Uma casa para os inimputáveis

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Doentes inimputáveis no Hospital Júlio de Matos Daniel Rocha/Arquivo

Rafael sonha voltar à sua terra natal, mas a vila lembra-se do crime que cometeu. Já Jorge, que esquartejou o tio, é agora cabeleireiro. Os inimputáveis do Sul do país vão ter para o ano uma nova casa que quer evitar regressos impossíveis

Estava a chegar ao fim o tempo de redenção. Rafael podia finalmente regressar à sua terra natal, uma vilinha alentejana de cerca de três mil habitantes, e deixar para trás o crime cometido há 17 anos que o mantinha internado desde então. Viajou de carro com a assistente social do hospital, mas a notícia da sua ida chegou primeiro: os sinos da igreja tocaram a rebate a avisar que ele vinha aí, a população saiu à rua e barricou-lhe a entrada na povoação. Rafael nem conseguiu sair do carro e teve de regressar a Lisboa. O episódio aconteceu há cerca de quatro anos, altura em que se tornou juridicamente livre.

Rafael, de 56 anos, continua a sonhar em voltar e viver na sua terra. O sonho é abrir um negócio de venda de vinhos. Não sendo possível, queria que, pelo menos, o deixassem passar o resto dos seus dias num lar da vila. Nesse sentido, pede desculpa à senhora que deixou paraplégica a golpe de machadada, diz que a culpa foi do médico que deixou que se lhe acabasse o medicamento que o impedia de ter "pensamentos malucos". E dita a mensagem que deseja que lhe chegue, via jornal: "Gostava de viver lá, não fui eu que tive a culpa, foi o médico. Peço à senhora que me desculpe, que eu estava maluco."

Rafael, que tem um diagnóstico de esquizofrenia, é um dos doentes inimputáveis internados no Serviço de Psiquiatria Forense do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (Hospital Júlio de Matos), que dificilmente poderá voltar à sua vida no local de onde veio, mesmo tendo já condições para ser livre por já ter cumprido a sua medida de segurança. Os técnicos e médicos que trabalham com doentes inimputáveis designam a razão que torna muitos destes regressos impossíveis como "alarme social". Rafael não poderá voltar porque, mesmo passadas quase duas décadas após o seu crime, ainda é visto pela população local como perigoso.

Não é o único dos 32 doentes inimputáveis ali internados a não poder voltar ao seu local de origem. A diferença de Manuel, 65 anos, internado há cerca de 30 anos, é que ele não quer regressar porque sabe que não pode. Na aldeiazinha beirã onde há 35 matou a mulher e onde vivem duas filhas, "os meus vizinhos disseram que me matavam dentro de um bidon de gasolina a arder". Assim, quando sair gostava antes de arranjar um emprego. Trabalhar é, mesmo no hospital, o que mais gosta de fazer: às terças e quintas faz artesanato e restaura móveis e à segunda e quarta serve atrás do balcão do barzinho gerido pelos e para os doentes do pavilhão, onde é também ele quem gere com rigor férreo o dinheiro da caixa.

Chamam-se inimputáveis a quem, tendo cometido um crime, não é responsabilizado criminalmente por esse acto ter sido praticado por força de doença mental, considerando-se que não agiu por vontade própria. Em vez de penas de prisão, cumprem as chamadas medidas de segurança, internados em estabelecimentos de saúde, não podendo estas ultrapassar a pena máxima do Código Penal, que é de 25 anos. Mas, na prática, quantos terão a possibilidade de uma vida cá fora terminado o período de internamento?

Depois das grades?

Para chegar à fala com Rafael foi preciso abrir as chaves de três portas deste pavilhão, destinado a doentes de média e baixa segurança, que se distingue dos outros por ter grades em todas as janelas. Este doente, à parte das saídas planeadas para actividades ocupacionais ou acções de formação, tem de contacto com o exterior um exíguo patiozinho interior onde alguns doentes dormitam, sentados ou deitados.

Não muito longe dali, dentro do recinto do Hospital Júlio de Matos, e que hoje em dia alberga muitas outras instituições públicas ligadas à saúde (o chamado Parque de Saúde de Lisboa), está em construção a nova casa dos doentes inimputáveis da zona Sul do país. É para os que ali se encontram, assim como outros que se lhe juntarão, num total de 44 camas. Pela primeira vez, as mulheres originárias desta zona do país que cometeram crimes poderão estar mais perto de casa - agora estão internadas em Coimbra. Mas essa não é a principal inovação do espaço que se prevê que venha a abrir no primeiro trimestre do próximo ano. Este é um pavilhão que pretende tentar evitar regressos impossíveis à normalidade, como o de Rafael, que se tornou incapaz de ter uma vida normal no exterior da unidade, ou o de Manuel, que não pretende voltar à sua aldeia natal mas que sonha que lhe dêem um emprego mal saia.

O grande problema deste universo de doentes é que é preciso trabalhar "um duplo estigma, o do assassino e do louco", resume Manuel Cruz, médico psiquiatra e director do Serviço de Psiquiatria Forense, notando que metade dos internados são homicidas, os restantes são situações de agressão com violência e há duas histórias de incendiários. O mais novo anda pelos 20 e poucos anos, entrou no ano passado, e o mais velho tem cerca de 80 anos. É suposto passar a haver unidades com as mesmas condições onde já existem instalações para doentes inimputáveis - no Porto, no Hospital Magalhães Lemos, e no Hospital Sobral Cid, em Coimbra -, mas nestes casos nada está agendado em termos de obras, responde Álvaro Carvalho, director do Programa Nacional para a Saúde Mental.

"Dantes, os inimputáveis perigosos eram colocados na enfermaria e ali ficavam. A tradição é que se tornavam doentes crónicos. Cerca de 50% dos doentes são deste quadro do passado." A ideia do novo pavilhão é trabalhar para uma nova população, com medidas mais curtas, em ambulatório. "Pessoas mais jovens, com obrigação de apresentação periódica, trabalho a favor da comunidade", resume Manuel Cruz.

Ferramentas perigosas

Assim, o novo pavilhão pretende ser um modelo do futuro, afirma o psiquiatra. Vai ter um ginásio, um circuito de manutenção, campo de jogos, uma horta terapêutica, quartos de duas camas, salas de estar viradas para o exterior e, a par das mudanças arquitectónicas, vai ser mais trabalhado "o treino de competências", refere Isabel Paixão, presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa. "É preciso não os perder e não deixar que eles se percam." Está também "em fase de ensaio", desde o ano passado, "a consulta no pós-alta, para se sentirem apoiados", explica Manuel Cruz.

A ideia é que diminuam casos como o de Rafael e Manuel e se multipliquem o de outros como o de Jorge (nome fictício), aquele nadador-salvador de 30 e poucos anos que "se o vir na rua é uma ternura", conta a terapeuta ocupacional Isabel Belo. Como "caso de sucesso" de reinserção social é um dos mais recentes que lhe vêm à memória. Sendo um jovem que até cometeu um crime mais grave do que o de Rafael, talvez até um dos mais hediondos que lhe passaram pelas mãos - matou o tio, cortou-o aos pedaços e ocultou-o no fundo de um poço -, fez formação profissional no exterior, teve a sorte de ser originário de Lisboa, onde pode ser um cidadão anónimo, e teve apoio da família. Esteve internado cerca de sete anos, passaram dois desde a sua saída, e ninguém diria que este respeitável homem de 34 anos, cabeleireiro com emprego estável, um dia cometeu este crime e esteve naquele pavilhão juntamente com tantos outros. Como este rapaz, Isabel Belo fala com orgulho, por exemplo, de dois outros doentes que também cometeram homicídios: um que entrou com o 6.º ano e vai sair licenciado em Filosofia, outro que entrou com o mesmo grau de escolaridade e está em vias de acabar Engenharia Electrotécnica.

Uma terapeuta ocupacional, contrariamente ao que o nome indica, não tem como função apenas ocupar os doentes, mas "tornar a estada e as rotinas o mais próximo possível das saudáveis, em termos de higiene, lazer e trabalho", descreve. É por isso que é das que mais anseiam pelo "novo pavilhão, que reflecte uma nova filosofia, mais vocacionada para a reintegração, não tanto para os conter". Como exemplo das limitações inerentes ao espaço actual, fala do carpinteiro recém-entrado que não conseguiu manter as rotinas profissionais, para depois lhe ser mais fácil a reintegração, por falta "de um espaço resguardado dos outros, uma vez que construir mobílias significa ter de manusear ferramentas perigosas". A solução de compromisso foi pô-lo "a fazer miniaturas de móveis", diz. Nesta, como noutras situações, o trabalho de reabilitação torna-se actualmente mais difícil, porque sair daquele pavilhão para fazer actividades pode significar "perigo de fuga".

Manuel, de 65 anos, sonha com o dia em que vai sair para trabalhar, sem se interrogar sobre quanto tempo faltará exactamente para essa sua saída definitiva. Sabe que é o segundo que ali está há mais tempo, que há um colega internado há 50 anos, que já conta com 86 anos. Passadas mais de três décadas desde que matou a mulher, tenta lembrar-se da doença de que sofre, da razão por que ali está: "No ofício que veio do tribunal diziam que eu era...", e fica muito tempo a pensar, "ai, já não me lembra, já não me lembro o que o tribunal disse que eu era. Disse que era perigoso e... eram três nomes, já não me lembra".

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