Que comam Nestum!

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A recente notícia de que, na Grécia, é agora permitido vender produtos alimentares que estejam fora do seu prazo de validade a um preço mais barato evidencia a situação desesperada a que chegou o país. Os cortes de salários e pensões, o aumento dos impostos e um desemprego galopante tornaram muitos alimentos simplesmente inacessíveis para um vasto segmento da população. Muitos gregos enfrentam assim uma escolha difícil: ou passar fome ou comer comida que, de acordo com os padrões estabelecidos pela própria indústria alimentar, é imprópria para consumo humano.

Já em Portugal, a Nestlé revelou no início deste mês que a venda de Nestum e outras papas aumentou exponencialmente. Mais baratas do que uma refeição completa, as papas têm vindo a substituir o almoço ou jantar tradicionais não só de crianças mas também de um cada vez maior número de adultos carenciados. Para esta situação contribuiu certamente a alteração no início de 2012 da taxa do IVA aplicada à venda de numerosos alimentos (refrigerantes, conservas, congelados pré-cozinhados, etc.), que passaram a ser tributados à taxa máxima de 23%.

Para além dos evidentes problemas nutricionais que estas mudanças alimentares acarretam, o reaparecimento do espectro da fome no Sul da Europa tem consequências políticas de monta. Recordemos a tese de Joseph Townsend que, em finais do século dezoito, defendia que a fome é o mecanismo mais eficaz para levar os pobres a trabalhar. Um crítico feroz da Lei Speenhamland, precursora dos modernos sistemas de segurança social, Townsend defendia que os pobres, tal como os animais selvagens, só podiam ser "domesticados" e levados a realizar tarefas úteis se pressionados pela ameaça da fome.

A indiferença dos políticos europeus face à dificuldade enfrentada por um cada vez maior número de famílias no Sul da Europa em alimentar-se convenientemente leva-nos a perguntar: estaremos perante um neo-townsendianismo? Se aqueles que necessitam de fundos do Governo para subsistir são rotineiramente apelidados pela direita de parasitas, não será o espectro da fome um incentivo conveniente para fazê-los trabalhar, de preferência por salários baixos (recordemos, é preciso aumentar a produtividade!)?

O que está aqui em causa é uma infantilização da população, da qual o aumento do consumo de papa Nestum é um triste sintoma. Privados de qualquer controlo sobre as políticas draconianas de austeridade ditadas pelos membros não-eleitos da troika, os cidadãos de Portugal e da Grécia são tratados como crianças, incapazes de tomar decisões sobre o futuro dos seus países.

A nossa paternalista elite política que, mera executora das ordens da troika, nos assegura que a situação está sob controlo, lembra uma personagem de um filme de acção de Hollywood: o condutor de um comboio sem travões prestes a cair num abismo.

Pior do que este paternalismo, só a completa insensibilidade patente nas declarações de muitos políticos face às dificuldades do cidadão comum. Lembremos as palavras da ministra Assunção Cristas em resposta aos críticos do aumento do IVA na alimentação: se não têm dinheiro para dar aos seus filhos boiões de carne, peixe ou frutas, os pais deveriam alimentar as crianças com fruta em estado natural.

As palavras de Assunção Cristas ecoam a tristemente famosa frase atribuída a Maria Antonieta que, à informação de que o povo francês não tinha pão, teria respondido: "Que comam brioches!" É sobejamente conhecido como terminou a última rainha de França. Resta saber se continuaremos de braços cruzados enquanto a Europa dos PIGS se transforma, paulatinamente, na Europa do Nestum.

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