Em vindimas na terra dos grandes vignerons

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Saint-Émilion, cidade Património da Humanidade, foi fundada no século XI sobre ruínas romanas e marca um corte abrupto na paisagem em redor Jean-Pierre Muller/

Fomos às vindimas a Bordéus, mas, em vez de cortar uvas, passámos o tempo a visitar châteaux e a provar os vinhos do ano na companhia de um descendente de portugueses e do homem que está por trás do Angelus, um dos únicos quatro "Premier Grand Cru Classé A" de Saint-Émilion. Relato de uma viagem pela terra dos verdadeiros vignerons

A ideia inicial era viver uma experiência de vindimas em Bordéus, seguindo a mesma rotina de qualquer trabalhador. O desafio tinha surgido no Facebook: o Château La Fluer de Boüard, situado na apellation Lalande-de-Pomerol, junto a Pomerol e a Saint-Émilion, oferecia hospedagem a quem estivesse interessado.

Dissemos que sim. Depois de alguns percalços com as datas, chegámos no dia 13 de Outubro, ainda a tempo de participar na colheita das últimas parcelas de Merlot, Cabernet Franc e Cabernet Sauvigon. A vindima deste ano em Bordéus atrasou-se em mais de duas semanas.

O director técnico de La Fleur de Boüard, Philippe Nunes, esperava-nos no aeroporto. Vinha da adega, com as mãos retintas de vinho e roupa de trabalho. Philippe nasceu em França, mas é filho de pais portugueses, ele de Viseu, ela de uma aldeia de Trancoso. "Emigraram para fugir à fome", resume num português perceptível. Simpático, tinha um plano melhor para os cinco dias da nossa permanência: podíamos vindimar, se quiséssemos, mas também podíamos aproveitar para assistir aos trabalhos na adega e acompanhá-lo na visita a alguns dos cerca de 30 châteaux onde ele e o proprietário de La Fleur de Boüard, Hubert de Boüard, dão consultoria (ver texto ao lado).

Em boa verdade, percebemos depois, vindimar em Bordéus não tem nada de muito aliciante. Tirando o pormenor de só se trabalhar sete horas por dia, a rotina é mais ou menos a mesma que se tem em qualquer região portuguesa: cortam-se as uvas para um balde e despeja-se o balde nos cestos plásticos que alguns homens carregam às costas. Na vindima, os tractores convencionais não entram na vinha. As linhas de videiras são demasiado apertadas. O sistema está preparado para uma densidade de plantação elevada (superior em quase o dobro à existente no Douro, por exemplo, que é de cerca de quatro mil videiras por hectare) e para a utilização dos tractores pernaltas Enjambeur (a parte central anda acima das videiras). Estes tractores são muito eficientes durante todo o ano, mas na vindima nada podem fazer. Quem colhe manualmente, tem mesmo que retirar as uvas da vinha às costas.

Philippe poupou-nos a essa experiência. A vindima nos 26 hectares do Château La Fleur de Boüard também é assim, braçal. Em contrapartida, na nova adega, inaugurada este ano, há máquinas programadas para separarem os bagos bons dos bagos maus, elevadores a ligarem os dois pisos do edifício e cubas troncocónicas invertidas presas ao tecto que dão ao espaço um ar de base espacial. "Fomos os primeiros no mundo a usar este tipo de cubas", sublinha Philippe, destacando as suas vantagens na obtenção de vinhos mais elegantes, uma vez que, ao afunilarem no sentido da base, permitem uma prensagem natural e mais suave das massas.

Grande parte do trabalho da adega é assegurado por estagiários de vários países. "Temos três portugueses. São os melhores trabalhadores que já tive", confessa Philippe, pouco antes de nos apresentar a Leila Freitas, de Vila Real, Luís Dias, de Moncorvo, e João Loureiro, do Porto. Os três chegaram a La Fleur de Boüard após também terem lido no Facebook que o château aceitava estagiários. Assinaram um contrato de três meses para trabalhar na adega, com um salário de 9,5 euros à hora e direito a alojamento e almoço. Luís e João já terminaram o curso de enologia, tirado na Universidade de Trás-os-Montes. Leila, a mais nova, está a meio. Mesmo assim, já fez vindimas no Douro (Lavradores de Feitoria) e no Alentejo (Logowines), tal como João. Luís estagiou na Sogrape, na Quinta do Noval (Douro) e numa grande adega da Nova Zelândia. "Na Sogrape, em Cambres [Lamego], cheguei a trabalhar 20 horas por dia e na Nova Zelândia trabalhava 12 a 13 horas", conta.

No Château La Fleur de Boüard só no pico da vindima é que os dias são igualmente longos. Na maior parte do tempo, a adega trabalha em turnos de sete horas, sem chicote ou qualquer tipo de pressão especial. Todos os estagiários são envolvidos na elaboração dos vinhos de igual forma. Controlam a fermentação, fazem delestage (esvaziar de líquido uma cuba em fermentação e voltar a despejar o mosto na parte superior, para promover o seu contacto com as películas) e pigeage (esmagamento das uvas, neste caso com as mãos, em barricas abertas), provam os vinhos e limpam a adega. A novidade foi a pigeage manual. "Até agora, só tinha feito "patage"", brinca Leila Freitas, referindo-se à pisa a pé.

Os três partilham com outros trabalhadores a mesma habitação, situada junto ao château La Fleur de Boüard, na aldeia de Bertineau, um pequeno aglomerado de casas rurais onde não existe sequer um café ou uma mercearia (é aqui, a partir de uma vinha com menos de dois mil metros quadrados, que Philippe Nunes faz o seu próprio vinho, o Clos Bertineau). Para uma experiência mais mundana, é necessário dar um salto até à pequena mas belíssima cidade medieval de Saint-Émilion, a cinco minutos de carro, ou então até Libourne, uma cidade média situada a algumas dezenas de quilómetros de distância. Luís foi o único que viajou de carro, mas, tal como os outros companheiros e o grosso dos produtores locais, vignerons a tempo inteiro, passa a maioria dos dias entre a casa e a adega.

A nós aconteceu-nos mais ou menos o mesmo. Tirando um dia de chuva passado na cidade de Saint-Emilion, um jantar solitário e tristonho na cidade de Libourne e um almoço de cogumelos em Pomerol na companhia de Jorge Dias, o director-geral da Gran Cruz (uma das maiores companhias de vinho do Porto), e de mais alguns portugueses, após um encontro fortuito na aldeia de Montaigne, gastámos os dias em visitas a produtores e a deambular pela adega de La Fleur de Boüard. Alojados no melhor dos três quartos/suites que equipam o château, não cortámos nem um cacho de uvas, mas calcorreámos inúmeras vinhas a provar bagos para determinar a melhor altura de fazer a colheita. Sempre na companhia de Philippe Nunes e, durante um dia, também de Hubert de Boüard, fizemos um curso intensivo de enologia e viticultura. Provámos, sobretudo, mostos em fermentação e vinhos acabados de fazer, mas ficámos a conhecer melhor a rive droite de Bordéus, com a sua complexa rede de apellations e de classificações, e a saber um pouco mais sobre os grandes crus da região. Não é só o marketing que explica a sua fama. O que existe por trás é, acima de tudo, um conhecimento apurado dos solos, um grande trabalho de viticultura e uma ligação profunda e antiga à vinha e ao vinho.

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