é o anfitrião. Depois de ter sido cozinheiro no famoso El Cristo, aqui na cidade, da Pousada de Estremoz, decidiu "dar a vez a outros". E aqui dá a vez a quem aparecer - nem que isso prolongue o horário e lhe tire tempo de sono (em poucas horas estará de volta). A noite vai adiantada quando Augusto Oliveira decide que é hora de dormir. "Amanhã é dia de trabalho." Chegou a Elvas pela primeira vez em 1968, tinha 15 anos. Veio das Caldas da Rainha e aqui era "o fim da linha, literalmente". Atravessou a linha, que é como quem diz, passou para Espanha a nado e aí ficou 35 anos, fez o serviço militar e tornou-se técnico de pecuária. Voltou em 1996. "Me gusta Elvas, as pessoas são tão calorosas", diz. Não importa portanto que, como nota Kikas, "a localização talvez não seja a melhor". A classificação como Património Mundial é oportunidade para que Elvas "se projecte", mas "tudo dependerá da forma como o faça". "É necessário estudar bem", pondera. Porque ser o fim da linha pode ser o tal princípio do futuro.

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