A morte chama-se Catrina e é uma fiesta

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Omar Franco Pérez Reyes / Demotix

Não há melhor introdução para o muito mexicano Día de Muertos do que ouvir histórias de fantasmas. Mesmo que seja em plena celebração do dia, rodeados de mais gente do que poderíamos esperar. Mesmo que não seja o que esperávamos encontrar. É assim que estamos numa cantina em pleno centro de Mixquic, bem no Sul da Cidade do México, como se estivéssemos num muito concorrido arraial. É noite de 1 de Novembro, o cemitério, ali perto não fora a multidão que temos de rasgar para o alcançar, brilha intensamente com as luzes bruxuleantes das velas. Mas a festa é toda cá fora.

É com minibanquetes em cada mesa que vamos ouvindo histórias de mulheres de branco que atravessam paredes, janelas que fecham e abrem, cães possuídos, brisas frias em lugares fechados, e até almas penadas no Circuito Interior da Cidade do México - "muitas pessoas que vão pagar promessas à Virgem [de Guadalupe] morrem pelo caminho e estão por aí". Não são diferentes das que se ouvem por todo o lado, mas há um sabor diferente aqui, nesta noite em que os mexicanos acreditam que os mortos andam entre nós. Não só acreditam como os recebem de braços abertos, entre 31 de Outubro e 2 de Novembro: as crianças chegam primeiro; quando partem, chegam os adultos (cada momento assinalado com o repicar dos sinos em povoações como San Andrés de Mixquic, num recanto da megalópole a viver longe dela) - à espera delas, das almas, várias oferendas, que, em casa, ao lado de fotos, incluem a sua comida preferida, bebida e até cigarros, se for disso o caso.

Andar na Cidade do México em Outubro é estar constantemente a tropeçar no Día de Muertos (ainda que em certas zonas, como Polanco, o Halloween até faça "concorrência" com as suas abóboras decoradas) - a cidade veste-se a preceito e a Catrina (a morte) passa a ser figura familiar, nas suas diversas encarnações: na base é um esqueleto que se pode vestir de diversas formas e tomar vários rostos (muitas vezes com intenções satíricas). Está à porta de lojas e restaurantes, pendurada em varandas e janelas acompanhada pelo seu séquito macabro e ganha forma bidimensional em barro, arame e tudo o mais que a imaginação se lembre para vender a figura. Os altares à "santa morte" são constantes, nas ruas, lojas, museus (na Casa Azul, vemos Frida Kahlo como Catrina, por exemplo) e igrejas (na antiga Basílica de Guadalupe, um dos mais bonitos), explosões de cores, mais ou menos cuidadas, com ou sem tema, que misturam elementos cristão e aztecas, ou não fosse este um ritual pré-colombiano que a Igreja tratou de assimilar ao Dia dos Fiéis Defuntos: neles são indispensáveis as velas, as flores, as cruzes e o incenso, mas também o copal, o sal, a água e muita fruta. O "pão dos mortos" é omnipresente (seco ou com queijo de barrar dentro) e as caveiras de açúcar enfeitam as montras de padarias - as outras, revisitadas com mil e uma decorações, estão por todo o lado.

É com este contexto que partimos para Mixquic - aconselham-nos a evitar transportes públicos porque nestes dias levam mais do dobro a chegar até lá, por isso acertamos a viagem com um taxista. E demoramos seis horas até lá, em engarrafamento constante. Verdade seja dita que ainda passamos por Xochimilco, onde tínhamos esperança de ver a representação da lenda La Llorona (feita famosa na voz de Chavela Vargas) nos canais, mas chegámos tarde. Daí até Mixquic, em estradas secundárias a atravessar populações, é viagem (ainda mais) atribulada, mas nunca monótona - as populações estão na rua, em silêncio à porta de casa, ao lado de altares com velas e comida ou em festa total, com foguetes, estalidos, correrias embriagadas (não raras vezes, metem-nos garrafas de tequila pela janela do carro - e comida, também).

Mixquic é tudo isto multiplicado por muitos milhares de visitantes que chegam à antiga ilha azteca que recria Xochimilco em ponto pequeno, canal incluído, com trajineras que hoje saem armadas de caveiras e flores. Há música no ar (mas os mariachi, em grupos, não se ouvem: são vencidos pelos sistemas de som), os vendedores ocupam todo o espaço possível, formando avenidas onde se encontra tudo, muita comida, artesanato, roupa, e a parafernália do Día de Muertos. O difícil aqui é acercarmo-nos das bancas - do mesmo modo, quase não conseguimos ver a dança ritual de um grupo de dezenas de homens vestidos como os antigos aztecas. Não sabemos como conseguimos chegar ao cemitério, mas sabemos que nessa noite não haverá paz, nem para vivos nem para mortos. Estão juntos e é uma fiesta.

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