Um outro António Lobo Antunes

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O Prémio Camões 2007 é um exímio contador de histórias Nuno Ferreira Santos (arquivo)

O festival literário Escritaria, que encheu a cidade de Penafiel de frases e de fotografias de António Lobo Antunes, permitiu aos seus leitores ficarem a conhecer o homem para além da obra.

O escritor português que tem fama de ter mau feitio e mete medo aos entrevistadores (confessaram-no neste festival, os jornalistas Fátima Campos Ferreira e Mário Crespo), é um exímio contador de histórias, tem um enorme sentido de humor, imita vozes (como a do seu amigo general Ramalho Eanes), derrete-se a falar dos amigos que já morreram e dos que ainda são vivos, e mostra a sua impetuosidade quando lhe fazem perguntas e não o olham nos olhos.

Ficou madrugada adentro, estafado depois de conferências e entrevistas, a dar autógrafos por respeito e generosidade pelos seus leitores. Em mais de uma ocasião recitou poemas à desgarrada no meio da rua. "Toma lá um Álvaro de Campos!" lançou para os estudantes do grupo de teatro Andaime da Escola Secundária de Vila Nova de Famalicão que nos últimos anos marcam presença no Escritaria, só não estiveram no primeiro, e lhe recitaram crónicas suas. Retribuiu com poemas de António Botto, Eugénio de Andrade e Antero de Quental.

Ele que se lembra de tudo, lembra-se de páginas e páginas de livros que leu mas não se lembra já de nada do livro que lançou neste festival, o romance Não é meia noite quem quer. Um livro que escreveu a ouvir uma voz feminina, que lhe ditava as coisas tão depressa que ele por vezes a acompanhava mal, e durante a escrita só queria estar com ela, a ouvi-la.

Falha gravíssima

Lobo Antunes estava tão bem disposto no Escritaria, como há uns anos estava quando participou na FLIP - Festa Literária Internacional de Paraty, no Brasil, que nem martirizou a sua actual editora, Maria da Piedade Ferreira, ao contar em público como se conheceram. Mas ela contou. "Isto entre o António Lobo Antunes e eu começou com uma coisa que ele hoje não disse mas costuma dizer. Eu era editora mais que estreante na Bertrand, recebi um dia um original que um colega me trouxe. Disse-me: 'isto é de um tipo que é médico, vê lá o que é que achas'. Era o romance Memória de Elefante. A Bertrand estava numa fase de profunda confusão e de vazio de poder e eu tinha várias coisas que me apoquentavam, li duas ou três páginas, achei que aquilo não valia a pena e o António Lobo Antunes, que era o autor daquele livro acabou por o publicar na Vega, foi um best-seller e eu ainda hoje me penitencio dessa falta de atenção e aguento todos os tormentos que ele me faz passar enquanto escreve um livro, em nome da minha falha gravíssima de que me vou arrepender até ao fim da minha vida."

A história dos dois começou assim, passaram-se entretanto vinte e tal anos e começaram a trabalhar em conjunto depois da morte de Tereza Coelho que era a editora anterior de Lobo Antunes. Ficou uma amizade para a vida e para a morte.

"Acho que ele já me perdoou essa falha dos anos 70, hoje não falou nisso", disse Maria da Piedade que contou também que quando Lobo Antunes está a escrever um livro, está de tal maneira embrenhado e possuído pelo que está a fazer que não lhe dá problemas. "As partes mais difíceis de António Lobo Antunes são entre livros", acrescentou. É que quando o Prémio Camões 2007 está nos períodos em que não está a escrever, lê muito e a uma enorme velocidade. Não há livros suficientes para o que ele lê: "Eu sou normalmente a provedora dos livros para o António e essas fases são difíceis até chegar o novo livro. Quando chega um novo livro é um descanso e a nossa vida torna-se muito mais fácil."

Romance novo em 2014

Como está na fase entre a escrita de romances, António Lobo Antunes tem lido os mais diversos livros entre eles o best-seller mundial "As Cinquenta Sombras de Grey" de E. L. James. "Fala de partes do corpo humano que eu não sabia que existiam", brincou o médico e escritor. "A quantidade de coisas que eu também não sabia que existiam e que se podem meter em várias partes do corpo... É completamente obsceno, achei aquilo completamente ofensivo para as mulheres. Se eu vos contasse aqui o que lá se passa vocês nem dormiam!" Gargalhadas na sala.

Há um mês António Lobo Antunes terminou mais um romance que será publicado em 2014. Numa crónica na "Visão" intitulada "Adeus" dizia mais uma vez que poderia ser último, mas no Escritaria disse que pensava começar a escrever um novo livro em Janeiro, embora não saiba se o vai fazer. Neste festival literário revelou que o título desse romance que acabou de escrever e cuja acção se passa num prédio de vários andares é "Caminho como uma casa em Chamas".

Metade desse livro que António Lobo Antunes acabou de escrever "foi para o galheiro". Isso não lhe aconteceu com "Não é meia noite quem quer", em que a tal voz feminina lhe acompanhava a escrita.

Durante estes dois dias, António Lobo Antunes ouviu académicos como Ana Paula Arnaut e Maria Alzira Seixo e o canadiano Jeff Gordon Love, que são profundos conhecedores da sua obra, dissecarem o seu trabalho e mostrarem como é no fundo um autor de um livro só, e que vem escrevendo o mesmo livro.

Mas também como na sua obra se inscreve toda uma tradição que vem dos clássicos e é inovador e como ele, autor consagrado academicamente consegue, como poucos, chegar a um imenso público através de temas que agarram o leitor, com histórias que por vezes podem ser de faca de alguidar, como eram as de Camilo Castelo Branco, mas com uma linguagem que é a do sortilégio.

A melhor crítica

Lobo Antunes falou por várias vezes da crítica e das pessoas que nos jornais escrevem sobre livros que só lêem uma vez. E para mostrar como isto da crítica é complicado contou uma história que se passou com ele e com o poeta Alexandre O'Neill (1924-1986), explicando que os dois são autores da melhor crítica que alguma vez se fez.

"O O'Neill era um poeta que não gostava de ninguém. Ele tinha imensa graça, não gostava de mim mas eu gostava dele. Ele não gostava de ninguém. Almoçávamos todas as semanas, ele sempre de fato e gravata, muito composto. Uma vez estávamos a almoçar num restaurante e entrou o pintor Cargaleiro. Olhou para nós e avançou: 'Ainda bem que vos encontro, logo aos dois, vou fazer uma exposição em Paris e gostava que escrevessem um texto para a minha exposição'".

Este episódio aconteceu em 1984, Alexandre O'Neill ia dando pontapés debaixo da mesa ao António Lobo Antunes e ao mesmo tempo que dizia para o Cargaleiro: "Claro que a gente faz, a gente faz, quando vais para Paris? Mandamos-te por telegrama." Quando o pintor saiu, o O'Neill diz ao colega escritor: "É a mulher-a-dias da Vieira da Silva. De cada vez que a Maria deixa cair um quadradinho, ele apanha junta dois e tem um quadro", conta Lobo Antunes recordando que fizeram uma análise da obra do pintor e mandaram por telegrama.

"Uma análise que eu acho bastante profunda, crítica, que era assim: 'Cargaleiro que carga um cargalhão, carga um cento'. [gargalhadas na sala] Na altura achámos aquilo uma obra-prima da crítica da pintura. Passados uns meses, estávamos no mesmo restaurante e aparece o Cargaleiro e não nos falou. Dizia-me o Alexandre: 'Já viste? O homem nem sequer nos fala. O que se terá passado?!' E eu respondi: 'Sei lá! Também não estou a perceber'. O Alexandre já morreu e eu ainda continuo por cá sem perceber porque é que o Cargaleiro não nos falou. Portanto como autor da melhor crítica de arte que se conhece não vou comentar a crítica da Ana Paula Arnaut, com umas coisas concordo com outras não, mas ela está em vantagem, ela leu o livro e eu não, só o escrevi".

O PÚBLICO está em Penafiel a convite do Escritaria.

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