Gypsicália da Nicotine's Orchestra apresentado hoje no Ritz Clube

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No novo álbum, as sombras e fantasmas foram transformados em luz de tropicalismo e fantasias rock Vera Marmelo

Estamos em Julho e Nick Nicotine está nos seus domínios, nos Estúdios King, no Barreiro, antigo bairro operário que é hoje o complexo Baía do Tejo. À volta, guitarras, posters, revistas e biografias musicais (John Peel e Slash andam por ali). À nossa frente, as colunas, computador e mesa de mistura. Ali ouvimos Gypsicália, o novo álbum da Nicotine’s Orchestra, que depois de uma primeira apresentação em Julho, na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, chega ao palco do Ritz hoje, quinta-feira, para a apresentação oficial (22h, 8€).

Homem em movimento, assim o classificámos no Ípsilon aquando da edição de Ghosts & Shadows, o álbum anterior. Porque está sempre atarefado com mil ideias, e porque vem criando um dos mais interessantes percursos no actual rock português. Esta noite, data do lançamento oficial de Gypsicália, vamos reencontrá-lo em palco. No álbum colaboram os brasileiros Marcelo Camelo e Alex Kassin e a portuguesa Mel, vocalista dos Miuda. Nick Nicotine, boné adornado com um pin do Marco Paulo clássico (fase Ninguém ninguém), confessará que tem andado fascinado com a música brasileira, principalmente com o período tropicalista. Acto contínuo, explica que o medo que tem de andar de avião lhe servirá de boa protecção - criou uma imagem perfeita do Rio dos anos 1960 e não quer correr o risco de a destruir. Faz todo o sentido.

Nick Nicotine pertence aos Act Ups, a banda de garage rock que se travestiu de deuses gregos, Darth Vaders e personagens de filme de série B para Plays the Old Psychedelic Sounds Of Today. Pertence também aos Los Santeros, combo de mexicali punk rock que se diz originário de Tijuana, e aos Bro-X, trupe de sátiros hip hop que carregam no vernáculo para criar uma homenagem tresloucada ao género. Ou seja, Nick Nicotine, amante da soul de Wilson Pickett, de sopros mariachi ou do rock"n"roll regado a fuzz, gosta da criar fantasias alicerçadas na música popular urbana. Sem distâncias entre a história legitimada e por legitimar. Em Gypsicália, ouvem-se de início guitarras acústicas e percussões luxuriantes. É a entrada na selva. Mais à frente, há histórias de traições em cenário latino-americano mas que não acabarão com sangue e navalhadas (o traído vira costas e vai dançar o boogaloo) ou uma canção que soa às digressões cósmicas dos alemães Can transportadas para o deserto no Texas. Nicotine sorri e corrige: "É uma viagem espacial entre o [supermercado] Feira Nova e o estúdio."

Nick Nicotine é um dos fundadores da Hey Pachuco!, editora-motor do Barreiro Rocks, oásis de espírito rockeiro marginal mesclado com festa popular, que deixou a sua marca na história dos festivais portugueses. Este homem, repetimos, tem sempre muito que fazer. Mas para resumir a sua biografia, basta uma visita ao site da Nicotine"s Orchestra. Lê-se: "Nick Nicotine nasceu em 1977. Faz canções. Irá eventualmente morrer."

A Nicotine"s Orchestra nasceu como one man band mas rapidamente abandonou as estreitas fronteiras do formato. Ghosts & Spirits, o segundo álbum, de 2010, era, como o título indica, uma viagem por um mundo de fantasmas, ou seja, os velhos mestres do blues e da soul. Nele, um homem só gravou todos os instrumentos nas horas mortas do estúdio. Gypsicália não foi fruto de um homem a lidar com os seus fantasmas. Foi trabalho de uma banda a dar corpo às viagens que o mentor queria transformar em canções clássicas. Nessa banda encontramos Fred Ferreira, baterista de mil ofícios (Buraka Som Sistema, Orelha Negra, Miuda) ou o guitarrista Índio Elusivo. Depois de Nicotine descrever a corrida até à estação de serviço mais próxima para comprar uma cassete dos Gypsy Kings, quando lhe surgiu a ideia inicial para Gypsicália, é Índio Elusivo que nos conta que todos os ensaios da banda acabam com versões de Djobi Djoba (ou dos Guns N"Roses). Não é surpresa, portanto, ouvir Marcelo Camelo pôr a sua voz em modo crooner num spoken word em Tropic of Capricorn e Alex Kassin a dar toque havaiano, via pedal steel, à despedida do álbum: começamos na selva, acabamos no praia.

A viagem de Gypsicália, entre a folk bucólica e o rock como arma lúdica, entre o exotismo da selva, um clube abafado por corpos suados e o calor de uma praia paradisíaca, não é, diz-nos Nicotine, "um disco em busca de iluminação". Nada disso. "É um disco em que a luz muda." Muitas viagens, a mesma orquestra.

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