Os operários do Vale do Ave voltam a temer pelo pão

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O investigador Francisco Neves, ao centro, ladeado por Alberto Sousa, à esquerda, e António Ribeiro, à direita Adriano Miranda

"Há uma frase constantemente presente no diálogo das pessoas daqui", conta Alberto Sousa. "Dizem: se tivermos que comer só caldo, vamos comer, porque já fomos habituados a isso. Mas para os nossos filhos e netos, vai ser muito difícil". Este antigo trabalhador têxtil da vila de Pevidém, às portas de Guimarães e um dos núcleos centrais do Vale do Ave industrial, passou ali a vida inteira. Soube o que foram os tempos de fome nesta região, que se estende aos concelhos vizinhos como Santo Tirso e Famalicão, ou o menos industrializado Fafe. Por ali vê-se a crise a tirar aos operários a capacidade que tiveram de melhorar as vidas nas últimas décadas.

Como ele, muitos outros antigos operários temem pelo que aí vem. Não falta quem faça paralelismos entre o momento por que hoje passam e outras épocas históricas de crise no Vale do Ave. "Isto é uma frase frequentíssima aqui em Pevidém", garante Sousa.

O investigador do Instituto Paulo Freire em Portugal, Francisco Neves, reforça: "Para muitas pessoas, esta ligação é real". Chegou a Pevidém há quase dois anos para estudar a Marcha da Fome, uma manifestação ali ocorrida em 1940, no tempo em que o Estado Novo e a II Guerra Mundial impuseram o racionamento e um período de escassez alimentar, mas acabou por descobrir paralelismos com a crise de hoje.

"Comam caldo"

"Há uma aproximação ao momento actual. As pessoas sentem a crise e falam muito nesse movimento do passado como um exemplo do que poderão ter que voltar a fazer", sustenta o académico. Também por isso, ao livro que apresentou ontem, baseado no trabalho de investigação sobre a Marcha da Fome, acrescentou um subtítulo revelador "Memórias de um passado na inquietude do agora".


Por ali lembra-se o tempo em que as crianças pediam aos pais uma côdea de pão e a resposta era quase sempre "Comam caldo". O pão era caro e, acima de tudo, escasso. Essa referência já tinha sido feita num volume anterior de uma colecção que o Instituto Paulo Freire está a fazer para a Guimarães 2012, mas é aqui enfatizada, porque a época da Marcha da Fome de Pevidém coincide com o maior período de escassez na região.

Desde então, a vida dos operários de Pevidém e do vale do Ave melhorou muito, mesmo que a indústria têxtil tenha passado por crises sucessivas desde os anos 1980. Mas hoje "há uma regressão muito acentuada" das condições em que as famílias se encontram, avalia António Ribeiro, antigo dirigente sindical e uma das pessoas que foi entrevistada para a realização do livro.

Apesar dos paralelismos que os operários e antigos operários da têxtil traçam entre a fome na época da II Guerra e o que acontece hoje, Francisco Neves é cuidadoso. O investigador estabelece por isso diferenças, mesmo as mais óbvias. "Em termos simbólicos" a população do coração da indústria têxtil no Norte do país pode fazer esse paralelismo, mas o contexto é hoje completamente diferente, sublinha. Desde logo porque a Europa não passa por uma guerra convencional nem o país vive debaixo de uma ditadura.

À portas das padarias

Na época de fome em que aconteceu a marcha, o salário de um operário era de 3 escudos e 50 centavos (cerca de 1,75 cêntimos de euro). Além do curto vencimento, os trabalhadores da indústria tinham ainda que viver com o racionamento imposto pelo governo. Esse facto levava as pessoas a passarem noites inteiras à portas das padarias à espera de comprar o pão que não chegava para todos. Algo que acontecia com frequência.


O irmão de Alberto Sousa - hoje demasiado doente para poder ser entrevistado - esteve em várias dessas filas. A fome continuada levou a que, quase uma década depois, três elementos da família tenham tido tuberculose e vários outros problemas de saúde. Manuel Sousa foi também uma das crianças que, com dez anos de idade, encabeçava a marcha que saiu de Pevidém em direcção à cidade de Guimarães, exigindo pão. A este protesto, foram-se juntando ao longo do caminho mais trabalhadores da indústria têxtil, vindos de Riba D"Ave, Campelos ou Serzedelo, localidades vizinhas com os mesmos problemas.

Estávamos em 8 de Maio de 1944 e o destino final da marcha era a Câmara de Guimarães, onde chegaram perto de 2000 pessoas, segundo os relatos recolhidos para o livro. Os investigadores tiveram dificuldades em encontrar relatos da marcha. Por isso, a investigação baseia-se sobretudo em testemunhos. Nos jornais locais, apenas havia referências as protestos no Sul do país promovidos por "desordeiros comunizantes", recorda Francisco Neves. Sobre Guimarães, nem uma palavra. O único artigo da época surge no então clandestino "Avante", em que se refere o protesto como parte das lutas de 8 e 9 de Maio, que tiveram reflexos noutros pontos do país como Alhandra, Póvoa de Santa Iria ou Sacavém e, no Norte, em Pevidém. "Percebe-se assim que foi um protesto organizado a nível nacional pelo PCP", descreve Francisco Neves.

António Ribeiro tinha apenas 6 anos nessa altura, mas nos anos seguintes tornou-se dirigente do partido na clandestinidade. Cruzou-se com alguns dos trabalhadores que integraram o protesto de 1940 e confirmou a importância do PCP no protesto. Foi assim também que descobriu que a mobilização devia também ter chegado aos operários das empresas industriais que então existiam no centro de Guimarães. Mas, na cidade, a operação falhou e apenas os homens e mulheres de Pevidém chegaram à Câmara, onde mostraram a razão do seu protesto: "Temos fome, não podemos trabalhar".

Ano e meio de investigação

O livro que no sábado foi apresentado é o resultado de mais de um ano e meio de investigação e de dezenas de entrevistas na freguesia. Com poucas fontes documentais às quais recorrer para fazer este trabalho, os investigadores do Instituto Paulo Freire de Portugal foram conhecer as recordações de quem viveu o protestos e de familiares de antigos operários que também participaram na marcha.


Para o estudo foram ouvidos três participantes no protesto ainda sobreviventes - dois dos quais entretanto falecidos -, bem como outros operários e antigos operários do têxtil naquela freguesia, que guardavam na família histórias desse tempo. "As pessoas morreram, mas as memórias ficam guardadas neste livro", valoriza Francisco Neves, investigador que liderou este trabalho.

O estudo da Marcha da Fome de Pevidém faz parte de um trabalho mais alargado que o Instituto Paulo Freire tem realizado nos últimos dois anos no concelho de Guimarães, a convite da Capital Europeia da Cultura.

O projecto "Raízes" já deu origem a outros dois livros antes deste. No mês passado foi lançado "Ó mãe, deia-nos pão", obra em que faz um retrato da pobreza no concelho ao longo do século XX e também nos nossos dias. A primeira publicação teve as memórias da indústria e as consequências da crise na região, sobretudo no sector têxtil, e tinha como título "Quando eu nasci aquela fábrica já ali estava".

Nos próximos meses serão ainda lançados duas outras obras resultantes deste projecto de investigação, a primeira sobre Migrações e a segunda intitulada "Fragmentos de cultura".

O último livro da série encomendada pela Guimarães 2012 será um retrato da cultura popular vimaranense, partindo de realidades mais conhecidas, como artesanato, trajes e culinárias, mas dando a conhecer manifestações mais ocultas, como bruxarias, superstições e rituais associados à puberdade e ao casamento.

Os cinco volumes respondem a uma "urgência de preservar a memória" encontrada pela equipa de investigadores ao longo do seu trabalho, convivendo com pessoas de 80 ou 90 anos que têm "vivências muito interessantes", sustenta Luiza Cortesão, investigadora que coordena o "Raízes". "Não as registar seria um desperdício muito grande de experiências e saberes".

Notícia corrigida dia 05/11, às 12h34. Onde se lia "1940", lê-se agora "1944"
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