Manuel António Pina entre amigos

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Ó Pina, joga lá!". São três da manhã e o cenário é um salão de bilhares um tanto ou quanto manhoso, bastante frequentado pela claque do FC Porto. Em torno de uma mesa de snooker, um grupo de amigos começa a impacientar-se. Cada um deles já deu a tacada que lhe competia e estão fartos de esperar por Manuel António Pina, que, de taco na mão, se abstraiu do jogo, o olhar preso a um ecrã de televisão que transmite, àquela hora improvável, o programa Da Beleza e da Consolação, uma série de conversas com filósofos e cientistas. Talvez Pina se tenha deixado hipnotizar pela etóloga Jane Goodall a descrever a cultura dos chimpanzés, ou por Richard Rorty a discorrer sobre o pragmatismo, ou por George Steiner (um dos seus heróis intelectuais) a falar do viajado gato de Céline. Ivo Caldeira, um dos companheiros de snooker, já não consegue precisar quem era, na ocasião, o entrevistado, mas também não tem importância. Evocar esta cena foi o seu modo de nos mostrar, numa só imagem, duas facetas de Pina: a do espírito furiosamente indagador, fascinado pelas grandes interrogações filosóficas, religiosas e científicas, e a do homem que, aos 60 e tal anos (faria 69 depois de amanhã), era capaz de se divertir como um catraio nessas bilharadas nocturnas com os amigos, levando tanto ou mais a sério do que eles a conquista dos delirantes troféus em disputa: objectos bizarros comprados em lojas de chineses, ou então fornecidos pelo pintor José Luís Darocha, um amigo radicado em Paris, que os trazia de França nas suas visitas ao Porto.

Nos seus últimos anos de vida, esse grupo que se reunia com ele numa cervejaria portuense sugestivamente chamada Convívio - só quando esta fechava as portas é que iam acabar a noite ao citado tugúrio de bilharistas - acabou por constituir, entre os muitos e bons amigos que Pina foi fazendo e mantendo ao longo de décadas, uma espécie, digamos assim, de comité permanente. Alguns deles colaboram neste caderno: o encenador João Luiz, que o conheceu quando ambos eram ainda estudantes liceais, recorda os muitos textos que Pina escreveu para serem levados ao palco - uma faceta da sua obra ainda hoje pouco conhecida e estudada -, o escritor Álvaro Magalhães aborda a singularíssima literatura dita "infantil" do autor de O País das Pessoas de Pernas para o Ar, e o ensaísta Sousa Dias evoca o cronista que, de há uns anos para cá, conversava diariamente com os seus leitores na última página do Jornal de Notícias, lembrando que essas breves prosas de circunstância integram, de pleno direito, a sua obra literária. Da poesia de Manuel António Pina fala-nos a ensaísta Rosa Maria Martelo, que compôs com Abel Barros Baptista a dupla portuguesa no júri que lhe atribuiu o prémio Camões. Só depois disso começou a privar mais com Pina, mas chegou a conhecê-lo suficientemente bem para perceber que (e como) os poemas que escrevia rimavam com a pessoa que era.

Todos eles, e ainda outros companheiros de tertúlia, como o seu velho camarada das lides jornalísticas, Germano Silva, ou o arquitecto Guilherme Castro, com quem Pina já acamaradava nos anos loucos do PREC, aceitaram conversar com o autor deste texto para o ajudar a compor o retrato do que Manuel António Pina era no quotidiano, entre os seus amigos. Não se trata, claro, de tentar aceder ao que Pina poderá ter sido em si mesmo, propósito insensato, como ele próprio se fartou de nos explicar em poemas e crónicas, argumentando que aquilo a que por comodidade gramatical chamava "eu" era um composto circunstancial de memórias, e que estas incluíam, no seu caso, os livros que lera e os filmes que vira: da banda desenhada de Will Eisner à Ilíada, dos Bressons e Pasolinis às assustadoras e amadas imagens de A Sombra do Caçador. "Eu seria outro (alguém muito mais desoladamente pobre; e não o saberia) sem A Sombra do Caçador, de Charles Laughton", escreveu numa crónica.

E num poema que termina com uma citação de Pound, escreve: "a minha vida é uma multidão/ onde, não sei quem, em vão procuro/ o meu rosto, pétala dum ramo húmido, escuro". Que alguém a tal ponto consciente da sua irredimível multiplicidade, habitado por tantas vozes, desse a todos os que o conheciam uma tão reconfortante impressão de inteireza talvez n? ?o seja, no fim de contas, um paradoxo.

Cum granum salis

Na mesma mesa da cervejaria Convívio onde tantas vezes partilharam com o amigo conversas, cervejas e bifes laminados, João Luiz é o primeiro a falar. Recua meio século, até à época em que conheceu Pina, quando tinham ambos menos de 20 anos: "Era o tempo das lutas associativas, aí por volta de 1962, e cruzávamo-nos no liceu D. Manuel II, no café Diu, jogávamos bilhar...". Álvaro Magalhães interrompe: "Se já praticavam nessa altura, como é que ainda jogas tão mal?". E de repente parece que Pina está ali, trazido não por uma das muitas evocações expressas que se iriam seguir, mas por este inocente e espontâneo despique entre ambos. Porque era isto que Pina conseguia fazer: pôr uma série de gente crescida, que conhecera em períodos diversos e que abarcava várias gerações, a funcionar entre ela, e com plena naturalidade, num registo que, não podendo ser literalmente o da infância, era algo parecido, da mesma substância.

Pina tratava muitas vezes o amigo por Dinato, aludindo ao papel que João Luiz desempenhara numa representação vicentina em que ambos tinham participado quase meio século antes. Já Álvaro, que só conheceu no início dos anos 80, era o Barito; e este chamava-lhe Nelito para poderem finalmente ser os amigos de infância que não tinham sido.

"A história do bilhar era exactamente como quando éramos putos, explica João Luiz, "era uma brincadeira de miúdos, e portanto era a sério, amuávamos mesmo....". E Álvaro Magalhães acrescenta, confirmando os desconcertantes efeitos dessa espécie de feitiço de infancizar: "Às vezes passávamos a noite a meter moedas numa máquina que havia no salão de bilhar, para nos saírem uns ovos com umas bugigangas lá dentro". E, sem ser preciso que o diga, pressente-se que sabe que não voltarão a fazê-lo.

Manuel António Pina dizia muitas vezes que as crianças estão demasiado próximas da infância para se aperceberem dela. Quem privava de perto com ele também podia esquecer-se facilmente - tão nenhum era o seu esforço para no-lo lembrar - que Pina era um dos nossos grandes poetas vivos, e um autor que virara a literatura infantil portuguesa de pernas para o ar, e o fascinante ficcionista bissexto que nos deixara esse sedutor objecto literário que é Os Papéis de K., e o escritor de crónicas pelas quais perpassava todo o legado cultural da humanidade, do Velho Testamento a Homero, do budismo zen ao ursinho Puff, de Dante a Tintin, conseguia o prodígio de cativar leitores de todos os níveis de instrução.

Álvaro Magalhães acha mesmo que, tendo Pina ficado obviamente satisfeito por receber o prémio Camões, cujo dinheiro lhe deu decerto muito jeito, "havia nele, depois disso, uma nostalgia do tempo em que não era tão consagrado e ainda podia manter aquela patine do poeta pouco conhecido".

Em boa verdade, a sua consagração como poeta já começara no final dos anos 90, quando chegara, ainda pela mão de Hermínio Monteiro, à Assírio & Alvim, onde depois se manteve com os seus amigos Manuel Rosa e Ilda David. Mas a sucessão de entrevistas que deu a jornais e televisões, após ter recebido o prémio Camões, tornou-o uma figura pública a nível nacional, algo que verdadeiramente nunca fora até esse momento. A imagem que dele então terá formado, através dos media, quem não o conhecia, ou só o conhecia de o ler, foi a de uma espécie de sábio afável e bem humorado, um poeta que gostava de gatos e era muito boa pessoa. E Pina era realmente tudo isso. Mas falta o resto, esse granum salis que temperava a sua bondade e que, no caso de Pina, era um grão considerável, feito de humor e ironia e malícia e, ocasionalmente, de cólera.

A abelha e a "obelha"

Como tinha, de facto, pouco tempo, sobretudo nestes anos em que escrevia crónicas diárias, e como raramente conseguia dizer que não a pedidos, encomendas e convites, um dos prazeres perversos de Pina era inventar boas desculpas para se esquivar a alguns desses inúmeros compromissos que passava a vida a aceitar. Inventava problemas de saúde bizarros, além dos que infelizmente tinha, ou desencantava, por exemplo, súbitas e nunca concretizadas ida à Guarda: "Se disseres que tens de ir a Lisboa, ninguém engole, mas à Guarda não se vai sem uma razão de peso", explicava aos amigos. Também usava por vezes a batida justificação do engarrafamento, mas fazia-o com requinte. "Uma noite", conta Álvaro Magalhães, "vínhamos de Coimbra de carro ["de uma grande leitãozada", precisa Sousa Dias] e ele viu que já não ia a tempo de entregar a crónica, de modo que telefonou a avisar e disse que ficara preso num engarrafamento". Mas o que surpreendeu os amigos foi o facto de ter acrescentado que estava numa terra com um nome estranhíssimo. Quando desligou, virou-se para eles e comentou: "Os detalhes são muito importantes". Álvaro diz que Pina cultivava mesmo "uma arte da desculpa" e que quando inventava uma nova que se mostrava prometedora, "ficava eufórico" e insistia com os amigos para que também a experimentassem. E tendo em conta, para usar a expressão de João Luiz, o seu "lado Gaston Lagaffe" (ele próprio adorava contar as suas gaffes mais épicas, mas, infelizmente, nenhuma delas é aqui relatável), não é de excluir que possa ter chegado a sugerir uma dessas desculpas a alguém com quem a usara anteriormente.

Manuel António Pina era também um extraordinário conversador. Ouvi-lo ir saltando de assunto para assunto, segundo associações que obedeciam a uma desconcertante mas rigorosa lógica interna, era um verdadeiro prazer, desde que o interlocutor não acalentasse demasiadas ambições de manter um diálogo convencional. Quando se preparasse para responder a uma observação sobre a poesia de Szymborska, de quem Pina, com a sua incrível memória, acabara porventura de citar uma fiada de versos, já a conversa ia no cinema, e daí podia saltar para a física quântica, e depois para o futebol, e o futebol lembrava-lhe uma tirada da sua empregada Conceição, e como Conceição é uma estrénua defensora dos gatos abandonados e Szymborska tem um belíssimo poema (que Pina aliás traduziu) sobre um gato que fica abandonado num apartamento quando o seu dono morre, havia ali uma aberta em que a coisa podia voltar ao tópico original. Ou não.

Era um homem de uma cultura imensa, mas de interesses e prazeres variados e sem grande paciência para os meios culturais. Sousa Dias gosta de contar a história da ida ao estádio do Leiria, onde o Sporting de Pina disputava a Supertaça com o FC Porto dos seus amigos. Numa área de serviço a meio caminho, Pina insiste em comprar um boné e um cachecol do Sporting, e já os envergava quando o grupo se cruza com um casal amigo, do Porto, muito frequentador de "eventos" culturais. Apesar dos preparos de Pina, a senhora pergunta-lhes se "também vão ver a ópera a Óbidos". Lá explicam que não. No final do jogo de futebol, quando já ninguém se lembrava do encontro com o casal, Pina sugere a Sousa Dias que lhes telefone: "Pergunta-lhes como é que ficou a ópera".

Uma característica que manteve literalmente até ao fim foi o humor. Guilherme Castro conta que, "numa das últimas vezes em que o Pina ainda era o Pina", o amigo Darocha procurava animá-lo, no hospital, contando que fizera uma pintura em que desenhara uma abelhinha e que agora estava preocupado porque já deixara a sua casa de Paris há duas semanas e tinha medo de que a abelha, entretanto, tivesse crescido. Pina retorquiu de imediato: "Então transformou-se numa "obelha"".

A espingarda de Lilian Gish

Lembrar as facetas que Pina reservava para eles, como a de chegar invariavelmente atrasado aos encontros - "telefonava a dizer "já vou a caminho, já vou a caminho", e ia tomar banho, passar por não sei onde, e ainda encontrava alguém, e aparecia duas horas mais depois" - é, claro, o modo que os amigos têm de homenagear a amizade que este lhes tinha. Mas todos eles sabem que Pina era um ser absolutamente fora do comum, alguém que, para citar Álvaro Magalhães, "tocava" as pessoas. E tocava mesmo. O jornalista Alberto Serra, que fez com o realizador Ricardo Espírito Santo, para a RTP, o documentário Um Sítio Onde Pousar a Cabeça, fala de Pina como se este fosse uma espécie de mestre zen: "Já entrevistei muitos escritores, mas nunca na minha vida pensei que, aos 50 e tal anos, ia encontrar uma pessoa que me mudaria interiormente, como ele me mudou". Lembrando que Pina ofereceu e dedicou livros a toda a equipa de rodagem, que os recebeu em casa até altas horas de madrugada e ajudou em tudo o que pôde sem tentar interferir minimamente no trabalho da equipa, Serra conclui: "Acho que ele se estava nas tintas para o documentário, mas felizmente parece que gostou".

Suzana Ralha, que musicou e gravou poemas de Pina ainda nos anos 70 e que com ele fundou depois a associação Os Gambozinos - "os estatutos estavam cheios de gambozinos e piupardos, a partir da sua formação jurídica e poética" -, também não tem dúvidas de que "o Pina foi um poeta especial porque foi uma pessoa especial". E acrescenta que "Gambozinos de todas as gerações sabem isso" e que "cada um o sabe com palavras diferentes".

Mas precisamente pela sua delicadeza e pela sua generosidade, Pina também podia irritar-se a sério se alguma injustiça lhe fazia subir a mostarda ao nariz, e nessas ocasiões não lhe faltava determinação nem coragem física. Duas histórias contadas pelos amigos, ambas passadas no incontornável Convívio, mostram aspectos desse outro Pina que era, afinal, o mesmo. A primeira envolve um antigo director do JN, já falecido, José Saraiva, que era uma personagem algo exuberante. João Luiz diz que, tanto quanto sabe, foi a única vez em que Pina fez uso dos conhecimentos que adquirira numa variante vietnamita do caraté, na qual atingira o cinturão castanho. O episódio conta-se em poucas palavras. Pina, Germano Silva e outros amigos estavam tranquilamente sentados no Convívio quando entra José Saraiva, que, ainda a meio caminho da mesa dos colegas, pára e grita: "Chegou o maior". Infelizmente deteve-se junto a uma mesa próxima, onde um clã familiar discutia ruidosamente e os ânimos estavam já bastante exaltados. "Um dos homens", conta Germano, "levanta-se e interpela o Saraiva: "Você está a olhar para a minha mulher e a dizer que a tem maior?"". E sem esperar pela resposta, passa de imediato a vias de facto. Pina saltou em defesa de Saraiva e, tirando a média a testemunhos ligeiramente discordantes, parece certo que ainda conseguiu aplicar alguns golpes vistosos, mas que, no final, e para usar a sintética expressão de Sousa Dias, "levou um enxerto de porrada". Que aliás, garante Germano, ainda decorria quando Saraiva já desaparecera estrategicamente de cena.

O outro episódio é menos espectacular, mas talvez mais significativo. Uma noite, um amigo que frequentava assiduamente a tertúlia do Convívio dirigiu-se a um empregado daquele restaurante de um modo que Pina considerou sobranceiro e ofensivo. Tratava-se de alguém que conhecia há muito anos, mas não hesitou em cortar relações com ele ali mesmo. Sem se referir a este caso, Álvaro Magalhães já antes dissera: "No Pina, talvez pelas suas raízes rurais e beirãs, o respeito pelos mais humildes era quase uma religião".

O ponto comum destas histórias, e doutras que se poderiam acrescentar, é essa disposição inata de Manuel António Pina para se colocar do lado dos mais fracos e desprotegidos, mesmo quando estes o eram a título circunstancial e um tanto anedótico, como no incidente protagonizado por José Saraiva. Exemplos mais óbvios seriam as crianças, ou os velhos, ou os cães e gatos abandonados.

Rosa Maria Martelo, a quem o poeta ofereceu uma gravação de A Sombra do Caçador, sugere que, nele, "essa convicção de que há sempre uma resposta contra o mal", e de que devemos tomar partido pelos mais frágeis e inocentes, poderia bem ter como imagem arquetípica uma cena do filme de Laughton, que o próprio Pina descreve assim numa crónica: "Lilian Gish protegendo as crianças com a grande espingarda e a sua pequenina voz cantando na noite contra o medo...". Rosa Maria Martelo ficou com a sensação de que Pina queria mesmo que visse o filme, e julga ter percebido o motivo: "Acho que me estava a dar uma espécie de chave, a dizer-me que aquele filme era importante para entender a sua poesia, e para o entender a ele".

Nesse único filme de Laughton, o mal, encarnado em Robert Mitchum, persegue encarniçadamente as duas crianças em cenas exteriores, ao longo de um rio, e quando Lilian Gish surge para as proteger é como se voltassem a ter casa, como se a sua grande espingarda fosse já o telhado de um abrigo. Também na poesia de Pina, e talvez não apenas na poesia, o verdadeiro contrário do mal, da hostilidade, do vazio, foi sempre a casa, uma casa que é ao mesmo tempo a casa da infância - que é ao mesmo tempo a infância - e um sítio onde pousar a cabeça.

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