Cunha Rodrigues: "O futebol europeu tem de mudar de rumo"
Convidado pelo presidente da UEFA, Michel Platini, para assumir o comando da nova Instância de Controlo Financeiro, o juiz português, que recentemente abandonou o Tribunal de Justiça da União Europeia, respondeu às questões do PÚBLICO que, a seu pedido, foram enviadas por escrito. Motivado para este novo e inesperado desafio na sua carreira, o ex-procurador-geral da República confia que a nova instância terá um efeito positivo no equilíbrio das contas, racionalidade e transparência da generalidade dos clubes europeus.
Ninguém o associava ao universo do futebol. Foi inesperado este convite da UEFA?Surpreendeu-me, de facto. Devo, no entanto, esclarecer que fui convidado para presidir a um órgão de jurisdição independente, segundo os regulamentos da UEFA. Tive um encontro com Michel Platini onde o presidente da UEFA enfatizou esta vertente, em termos que me apraz registar. Trata-se, de resto, e no fundo, de aplicar o direito, missão que tem feito parte do meu percurso de vida. Agora com o aliciante de trabalhar com fontes de direito que não são apenas as provindas de instituições oficiais.
Como foi então tornado público, fui nomeado, pelo comité executivo, em 18 de Maio [deste ano], com a menção de que assumiria funções no termo do meu mandato no Tribunal de Justiça da União Europeia, o que aconteceu no dia 8 de Outubro. Este hiato foi uma condição que apresentei, pois não gostaria de antecipar o termo do mandato. É meu dever referir a compreensão manifestada pelos órgãos da UEFA.
Regular o fair-play financeiro dos clubes é um desafio tão herculeano como parece?
Os regulamentos aprovados pela UEFA revelam coerência e apurado sentido de medida. Aceitei o desafio depois de me informar pormenorizadamente sobre o projecto e de me conceder um tempo de reflexão. Concluí que os objectivos são louváveis, ambiciosos e exequíveis.
Como irá funcionar a Instância de Controlo Financeiro dos Clubes da UEFA [ICFC]?
A ICFC compreende uma secção de instrução dirigida pelo investigador principal, Jean Lüc Dehaene, antigo primeiro-ministro da Bélgica [1992-1999], e uma secção de julgamento a que presido. As minhas funções, como presidente da ICFC, visam, em particular, esta última competência.
É previsível que já no final da temporada 2013-14 muitos clubes, alguns consagrados, venham a ser impedidos de participar nas competições europeias?
Se consultar os regulamentos, verá que a intervenção jurisdicional da ICFC se realiza, necessariamente, a partir da introdução do caso pela secção de instrução. Não disponho, nesta data, de elementos que me permitam emitir um juízo de probabilidade, o que, de resto, não faria como questão de princípio.
Tem conhecimento da situação particular dos clubes portugueses?
Tenho o conhecimento da generalidade das pessoas que se interessam pelo futebol, aprofundado, agora, pela informação disponibilizada pela UEFA e por uma maior curiosidade e atenção.
Como será feita a fiscalização das contas dos clubes?
A pedra angular do fair play financeiro exprime-se pelo princípio denominado "break even". Significa que os clubes devem prosseguir um objectivo de equilíbrio financeiro: não gastar mais do que os rendimentos que geram. Os regulamentos fixam regras muito claras a este respeito, calendarizadas por ciclos e flexibilizadas por margens quantificadas de desvio. Uma significativa parte dos membros da ICFC é constituída por professores de Direito ou de Economia. A instância dispõe também de profissionais experimentados em auditoria económica. Os termos de apresentação e fiscalização das contas dos clubes figuram, nos regulamentos, de forma muito precisa, sendo a avaliação efectuada com base em períodos de monotorização.
Qual será o quadro condenatório? Ou seja, o que foi acrescentado (ou agravado) para além do já existente nos regulamentos da UEFA? No limite, qual a pena máxima que pode ser aplicada?
O regulamento de processo contém um elenco de medidas que vai, no que se refere a pessoas colectivas, até à desqualificação e à perda de títulos ou prémios e, no que respeita a pessoas singulares, até à interdição do exercício de qualquer actividade futebolística.
Haverá margem de manobra para excluir, sumariamente, equipas como o Manchester City ou PSG, caso não cumpram os critérios?
Por princípio, não falarei de situações concretas, ainda que hipotéticas.
As medidas (sanções) a tomar serão graduais ou implicarão, no imediato, a inscrição de jogadores ou a exclusão da equipa prevaricadora?
O artigo 21 do Regulamento de processo prevê a graduação de sanções. Os critérios terão necessariamente em conta a gravidade das violações.
Em que dimensão é que o fair play financeiro vai revolucionar o mundo do futebol? Vai obrigar a alterar o actual paradigma de gestão?
O fair play financeiro, nas competições europeias interclubes, tem por objectivo melhorar as performances económicas e financeiras dos clubes, reforçar a sua transparência e credibilidade, conferir a importância necessária à protecção dos credores, assegurando que os clubes liquidam tempestivamente as dívidas a jogadores, à segurança social, ao sistema fiscal e a outros clubes, introduzir mais disciplina e racionalidade nas finanças dos clubes, encorajar os clubes a funcionar com base nos seus rendimentos, promover investimentos responsáveis no interesse a longo prazo do futebol e proteger a viabilidade a longo prazo e a perenidade do futebol europeu interclubes. Poderá obrigar a alterar paradigmas de gestão e, sobretudo, a suprir a sua omissão.
Actualmente, grande parte das receitas dos clubes é destinada aos salários milionários dos seus jogadores. Perspectiva-se o fim desta situação, com a imposição de tectos salariais por parte dos clubes?
Os clubes vão, seguramente, estar atentos às regras. O break even não é, em si mesmo, uma regra de moderação salarial. É um princípio de equilíbrio financeiro, baseado em critérios de boa gestão, racionalidade e transparência. O que se alterou qualitativamente foi o sistema de controlo. A jurisdicionalização dos processos de decisão e as garantias que me foram dadas quanto a dotações logísticas correspondem a uma intenção muito determinada dos dirigentes da UEFA, em que destaco o presidente Platini e o secretário-geral Gianni Infantino, de serem criadas condições para que o futebol europeu ultrapasse as dificuldades actuais. Não está em causa apenas a solvabilidade financeira imediata mas, sobretudo, a estrutura. Há um sentimento generalizado de que há que mudar o rumo. É oportuno recordar que os rendimentos dos clubes europeus de futebol cresceram 11% em 2008 e que, mesmo durante o ano recessivo de 2009, subiram 5%. Contudo, as despesas de pessoal (maioritariamente de jogadores) cresceram, nestes períodos, cerca de 18% e 10%, respectivamente. Outra indicação curiosa: enquanto o crescimento médio das economias europeias foi, entre 2006 e 2010, de 0,2% ao ano, a taxa média de crescimento do futebol europeu interclubes foi de 9,1%.
O fair play financeiro irá tornar o futebol mais justo e equilibrado?
O fair play financeiro vai contribuir para uma revalorização da verdade desportiva, para o reforço da ética na organização do desporto e para uma sã competição entre clubes.
Uma das alterações desejadas com a aplicação destas medidas passa pelo reforço da aposta dos clubes na formação?
É um ponto crucial. Entre os critérios desportivos para concessão de licenças está o de que os candidatos disponham de um programa de desenvolvimento juvenil integrado, incluindo objectivos e orientações, organização do sector júnior, capacitação do pessoal técnico, médico e administrativo, infra-estruturas, recursos financeiros, programas de formação e garantia de que todos os programas se realizem sem prejuízo da escolaridade obrigatória e de uma formação não ligada ao futebol.