"Quando cheguei a Paris, não era visto como um francês, mas como um negro"

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Thuram fez 124 jogos pela selecção francesa Foto: Abed Omar Qusini (Reuters)

O futebolista mais internacional da história da selecção francesa é um activista pela igualdade e contra o racismo. Nesta quinta-feira dá uma conferência em Portugal sobre o tema na Gulbenkian

Aos nove anos, os colegas de escola chamavam-lhe o nome de uma vaca negra estúpida de um programa de desenhos animados, e foi aí que Ruddy Lilian Thuram-Ulien se começou a aperceber de que o mundo estava cheio de preconceitos. Foi um defesa polivalente de muitos méritos, com carreira feita no Mónaco, Parma, Juventus e Barcelona, e é, ainda hoje, o futebolista mais internacional da selecção francesa, com 142 jogos pelos bleus, por quem conquistou um Mundial em 1998 e um Europeu em 2000. Mas o seu contributo para o mundo vai mais além do que fez nos relvados. Depois de abandonar o futebol em 2008 devido a problemas cardíacos, Thuram, de 40 anos, criou uma fundação para educar contra o racismo e é nesta condição que estará amanhã, em Lisboa, numa conferência, na Fundação Calouste Gulbenkian. Ao PÚBLICO, o homem que recusou ser o ministro da Diversidade de Sarkozy defendeu que o racismo é uma construção cultural e política. Pouco tempo sobrou para falar de futebol, mas refere-se a Messi como o melhor da sua geração e diz que se sente "um bocadinho português".

PÚBLICO - Quando é que se apercebeu de que existia uma coisa chamada racismo?
LILIAN THURAM Quando cheguei a Paris, com nove anos. Vinha de Guadalupe. Não era visto como francês, mas como um negro. Na televisão, havia uma série de desenhos animados que tinha duas vacas: uma vaca negra muito estúpida, outra branca muito inteligente. Os meus colegas de escola chamavam-me o nome da vaca negra, que se chamava Noiraude. Cheguei a casa, perguntei à minha mãe, "Por que é que a cor negra tem esta conotação negativa?", e ela disse-me que as pessoas são racistas e que isso nunca iria mudar. Essa resposta não era uma boa resposta e, depois, tive a sorte de encontrar pessoas que me ajudaram a compreender que o racismo é uma coisa cultural. Essa hierarquia da cor da pele tem uma longa história. Em 2012, ainda dizemos às crianças, incluindo em Portugal, que foi Cristóvão Colombo que descobriu a América. Eu digo às crianças, imaginem que estão na sala de aula, há alguém que abre a porta e diz, "Descobri-vos". É uma coisa muito, muito velha. O racismo que existe hoje em dia é cultural, e a igualdade sem ligar à cor da pele é uma novidade, é uma ideia jovem. Nos anos 90 ainda existia apartheid na África do Sul, todos os países que lutaram contra o nazismo nos anos 40 aceitaram tranquilamente a segregação na África do Sul porque o que eles sofreram com o nazismo foi a hierarquização das pessoas brancas, a superioridade da raça ariana sobre todas as outras. Acima de tudo, o racismo é uma construção política.

Sofreu por causa do racismo?
Sofri essa experiência que já contei. Depois, compreendi rapidamente o mecanismo do racismo. Por exemplo, joguei futebol em Itália e as pessoas faziam barulhos de macaco. Não sofria com isso porque compreendia o mecanismo, sabia por que é que faziam barulhos de macacos e não de cães. Porque se pensava que o negro era o elo entre o macaco e o homem. E essa noção continua a existir no inconsciente colectivo.

Na sua carreira desportiva assistiu a muitas demonstrações de racismo?
Assisti a muitas pessoalmente quando jogava futebol e, infelizmente, o racismo existe nos estádios. Mas o racismo mais perigoso está na sociedade. O que se passa no futebol é o reflexo da sociedade.

Mas o desporto também pode ser um exemplo de promoção de igualdade...
O desporto permite o encontro das pessoas sem preconceitos. Não existem brancos e negros, há um conjunto de indivíduos. O racismo é limitar as pessoas num grupo, como o que a minha mãe me dizia de que as pessoas são racistas, quando as pessoas dizem que os negros são assim... pressupõem que são todos iguais... Por exemplo, quando era jovem, joguei numa equipa chamada os Portugueses de Fountainebleu. Para muita gente que não conhecia o clube, éramos todos iguais. Eu, quando era jovem, dizia-se "os portuf" que encerrava um preconceito negativo em relação aos portugueses.

A crise económica mundial pode fazer aumentar as manifestações de racismo?
Não será a crise económica a fazer aumentar o racismo, será o discurso político. Se o discurso político seguir o caminho de estigmatizar uma determinada parte da população, sim, as pessoas viram-se contra essa população.

Por que é que decidiu criar esta fundação?
O nosso objectivo é a reflexão sobre os mecanismos do racismo e sobre a história do racismo. Cada um de nós tem preconceitos e esses preconceitos têm origem na história.

Parte do trabalho que faz na fundação é falar com crianças...
Eles dizem que há muitas raças, que são quatro: a branca, a negra, a vermelha e a amarela, e não sabem que somos da mesma espécie. Determinam as raças de acordo com a cor da pele, como faziam os primeiros cientistas. As crianças dizem que as pessoas negras têm melhores capacidades físicas. Como vivemos numa sociedade que separa o corpo e o espírito, pensam que os negros são menos inteligentes. São preconceitos que existem em todo o lado. Penso que em Portugal e Itália existem os mesmos preconceitos, porque partilham da mesma história, com base na hierarquização da cor da pele. A Europa dominou o mundo durante 500 anos e a ideologia impôs-se por todo o mundo. A história que se conta nas escolas é a história das pessoas ricas da sociedade, de poder económico e político. Tome-se o exemplo da escravatura. Diz-se que é o confronto entre pessoas de cores diferentes, mas, na verdade, é uma construção económica e política da exploração do homem pelo homem. É muito importante a educação nestas questões.

A reeleição de Barack Obama como Presidente dos EUA é um bom sinal para o mundo?
Simbolicamente, é uma coisa muito boa. Temos de acabar com os preconceitos e, para isso, precisamos de símbolos. O desporto tem muitos exemplos. Quando se vê equipas com pessoas de origens diferentes, religiões diferentes, etc., muda o imaginário colectivo e isso é extremamente importante.

Nesse sentido, a selecção francesa campeã mundial em 1998, mudou alguma coisa na sociedade francesa.
Claro que sim. Marcou a sociedade francesa e fez com que ela olhasse para si própria de forma diferente.

Na sua opinião, houve algum tipo de regressão durante a presidência de Nicolas Sarkozy?
Durante os seus mandatos, Sarkozy banalizou o discurso racista. Quando se tem um presidente que banaliza o discurso de divisão entre as pessoas, evidentemente que isso se reflecte na sociedade. Mas isso também permitiu a existência de debate, do contraditório. Temos de ter consciência que a igualdade não é uma coisa natural, é uma coisa que se constrói e temos de a construir juntos.

Recusou integrar o Governo de Sarkozy em 2008...
Sim, recusei porque queria aproveitar-se do meu nome.

Custou-lhe acabar a carreira devido a problemas cardíacos?
Esse problema surgiu quando já estava velho. Tinha 36 anos e não foi algo que não me tenha custado muito.

Quando jogou no Barcelona, ainda apanhou Messi em início de carreira.
É um jogador extraordinário. Actualmente, penso que é o jogador mais forte da sua geração.

E Cristiano Ronaldo?
Também digo que é um jogador extraordinário. Não gosto de fazer comparações entre Ronaldo e Messi. São dois jogadores enormes. Temos dois jogadores que conseguem marcar mais de 40 golos por ano. É incrível.

E o França-Portugal do Euro 2000?
Lembro-me da mão de Abel Xavier, de um grande golo do Nuno Gomes que nos deixou a perder 1-0. Tínhamos uma grande equipa na altura. Mas sempre gostei da selecção portuguesa e, como joguei nos Portugueses de Fontainebleu, sinto-me também um bocadinho português.


 
 

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