O mestre das memórias de Taiwan

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Hou Hsiao-hsien revolucionou o cinema - asiático e mundial - e a condição de Taiwan no mundo.Desde sexta-feira, o Lisbon & Estoril Film Festival dedica-lhe uma retrospectiva.

Uma retrospectiva com todas as longas-metragens de Hou Hsiao-hsien - faltam apenas os filmes colectivos em que participou, Chacun son Cinéma (2007) e 10+10 (2011) - é um acontecimento raro em qualquer parte do mundo e ainda mais raro em Portugal, onde as cinematografias asiáticas continuam a não ter a atenção que têm noutros países europeus, nomeadamente em França. Ainda assim, o programa do Lisbon & Estoril Film Festival é a segunda retrospectiva de Hou a ter lugar em Lisboa (e desta vez também no Estoril), depois do ciclo que a Culturgest dedicou às suas obras mais emblemáticas em 2007, iniciativa que será replicada em Dezembro com a obra de Edward Yang.

Depois da morte de Yang em 2007, Hou Hsiao-hsien é o mais importante cineasta taiwanês vivo (Tsai Ming-liang, embora sempre associado a Taiwan, é malaio) e um dos mais influentes autores contemporâneos, cujos ecos se descortinam noutros portentos mais jovens, do chinês Jia Zhangke ao japonês Hirokazu Koreeda. Não revolucionou apenas o cinema, mas também a percepção de Taiwan no mundo. A investigadora June Yip afirma, em Envisioning Taiwan, que "de todos os realizadores do Novo Cinema Taiwanês ninguém se tem preocupado mais com a História e a identidade taiwanesas do que Hou".

No entanto, a História que interessa a Hou não é dos grandes acontecimentos, mas a história subjectiva, fragmentária, de experiências múltiplas e de vozes (em várias línguas) à margem. Nas palavras de June Yip, a história, em Hou, não é narrada, é evocada. O hibridismo de Taiwan reflecte-se no seu cinema e o seu cinema torna-se, ele próprio, testemunha do hibridismo de Taiwan, compondo "um retrato da ilha como um espaço social cada vez mais complexo (...), uma formação em contante mudança que está continuamente a ser moldada e remoldada".

Mas o mais emblemático dos realizadores taiwaneses não é natural da ilha Formosa. Nasceu em 1947, na província chinesa de Guangdong, no seio de uma família hakka. Esta mudou-se para Taiwan durante a guerra civil entre nacionalistas e comunistas que ditaria a retirada do governo de Chiang Kai-shek para Taiwan em 1949. Foi uma migração idêntica à de milhares de outras famílias, incluindo a de Edward Yang, que, com Hou, se tornaria um dos expoentes do Novo Cinema Taiwanês. A experiência familiar e as suas memórias de crescimento têm marca indelével na sua obra. The Boys from Fengkuei, de 1983 (5ª, 15, às 19h, Casino Estoril), é uma ficção baseada em elementos autobiográficos e A Time to Live, a Time to Die, de 1985 (dom., 11, às 14h, Monumental), é, assumidamente, inspirado na família de Hou.

Ao contrário de Yang e de outros da sua geração, Hou não estudou fora de Taiwan nem foi um aluno brilhante. Na juventude leu em abundância romances de artes marciais e de detectives, e sua educação cinéfila foi feita nas salas, no exército e, mais tarde, na National Taiwan Academy of Arts. Estranhamente para alguém que viria a notabilizar-se nos festivais de cinema, começou por trabalhar no establishment, onde ganhou experiência técnica e descobriu a importância da interpretação. Começou como assistente de realização, argumentista e depois realizador de comédias românticas. Cute Girl aka Lovable You, de 1980 (4ª, 14, às 14h, Monumental), e Cheerful Wind aka Play While You Play, de 1981 (3ª, 13, 16h30, Monumental), eram veículos para duas estrelas da moda, o cantor de Hong Kong Kenny Bee e a cantora Fong Fei-fei.

Em 1982, The Green, Green Grass of Home (dom., 18, às 19h, Nimas) anunciava já uma mudança, com Hou a desenvolver o seu método de dirigir baseado na improvisação a partir de uma descrição atmosférica. Os planos longos foram a maneira que encontrou de dar "espaço aos actores para respirarem". Mas só daria o salto com The Boys from Fengkuei, filme com que se tornou conhecido fora de Taiwan graças à acção divulgadora de Olivier Assayas, então crítico dos Cahiers du cinéma e realizador - entre outros, de um documentário sobre Hou.

Um cinema novo

Os anos 80 foram cruciais para Taiwan. A marcha para a democratização atingiu uma relevância inédita e a cultura de protesto ganhou momentum. O cinema taiwanês atravessava uma profunda crise, resultante em parte da concorrência de Hong Kong, cuja indústria vivia uma época dourada com a emergência de nomes como Tsui Hark ou Ann Hui. Em Taiwan, jovens intelectuais, como a crítica de cinema Peggy Chiao ou o escritor Wu Nien-jen, reuniam-se para discutir cinema e literatura. Terá sido num destes encontros que Chiao, sentindo Hou perdido, lhe emprestou a autobiografia do escritor chinês Shen Congwen, que dizia observar a vida com um sentimento de artista e não de moralista. Shen viria a ser uma das grandes inspirações de Hou.

Beneficiando da abolição da regra da revisão dos argumentos pelo Government Information Office - na prática uma instância de censura -, bem como de incentivos à produção de baixo orçamento, o Novo Cinema Taiwanês nascia oficialmente em 1982 com o filme colectivo In Our Time. Seguiu-se, em 1983, Growing Up, de Chen Kunhou, com argumento de Hou, provando que a experiência de In Our Time não fora um acto isolado. Nesse mesmo ano, Hou assinava o segmento que deu o título ao filme colectivo The Sandwich Man aka Son's Big Doll (dom., 18, às 16h, Casino Estoril), onde a preocupação meticulosa com a exactidão linguística que marcaria a sua obra se fazia já sentir.

Indo contra o uso habitual do mandarim nos filmes produzidos em Taiwan com o aval do regime, Hou punha as suas personagens a falarem nos dialectos locais usados por boa parte da população, nomeadamente o que se chama "taiwanês", uma variação do dialecto Mi Nan falado nas regiões da China de onde vieram parte dos migrantes que se estabeleceram em Taiwan entre os séculos XVII e XIX. A "polifonia de vozes" que referia Bérénice Reynaud numa análise de A City of Sadness (3ª, 13, às 18h30, Monumental), tornou-se uma marca do cinema de Hou e parte relevante da exploração da identidade taiwanesa nos seus filmes.

Dust in the Wind, de 1986 (hoje, às 0h, Monumental), City of Sadness, de 1989, e Good Men, Good Women, de 1995 (4ª, 14, às 21h30, Casino Estoril) incluem, todos, cenas-chave em que a incompreensão linguística é evidente entre personagens nascidas em Taiwan e figuras da China continental. A multiplicidade de línguas nos filmes de Hou, mais do que episódicos mal-entendidos, reflecte essencialmente as diferentes experiências histórico-sociais de Taiwan. Assim, taiwanês, mandarim, hakka, japonês e inglês - todos têm lugar porque todos fazem parte do que é Taiwan.

Embora protagonista de um "cinema novo", Hou nunca deixou de fazer referências à tradição que o precedeu, e nomeadamente ao "realismo saudável" que marcou parte da produção taiwanesa nos anos 60, combinando ideias do neo-realismo italiano com propaganda do regime. Duas obras emblemáticas do género, Oyster Girl (1964) e Beautiful Duckling (1965), aparecem, respectivamente, em The Sandwich Man e em Dust in the Wind. Mais que uma homenagem a esses filmes, Hou presta tributo ao cinema de outrora enquanto espaço, físico e emocional.

A Summer at Grandpa's, de 1984 (amanhã, 14h15, Monumental), embora aparentemente distinto de The Boys from Fengkuei - centrado no campo, enquanto o primeiro se desenrola na cidade -, confirma a ideia de "memória", neste caso da infância, que será também o grande traço de A Time to Live, a Time to Die (dom., 11, às 14h, Monumental), onde Hou filma recordações do seu crescimento e da sua família, profundamente marcada pelas lembranças do que ficou para trás - a China continental que a avó julgava a curta distância. Era, porém, em Taiwan, a casa "temporária", que a vida realmente acontecia - Taiwan que se tornara o verdadeiro lar de Hou.

A Time to Live, a Time to Die é também o filme que reúne, pela primeira vez, três colaboradores habituais de Hou: Liao Ching-sung, responsável pela montagem; Tu Du-che, técnico de som; e Mark Lee Ping-bin, director de fotografia, figuras incontornáveis do cinema de Taiwan (e não só) nas décadas seguintes.

1986 seria depois um ano-charneira no Novo Cinema Taiwanês, declarado findo um ano depois. Edward Yang realizava The Terrorizers, Hou realizava Dust in the Wind: o primeiro aludindo à entropia citadina do presente e o segundo fazendo subtis referências ao poder transformador da cidade no passado, sem anular a importância do meio rural. Yang centra-se em personagens sem memória mas agarradas às suas visões; o filme de Hou é a própria visão, a memória pessoal em curso. O filme de Yang é frio a olhar o presente; o de Hou olha o passado com serenidade. Ambos são indissociáveis de uma certa ideia de Taiwan.

No ano seguinte, 1987, Hou filmava o mais estranho dos seus filmes, Daughter of the Nile (4ª, 14, às 18h30, Casino Estoril), que ainda ecoa o seu início de carreira mas se pode ver também como um antepassado do retrato da juventude urbana que aprimoraria em Millennium Mambo 5ª, 15, às 16h30, Monumental).

História e identidade

Desde 1983 que Hou é presença recorrente nos palmarés dos festivais, mas o grande feito internacional viria com A City of Sadness, Leão de Ouro no Festival de Veneza - foi o primeiro filme taiwanês a obter tamanha distinção. Que isto tenha sido alcançado apesar do problemático estatuto internacional de Taiwan - não terá sido sequer permitido que a bandeira da República da China (ROC/Taiwan) fosse hasteada - é a prova de que o cinema da ilha se tornara um dos instrumentos mais evidentes da sua identidade específica.

Curiosamente, A City of Sadness era para ter sido produzido pela Golden Harvest, icónica produtora de Hong Kong, que queria que o filme girasse em torno de uma família de gangsters de Macau. Hou recusou, e o filme foi financiado por outros investidores, transformando-se num baluarte da representação de Taiwan no cinema.

O cineasta iniciava a sua "trilogia de Taiwan" com um filme revolucionário. O estilo que aprofundara nos anos anteriores atingia aqui excelência máxima: os planos fixos de longa duração, som directo, polifonia linguística, o histórico através do familiar. Mas o filme ficaria sobretudo conhecido por ser o primeiro a abordar abertamente os traumas do "Incidente 2-28", que em 1947 desencadeou um período de forte repressão por parte do governo nacionalista chinês, a quem fora entregue a administração da ilha após a capitulação do Japão em 1945. O tema fora tabu durante anos, e o filme de Hou é o reflexo do levantamento da lei marcial em 1987, que permitiu aos taiwaneses discutirem, pela primeira vez, o seu passado recente. Em Representing Atrocity in Taiwan, Sylvia Li-chun Lin refere que "nenhum filme na história do cinema taiwanês teve tantos acólitos ou tantos críticos como A City of Sadness", que "apesar da controvérsia permanece um marco na busca de Taiwan pelo seu passado, por muito fragmentário que ele seja".

Acompanhando quatro irmãos desde a derrota do Japão em 1945 até à retirada do governo nacionalista em 1949, A City of Sadness retratava os caminhos seguidos pelos taiwaneses e a tristeza dos seus destinos, inseparáveis das vicissitudes históricas. E fazia-o de forma inédita porque, ao invés de representar convencionalmente os acontecimentos históricos, os dava a ver a partir da crónica de uma família - negócios, amores, doenças, nascimentos e mortes, encontros e despedidas. A atenção particular ao meio primordial de transmissão histórica - a palavra, falada mas sobretudo escrita, em cartas ou intertítulos - atesta a relação profunda entre o visual e o verbal na obra de Hou. Como James Udden observa em No Man an Island - The Cinema of Hou Hsiao-hsien, "em vez de representar ‘objectivamente' os eventos históricos como eles aconteceram, Hou filtra-os através das subjectividades das personagens individuais, relevando como todo o conhecimento histórico é mediado através de actos humanos de narração".

A City of Sadness foi um sucesso de bilheteira assinalável em Taiwan, o maior da carreira de Hou, mas não seria o seu único filme a explorar os traumas do passado taiwanês. The Puppetmaster (sáb., 17, às 0h15, Monumental; dom., 18, às 19h, Casino Estoril) termina onde A City of Sadness começa: com a retirada da administração japonesa de Taiwan, que fora uma colónia do Japão desde 1895. Hou aborda a experiência desses 50 anos de ocupação através de Li Tien-lu, veterano mestre de marionetas de luva (budaixi) que começara a carreira sob o domínio japonês. Li colaborara com Hou desde Dust in the Wind, interpretando figuras de anciãos. The Puppetmaster leva a uma nova dimensão o hibridismo de alguns filmes de Hou, com elementos aparentemente documentais (Li narrando a sua vida) acompanhados de uma óbvia ficcionalização do real (a dramatização das suas memórias).

O último filme da trilogia marca já um ponto de viragem. Good Men, Good Women, de 1995 (4ª, 14, às 21h30, Casino Estoril) tem uma estrutura tripartida, alternando cor e preto-e-branco nas cenas da vida de uma actriz encarregue de interpretar Chiang bi-yu, uma mulher de Taiwan que fora membro da resistência anti-japonesa e acabou vítima das perseguições anticomunistas do "Terror Branco" que ensombraram a ilha nos anos 1950. Hou joga uma vez mais com as ilusões da memória e o peso do trauma na construção da identidade taiwanesa, mas o paralelo entre passado e presente é mais notório do que nunca - algo a que Hou voltaria dez anos mais tarde em Três Tempos (3ª, 13, às 18h, Casino Estoril).

Good Men, Good Women marca ainda outra mudança. Sem abandonar os planos de longa duração, Hou vai usando cada vez mais movimentos de câmara. O plano fixo deixa de ser omnipresente como imagem de marca. Afinal, ele também gira.

Ontem como hoje

Depois de Good Men, Good Women, Hou faz um filme centrado no presente. Goodbye South, Goodbye, de 1996 (5ª, 15, às 22h, Casino Estoril) terá sido uma tentativa de voltar à liberdade de The Boys from Fengkuei. Mas há um olhar experimentado, que já não é o idealismo de um principiante, por trás deste road movie em que a corrupção é o ar que se respira. Hou, o mestre das memórias, sabia que o passado já não se repete. Mas antes de realizar o que seria a sequência lógica de Goodbye South, Goodbye, o mergulho no mundo alucinado dos jovens filhos da noite no fin-de-siècle de Millennium Mambo (2001), faria o mais profundo retrocesso cronológico com Flowers of Shanghai, em 1998 (5ª, 15, às 14h, Monumental).

Pela primeira vez, um filme de Hou não tinha Taiwan como cenário, algo que muitos viram como uma traição. Na verdade, porém, a Xangai oitocentista das "casas de flores" (bordéis de luxo) e dos seus frequentadores foi filmada não na China continental mas em Taiwan. A obsessão linguística de Hou teve de ser matizada, mas não foi esquecida: o dialecto wu da obra original foi substituído por uma variante moderna do dialecto de Xangai, mais fácil de aprender pelos actores (quem não o conseguiu falar foi dobrado). Mas a aparente verosimilhança do detalhe histórico só mascara a verdadeira natureza de Flowers of Shanghai: não repete o passado, recria-o no presente. Não filma a China, mas a memória de uma China, ecos de uma matriz cultural que, apesar de muito contestada, faz parte do que Taiwan também é.

No século XXI vimos Hou mais atento a uma contemporaneidade em mudança - preocupado com a juventude de hoje, a filmar no estrangeiro. Se em Millennium Mambo já se saía de Taiwan, a fuga seria total em Café Lumière, de 2003, e em O Voo do Balão Vermelho, de 2007 (3ª, 13, às 21h30, Casino Estoril). O primeiro foi rodado totalmente no Japão com actores japoneses, a convite da produtora de Yasujiro Ozu. De certo modo, foi também a grande homenagem de Hou ao mestre japonês (já houvera outras mais discretas como a televisão que passa Primavera Tardia em Good Men, Good Women) com o qual tem sido comparado e de quem diz invejar a capacidade de captar o presente. O segundo foi encomendado pelo Musée d'Orsay, filmado em Paris e protagonizado por Juliette Binoche. No entanto, os ecos das memórias de Taiwan são perceptíveis em ambos, seja no compositor procurado em Café Lumière ou nas marionetas de luva que o filho de Li Tien-lu manipula em O Voo do Balão Vermelho.

Entre as suas duas incursões estrangeiras, Hou realizou aquela que pode ser considerada a obra-prima de síntese, onde as memórias que revisita são tanto as de Taiwan de ontem e de hoje como as do seu próprio cinema. Três Tempos cruza três segmentos - um passado em 1966, outro em 1911 e outro em 2005 -, todos centrados na relação entre dois amantes, interpretados por Shu Qi e Chang Chen (o menino revelado por A Brighter Summer Day, de Edward Yang, hoje uma das grandes estrelas do cinema da "Grande China"). Até a ordem dos segmentos replica a da filmografia de Hou desde o Novo Cinema Taiwanês: primeiro os anos de desenvolvimento económico, depois o passado histórico e, por fim, a juventude contemporânea. Os paralelos com outros filmes são evidentes: Um Tempo de Amor remete para The Boys from Fengkuei ou Dust in the Wind; Um Tempo de Liberdade para Flowers of Shanghai e os seus intertítulos para A City of Sadness; Um Tempo de Juventude é herdeiro de Millennium Mambo, até na protagonista.

Com Três Tempos Hou recria Taiwan e recria-se a si próprio, através dos temas que se tornaram indissociáveis da sua obra: juventude, história, presente, quotidiano, comunicação, e, acima de todos, a experiência taiwanesa. Foi a última longa-metragem até à data que Hou Hsiao-hsien filmou em Taiwan e sobre Taiwan.

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