O que está numa foto: a definição de um casamento moderno

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A foto que Obama colocou no Twitter

Quem está a abraçar quem naquela fotografia dos Obamas que se tornou viral na noite das eleições? A imagem, tirada de baixo para cima e isolando o casal contra um céu nublado, mostra o Presidente abraçado à sua mulher num comício de campanha em Agosto.

A primeira-dama é vista de costas, envolvida nos braços do Presidente, que tem os olhos fechados. Divulgada pela conta de Twitter do Presidente na noite de terça-feira, pouco tempo depois das cadeias noticiosas declararem Obama o vencedor da eleição, a fotografia foi imediatamente partilhada por centenas de milhares de pessoas, fazendo dela a imagem mais popular na história do Twitter e gerando uma onda de amor através de uma série de programas das redes sociais.

A fotografia tem todos os ingredientes genéricos de uma imagem política de sucesso. Com o seu céu cinzento e temperamental, encapsula o dramatismo que muitos apoiantes do Presidente Obama sentiram na noite de terça-feira: os Obamas sobreviveram à tempestade. A imagem também alimenta o afecto, por vezes quase um culto, que muitos americanos sentem pelo casal.

O facto de se ter multiplicado nas redes sociais normalmente utilizadas para manter o contacto com a família e os amigos, oferecia uma ilusão de intimidade com a família presidencial, como as fotografias das filhas de Obama, Sasha e Malia, ou do cão da família Bo que tanto comovem os mesmos receptores emocionais. Para os democratas, tem ainda uma função alegórica: a ligação amorosa entre Barack e Michelle simboliza uma sociedade saudável. Para os afro-americanos, acrescenta mais uma peça ao repositório de imagens celebratórias do sucesso dos Obamas, por oposição à frequente diabolização das famílias negras supostamente disfuncionais na cultura popular.

Mas a fotografia tem uma notável mensagem latente, muito específica. Ao contrário de muitas imagens de casais políticos, em que o marido reclama a sua mulher num gesto simbolicamente possessivo - tocando-lhe no ombro, levantando a sua mão ou beijando-a -, o abraço entre estas duas pessoas parece mútuo. A primeira-dama é, entre muitas outras coisas, uma mulher alta, famosa pelos seus músculos tonificados, e nesta imagem, o abraço é tanto dela como dele. O Presidente parece precisar deste abraço, parece quase dependente e até vulnerável. Os obrigatórios sinais masculinos de liderança - determinação, auto-suficiência e equanimidade emocional - dissolvem-se, obliterados pela comunhão daquelas duas pessoas perdidas no seu próprio mundo.

É impossível conhecer a realidade por detrás desta imagem, se o Presidente e a primeira-dama estão realmente apaixonados da forma que a fotografia sugere. Talvez esta seja apenas mais uma excelente variação da cuidadosa encenação do amor que é obrigatória para o sucesso político. Mas, independentemente da realidade, é a variação que é significativa. A fotografia sugere fortemente um ideal de mutualidade no casamento, livre das ideias de posse e obediência que ainda vigoram em algumas religiões profundamente tradicionalistas.

Ainda hoje a retórica política mantém o rasto dessas ideias, mantendo-as vivas. É muito comum, entre políticos, dizer que "a minha mulher foi a melhor escolha que já fiz". George W. Bush adorava esta frase, e Mitt Romney recorreu a uma formulação semelhante para o seu discurso de concessão na madrugada de quarta-feira. À primeira vista, o elogio à "cara-metade" dá ideia de ser uma declaração de algum menosprezo ou desvalorização individual. Mas na realidade reforça a ideia de que o casamento é a escolha pelo homem de uma mulher, e do político como um homem que toma decisões. O casamento é sempre descrito como uma acção no presente do indicativo, com o homem como o sujeito da frase.

As cenas do vídeo do comício em Dubuque, Iowa, onde a fotografia foi tirada, revelam vários dos gestos que descrevemos como manifestações tradicionais de amor pelos políticos: o Presidente inclina-se para um beijo, agarra Michelle pelo ombro, caminha de mãos dadas. Mas do espólio (seguramente) de milhares de imagens dos dois juntos, o Presidente escolheu esta fotografia única para o seu Twitter, disseminando uma imagem que não enfatiza nem o poder do homem nem a beleza da mulher. O facto de a imagem se ter tornado viral mostra claramente como ela foi absorvida pelas pessoas, como ela representa um ideal mais moderno de genuína igualdade nas relações emocionais.

E que esta imagem se tenha tornado viral na mesma noite que os eleitores de quatro estados decidiram quebrar o padrão de voto contra o casamento gay e apoiar a igualdade para os casais do mesmo sexo pode não ser inteiramente acidental. Os opositores do casamento de homossexuais muitas vezes falam na necessidade de "definir" o casamento de acordo com os seus moldes tradicionais, e a ansiedade sobre o casamento gay é frequentemente expressa pelo receio mais vasto de que outras normas e categorias de género, há muito vigentes na sociedade, também venham a ser redefinidas. Os autores conservadores produziram livros que condenam a feminização dos machos americanos, descrevendo os homens como uma espécie em risco de extinção.

A fotografia dos Obamas revela uma outra realidade, que poderia ser chamada das possibilidades ilimitadas da verdadeira reciprocidade, de um casamento que desafia as definições mais rígidas. O casamento dos Obamas encanta e atrai tanta gente porque parece tão confortável que ninguém está preocupado com quem usa as calças lá em casa - e essa é a realidade de muitos dos casamentos felizes. Num casamento saudável, os parceiros não interpretam simplesmente os papéis tradicionais do seu género, reproduzindo a trama de obediência e fidelidade: inventam os seus próprios papéis da maneira que melhor serve o interesse de ambos. O casamento é improvisação, e cada caso é um caso único. A variedade abunda, e as pessoas adaptam-se.

Entre as muitas coisas positivas que advêm da maior aceitação do casamento gay pela sociedade está um benefício extraordinário para os homens heterossexuais. Os rigores da masculinidade vão seguramente esbater-se à medida que se enfraquece o medo da homossexualidade, deixando mais espaço para que os homens individualmente definam as suas próprias noções de masculinidade. O facto de esta foto ser tão popular neste momento particular da história indica que ainda vamos analisar as implicações culturais mais vastas desta eleição por muito tempo. Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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