Willem Dafoe é um rapaz do Midwest escondido no rosto de afáveis vilões

Foto
Dafoe na peça The Life and Death of Marina Abramovic, em 2011 cortesia manchester international festival

Em duas conversas no Lisbon & Estoril Film Festival, Willem Dafoe apresentou-se como o antiactor que persegue um combate contra a ilusão teatral. Uma viagem fascinante com um dos mais complexos rostos do cinema

Houve um tempo que não havia "waiting", não havia essa coisa de "tomorrow", e é daí que vem Willem Dafoe. Nova Iorque, final dos anos 1970. Jazz, performance, poesia, muita liberdade, nem saber quanto pedir num primeiro contrato para um filme e acabar numa floresta das Filipinas, a cem quilómetros de Manila, com seis meses para aprender a fazer "coisas de soldado" num filme sobre o Vietname que se viria a chamar Platoon e a dar-lhe a primeira nomeação para um Óscar. Mas, para lá da fama, dos prémios, nada disto terá que ver com representar e tem tudo que ver com viver. Foi isso que veio dizer, ele, um rapaz do Midwest, que "da cultura tradicional tinha o futebol e a bebida", estava no teatro porque era lá que estavam os seus amigos, a trazer para o palco a poesia que habitava as ruas, a fazer autores que lhes pareciam essenciais e a descobrir que havia mais teatro para lá da psicologia que afectava grande parte do teatro de então. Tudo o que se fazia era uma experiência e, na altura, não havia experiência que não se tivesse.

Começou assim até acabar como rosto marcante de um cinema que dificilmente faria o gosto geral do público e, no entanto, não podia ser mais diversa a plateia do Lisbon & Estoril Film Festival (LEFFest) que acorreu ao Centro de Congressos do Estoril, no sábado ao fim da tarde, e ao cinema Nimas, em Lisboa, no domingo à noite.

"Há filmes que precisam de actores e há filmes que precisam de coisas. Estou confortável nos dois", diz o actor, mais simpático, mais afável do que esperava o público de sábado, ansioso por ver ao vivo quem foi Cristo (The Last Temptation of Christ, Martin Scorcese) e anti-Cristo (Anthichrist, Lars von Trier) - como lembrou o encenador Tiago Rodrigues, que conduziu, e bem, a conversa -, que tem estado nos filmes de Abel Ferrara, como se fosse a mais negra das sombras dos marginais, numa espécie de anti-herói contemporâneo, e nos blockbusters como Homem-Aranha, onde, como Green Goblin, perguntava ao herói se o queria realmente ser.

O que sempre interessou a Dafoe, o que sempre o atraiu, foi outra coisa: "Sempre gostei de estar numa sala a fazer coisas. É essa a diferença entre o teatro e o cinema. No cinema chegamos e despejamos o nosso trabalho e alguém é responsável por ele. No teatro somos responsáveis por tudo do princípio ao fim. E quando nós fazemos coisas, stuff happens."

Para Willem Dafoe, que nunca acreditou que se poderia ver como actor, porque nessa definição não cabia tudo, representar era outra coisa. "Pensei sempre em mim como um bailarino. Se não passar pelo corpo, como pode ser feita alguma coisa?" No filme da sua mulher, Giada Colagrande, que guarda o processo de criação da peça The Life and Death of Marina Abramovic, de Robert Wilson, é o próprio encenador, que desde sempre foi uma inspiração para esse "rapaz de corpo desengonçado, de andar esquisito, de cara cheia, que nunca seria o boy next door", que fala do corpo de Dafoe. "Buster Keaton e Charlie Chaplin o que faziam era dança, e o seu movimento era físico. Dafoe transforma-se completamente e preenche a estrutura do espectáculo." E depois, resumindo: "Ele é a estrutura do espectáculo." E foi sempre assim. Ver Dafoe a ensaiar, de pés descalços e maquilhagem posta, a tentar descobrir uma voz que vá ao encontro das músicas de Antony Hegarthy, é perceber melhor porque é que o actor esteve 26 anos como elemento da companhia Wooster Group num combate pela "anti-ilusão" teatral, seguindo os passos de Richard Foreman e Richard Schechner, figuras de proa da transformação do teatro norte-americano.

Defender a "anti-ilusão" é ser "contra o naturalismo", é gostar de construir personagens mesmo que se procure sempre focar "no momento". Esse momento, conta, surge por causa de um figurino, às vezes de um sotaque, muitas vezes por um impulso. E falou do artificialismo do teatro porque se quis sempre relacionar com "o que se está a ver": "Nunca consegui acreditar num teatro que não mostrasse exactamente aquilo que se está a ver. O teatro é sobre a luz, a imagem, o corpo. Sobre mudar percepções. Não é sobre naturalismo. É sobre representação."

Cristo não fazia nada

O cinema, por seu lado, é sobre outras coisas, e o íman que atraiu Willem Dafoe foi sempre, "quase sempre", o encontro com realizadores que tinham aquilo que se pode traduzir livremente por uma mão segura que consegue guiar os actores a partir de uma ideia. E é por isso que Dafoe fala de coisas e de actores, ou de personagens que são reactivas e outras que são passivas. E o exemplo surpreendente: Cristo. "Ele estava ali, ouvia umas vozes, a personagem não fazia nada, era comandada." Muitas vezes, não terão sido todas as vezes - não foi o caso desse fascinante e repelente Bobby Peru de Um Coração Selvagem (David Lynch, 1990) -, o que lhe foi pedido foi para ser alguma coisa. Outras vezes Dafoe quis ser actor e percebeu que não havia lugar para ele. Quis, conta a título de exemplo, ser um corpo no cinema quase ascético do mexicano Carlos Reygadas (Batalha no Céu, Japão) e ouviu que não havia lugar para si. E isso fê-lo gostar ainda mais do realizador. "Trabalhar com alguém é algo de muito íntimo", diz o actor, que descobriu essa intimidade no teatro, onde todos dependem uns dos outros. "Nos filmes trabalha-se com os primeiros impulsos. Eu sempre gostei de artificialismos. Não creio que seja capaz de articular linguagens e aceitar o que é natural. Quando se trata de trabalhar o que é natural, é a concentração que se perde. É através do artificialismo que se chega a uma verdade mais articulada e profunda." E Dafoe não gosta "de ficar preso à psicologia".

E será por isso que, tantos anos depois, o rosto de um homem que fez personagens que ficaram como exemplo do que pode ser a representação do mal diz que o que importa não é "encontrar uma forma de fazer as coisas de forma cada vez mais difícil" mas, ao contrário, ou melhor dizendo, "estar sempre em busca da mudança".

Hoje, é possível ouvi-lo a dizer poemas do pianista Alfred Brendel às 19h, no Museu Nacional de História Natural, em Lisboa.

Sugerir correcção