O naufrágio de uma utopia pode ser o começo de outra

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Duas companhias, uma portuguesa (Mundo Perfeito) e outra brasileira (Foguetes Maravilha), deixam-se naufragar numa caravela. Mundo Maravilha, que se estreia hoje no Maria Matos, serve para lembrar que andar à deriva é preciso, sobretudo em tempos de crise.

A primeira cena passa-se no Rio de Janeiro. É na vida real, de um tempo passado: 2011. Uma senhora aproxima-se de Felipe Rocha e diz-lhe que não compreendeu bem um dos espectáculos da sua companhia, os Foguetes Maravilha. Ele responde: "Eu também não." Felipe Rocha é actor e autor, além de encenador; como Alex Cassal, também brasileiro do Rio; ou como o português Tiago Rodrigues.

Para explicar esse "não-entendimento", numa entrevista ao jornal brasileiro O Globo, Felipe Rocha acaba por falar da matéria de que é feito este colectivo que não existe assim há tanto tempo mas tem multiplicado espectáculos por todo o Brasil. "Interessam-me as coisas que não fazem sentido. Na nossa cabeça e nos nossos sonhos, as coisas misturam-se numa lógica mais emocional (...). As pessoas têm-nos acompanhado nessa viagem. Se, em cada cena, os afectos estão claros, não é preciso uma lógica racional para dizer alguma coisa."

Felipe Rocha forma com Alex Cassal, desde 2008, a direcção dos Foguetes Maravilha. Desde 2009, têm trabalhado de perto com a companhia Mundo Perfeito, de Tiago Rodrigues, da qual se poderia dizer ser feita dessa mesma matéria, ou quase. Este ano, estão de novo juntos: começaram a trabalhar a 1 de Outubro, primeiro no Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo, depois no espaço alkantara e no Teatro Maria Matos, em Lisboa, onde se estreia hoje (estará em cena até dia 17) o espectáculo que daí resultou. Mundo Maravilha junta os nomes das duas companhias naquilo que parece ser a partilha natural de uma mesma ideia de teatro e de espectáculo.

"Os nomes dos dois grupos [Mundo Perfeito e Foguetes Maravilha] têm um certo cinismo e uma certa esperança. Uma coisa não nega a outra. O meu mundo não é perfeito. O meu foguete não é maravilha", diz Felipe Rocha. É como se continuassem a acreditar em alcançar aquilo que sabem à partida ser inalcançável.

"Mundo Maravilha tem uma certa ironia", completa Tiago Rodrigues. "Ao mesmo tempo que dialoga com o conteúdo do espectáculo, o nome é um gesto vagamente político e bem humorado." E esse gesto tem a ver com uma iniciativa em contra-corrente com os ventos de crise: "A de pedir aos nossos parceiros que embarquem numa história de naufrágio e que nos permitam fazer uma coisa que tudo nos diz não deve ser feita. Há uma atitude de celebração que rima com reivindicação."

O espectáculo terá uma vida especialmente longa - irá a Guimarães (dia 23) e Montemor-o-Novo (dia 24) e, no próximo ano, à Noruega e ao Brasil. É a isso que Tiago Rodrigues se refere quando fala de "uma ambição que tem tanto de irresponsável como de desejável".

Mundo Maravilha está fora do programa do Ano de Portugal no Brasil e do Ano do Brasil em Portugal, que decorre até Junho de 2013, mas parece ser a expressão exacta daquilo que se pretende com esse duplo evento: fundir e partilhar experiências e mostrar aquilo que de inovador se faz nas artes e nos palcos dos dois lados do Atlântico. Mas mais do que feito por duas companhias, realça Tiago Rodrigues, "este é um espectáculo feito por uma constelação de pessoas". Aos três autores, juntam-se na direcção artística Magda Bizarro, que também assina os figurinos, e em palco as instalações de luz (com lâmpadas dentro da água) de André Calado e os intérpretes-criadores Paula Diogo, Stella Rabello, Cláudia Gaiolas e Renato Linhares.

Os sete actores partem de um cais e, ao fim de uns dias, naufragam. Com os destroços materiais e afectivos criam o espectáculo. Nele, há um "andar à deriva" da rota do veleiro e do próprio processo criativo.

No mar e no espaço

Cláudia Gaiolas e Renato Linhares são Kate e Leonardo - num piscar de olhos ao Titanic (1997) de James Cameron, com Winslet e Di Caprio - quando o navio naufraga. Ma esta não é a vida deles, antes uma fantasia, ou uma mistura de vida e de fantasia. Estavam a ensaiar um conto do Ray Bradbury sobre astronautas à deriva no espaço - "a brincar aos astronautas" - quando Leonardo percebe que a arte é como um ensaio para a morte e diz que perante tudo o que na vida o comoveu até ao assombro (de Camões a Chico Buarque, de Ella Fitzgerald a Drummond de Andrade) morreu um pouco. "Foi um assombro, uma sensação de transporte. De algo maior que todos nós (...). Eu não sabia explicar. Agora sei. Eu morri um pouco."

Os actores fazem deles próprios ou de outros com o seu nome. "Há fábula, ficção. Mas não estamos a fingir ser aquela personagem. Estamos mais a partilhar uma história com o público", diz Felipe Rocha. E essa é uma coisa em comum com o Mundo Perfeito de Tiago Rodrigues. O encenador português define o trabalho dos Foguetes Maravilha como talvez estes descrevessem o do Mundo Perfeito de Tiago Rodrigues: "Um teatro que ao mesmo tempo que questiona as linguagens cénicas", e que reflecte sobre a "ficção em palco", não se distancia da narrativa.

"Há um combinar muitas coisas com miopia e improviso", diz Alex Cassal. Há humor, mas também distância e ironia. Como se lê no programa, "seguindo as pegadas" de Júlio Verne, Fernão Mendes Pinto ou Amir Klink (que atravessou o Oceano Atlântico sozinho num bote a remos), estes sete criadores pretendem "tornar estranho e inaudito aquilo que nos é comum".

Como muitas das criações destas duas companhias, há um fio condutor fragmentado, uma história criada pelo próprio espectador, juntando as peças de um puzzle. E há cenas que são dadas a ver como se fossem vistas de diferentes pontos de vista, mas todas ligadas ao naufrágio de um veleiro que se chama Mundo Maravilha. O naufrágio de uma certa utopia?

"Esse andar à deriva comove-me muito", diz o actor Renato Linhares. Isso lembra o Navegar é preciso, viver não é preciso de Pessoa, que Caetano Veloso embala em Os Argonautas. Há uma história comum entre Portugal e Brasil, uma memória partilhada que passa pela cultura, a música, a poesia: Carlos Drummond de Andrade, Mário Cesariny, Ruy Belo são aqui lembrados. E há uma crença comum de que a crise é muito criativa.

Não há troika que resista à fantasia. Nem poupança, cortes ou despedidas quando a matéria é o sonho. "Uma expedição num veleiro chamado Mundo Maravilha obviamente teria de acabar à deriva", diz Tiago Rodrigues. "Também porque é um pouco a função da deriva: uma sociedade, para encontrar coisas que ainda não encontrou, tem de se deixar andar à deriva."

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