Há 30 anos que os idosos de Northampton dão lições de energia em palco

A solidão na terceira idade não é inevitável. A prova é o Young at Heart, um coro norte-americano de maiores de 73 com energia para cantar Ramones ou Sonic Youth. Entre eles, encontra-se uma luso-descendente.

Bob Cilman, o único de costas, "inspira o melhor das pessoas" dentro e fora do palco
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Bob Cilman, o único de costas, "inspira o melhor das pessoas" dentro e fora do palco Jeff Derose
O director criativo orquestra os seus "pupilos"
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O director criativo orquestra os seus "pupilos" Jeff Derose

A solidão na terceira idade não é uma inevitabilidade. Nem a conversa sobre as maleitas da velhice é a única actividade possível. A prova está em Northampton, EUA. Há três décadas. É o Young at Heart, um coro em que todos têm mais de 73 anos e a energia necessária para cantar The Clash, Ramones ou Sonic Youth. “Não é serviço social, é arte.” O público aplaude de pé.

Ensaios, espectáculos esgotados, discos, digressões internacionais – nada disto se espera de quem tem 73, 82, 91, 100 anos. No entanto, é isso o que fazem no Young at Heart desde 1982, quando Bob Cilman formou o coro, desafiado pela pianista Judith Sharpe. Começaram pelas canções populares norte-americanas, mas quem os ouve hoje em dia é surpreendido pelo punk e o rock de Schizophrenia, I wanna be sedated, Purple haze ou Road to nowhere.

São estes os temas que se vão ouvir este fim-de-semana em Northampton, pequena cidade do Massachusetts onde o Young at Heart está sediado, nos três espectáculos que comemoram o seu 30.º aniversário. Jimi Hendrix, Talking Heads? Sim. Com a curiosidade de que nenhum deles conhecia estas canções antes de entrar para o coro. São todos mais velhos que os Rolling Stones, não têm idade para as terem dançado. Aliás, não são apenas avôs: são bisavôs.

“Tenho quatro filhas, cinco netos, cinco bisnetos e mais dois a caminho”, conta ao PÚBLICO Lucilia Cauley, por telefone. Aos 83 anos, faz duas vezes por semana as viagens de carro que a levam de casa, em Agawam, até ao local de ensaio. Cada uma demora cerca de 45 minutos. Anda nisso há ano e meio – e está a divertir-se. “Tem sido incrível. Eles são maravilhosos.”

O “tiro liro liro” português
Lou conversa com o PÚBLICO em inglês, mas sempre que se lembra que lhe estão a ligar de Portugal muda para português. É luso-americana, com raízes na Beira Baixa, no Fundão. Atravessou o Atlântico na barriga da mãe, em 1929. Como em casa dos pais, em Springfield, não se falava outra língua, quando chegou ao infantário esbarrou na sua condição de emigrante: só sabia falar português e não conseguia fazer-se entender.

A vida de Lucilia é uma história de combate. No início dos anos 1970, após duas décadas como dona-de-casa, voltou a estudar e formou-se em ensino básico. Decidiu ser professora para ajudar as crianças que, como ela, não falavam inglês quando chegavam à escola. Imigrantes. “Ser portuguesa deu-me uma grande consciência em relação a outras línguas e a outras culturas”, diz. Nas suas aulas, falava-se inglês e português, e cada aluno era tratado pelo nome. “Era preciso que tivessem orgulho de ser quem eram. De que não se esquecessem que eram portugueses. Eu dizia-lhes: ‘Tu és João, não és John’, ‘Tu és Maria, não és Mary’. Nunca gostei do nome Lucile.”

Era Lucilia quem muitas vezes levava as crianças ao médico, porque os pais não sabiam falar inglês ou estavam a trabalhar todo o dia. “Podia compreender a situação dessas crianças.” Os médicos também foram uma realidade da sua infância: a mãe “era muito doente, sofria muito da cabeça”, diz, em português. O pai, que trabalhou sempre na construção civil, formou a sua própria empresa aos 50 anos, com a ajuda de alguns amigos. Por essa altura, adulta, mãe, Lucilia continuava a falar português com as filhas – mas só “um pouquinho”. Agora, “só sabem dizer coisas simples, como ‘leite’, ‘bom dia’, ‘vou para casa’”.

“Vou ensinar os meus bisnetos.” Os planos de Lucilia para o futuro parecem não ter fim e o tom alegre que coloca numa conversa que está a ter às 8h da manhã (15h em Lisboa) denuncia o que vai dizer a seguir: “Sou muito jovial.” Gostava de voltar a Portugal, onde só esteve em 1975, quando se licenciou. Mas do que gosta mesmo é de cantar. Sempre o fez. Era já solista da Agawam Melody Band quando viu um espectáculo do Young at Heart. Entrou para o coro a cantar Blue sky (e cantarola o tema dos Allman Brothers ao telefone). “Nunca pensei que viveria o suficiente para cantar rock n’ roll e disco”, brinca, dizendo que já considerou propor nos ensaios o Tiro liro liro de Amália Rodrigues. “Ainda não tive tempo.”

Uma verdadeira revelação
“Tem sido uma longa e estranha viagem. Realmente surpreendente, divertida e nunca aborrecida”, observa Bob Cilman ao PÚBLICO. O director artístico do Young at Heart contava 29 anos no início do coro. Agora, vai nos 59. “Eles têm muita energia. Não são nada parecidos com a geração dos meus avôs. E fazem um trabalho incrível com a música contemporânea.”

O punk não surgiu logo no início. “Não começámos isto em 1982. Só depois de cantarmos todas as canções deles [de que os membros do coro gostavam], após alguns anos, é que comecei a tentar as canções com as quais cresci. Ouvir pessoas mais velhas a reinterpretar canções da minha juventude foi uma verdadeira revelação”, recorda. “O público adorou.”

O carisma é fundamental (como em qualquer banda rock). A primeira “estrela” foi Anna Main, uma comediante de stand-up que viveu até aos 100. “Ela contava as piadas mais obscenas e safava-se sempre”, lembra Cilman. As suas performances eram inesquecíveis. Um dos actuais elementos, Brock Lynch, um antigo médico de 88 anos, decidiu juntar-se ao Young at Heart em 1996, depois de ver Anna no desfile que o coro fez para celebrar o seu centenário.

Aos 100, Anna ainda cantava. Diamond Lil ficou-se pelos 96, dois anos antes de morrer, em 2003. Estiveram ambas na fundação do coro. Desse primeiro grupo, que incluía sobreviventes das duas Grandes Guerras, não subsiste ninguém. Nos dias que correm, Dora Morrow e Jean Florio são, aos 90 anos, as mais velhas. Mas aqui a idade só interessa quando é para entrar no grupo; uma vez lá dentro, já não importa.

Bob Cilman leva o seu trabalho muito a sério. O que faz com que trate septuagenários e octogenários como iguais, como pares que ali estão para fazer música. “O que fazemos é arte, não criámos um serviço social.” É duro com eles nos ensaios e, como um pai, não é capaz de isolar um membro do coro e destacá-lo a bem de um artigo de jornal: “Tivemos 135 pessoas carismáticas no coro ao longo destes 30 anos.” É a conta de todos os que por lá passaram.

O director artístico não quer fazer do Young at Heart exemplo para um mundo cada vez mais velho e cada vez mais desligado dos seus idosos. “Fazer arte é uma boa forma de nos mantermos ocupados, de permanecermos alerta e, se tivermos sorte, felizes”, afirma. “Parece que se estão a formar muitos grupos semelhantes. Isso é bom, mas certamente não é a nossa missão. Nós só queremos juntar-nos duas vezes por semana e fazer boa música.”

“O nosso director é brilhante, exigente, interessante, completamente dedicado e inspira o melhor das pessoas.” As palavras são de Lucilia Cauley, que partilha com Bob Cilman o gosto por Portugal. Cilman passou a lua-de-mel na Península Ibérica, em 1989 – Barcelona, Madrid, Sevilha, Algarve e Lisboa. Ainda que tenha chovido durante duas semanas, a capital portuguesa “foi de facto a preferida”. Há pouco tempo esteve para regressar, quando uma produtora esteve interessada em estrear o Young at Heart em palcos portugueses, “mas acabou por não acontecer”. Se um dia isso chegar a acontecer, promete trazer um fado no alinhamento (é ele próprio que o sugere, sem pergunta).

Mensagens enormes
O Young at Heart actuou em Singapura, em Maio, e no Japão, no mês passado. Estão sempre a viajar. “Eles já fizeram 26 digressões internacionais. Eles sabem o que estão a fazer.” Bob Cilman confia no grupo e na capacidade que este tem para aguentar aventuras transcontinentais que por vezes duram semanas. “Os longos voos podem ser duros, mas eles adoram lá chegar [ao destino].”

“É difícil, mas também é excitante”, confessa Lucilia. “É viajar com 35 pessoas que de facto não se conhece muito bem.” E para sítios que muitos deles não conhecem de todo. No entanto, são sempre bem recebidos. “As pessoas gostam mesmo muito de nós. Somos tão reverenciados…” Lucilia regressa ao português: “Maravilhoso – salta para o inglês – não é suficiente para o descrever. Somos uma espécie de embaixadores da boa vontade.” Lucilia diz isto porque um dos espectáculos do coro foi com as vítimas do tsunami de 2011.

Nunca ninguém morreu em digressão ou em palco. E Bob diz-se “realmente grato por isso”. Sustos, sim: “Já tivemos um pacemaker a parar no meio de um espectáculo. Já tivemos uma mulher presa numa banheira.” Mas a morte e o luto são realidades constantes num grupo com estas características. “Temos sempre conseguido superar, mas raramente é fácil. Algumas vezes estamos mais preparados do que noutras. Sabem todos que o seu tempo é limitado e o coro é um óptimo lugar para se estar no fim da vida.”

Eles continuam sempre. Mesmo nas alturas mais delicadas, quando acabam de saber da morte de um dos seus companheiros. Dois desses episódios estão documentados em Young @ Heart, filme de 2007 realizado por Stephen Walker e Sally George, estreado em Portugal no IndieLisboa de 2009 e exibido na RTP2 pelo menos duas vezes desde então. É comovente.

Joe Benoit e Bob Salvini morreram durante a rodagem do documentário. Doente oncológico, Joe ignorou os conselhos do médico nas últimas semanas da sua vida. Queria estar com o grupo. Os outros foram informados da sua morte dentro do autocarro que os levaria a um estabelecimento prisional local de alta segurança, onde cantariam – e cantaram – para prisioneiros em lágrimas, a ouvir Forever young logo após terem sido informados por Bob Cilman da morte de um dos membros do coro.

Nas vozes do Young at Heart, as canções não têm o mesmo significado. Nem só um. São lições, manifestos: idosos cheios de energia a cantar que serão jovens para sempre. O mesmo acontece quando, no espectáculo com que o documentário acaba, se vê Fred Knittle a subir ao palco e, com o barulho compassado da botija de oxigénio a servir de metrónomo, cantar sozinho o que estava previsto como dueto com Bob Salvini: Fix you. Quando o documentário foi rodado, nem ele nem Salvini estavam activamente no coro – estavam demasiado debilitados. Mas aquele era um concerto especial e eles voltaram, para cantar apenas uma canção, os dois juntos.

Durante os ensaios, Salvini sofreu vários enfartes do miocárdio. Chegou a sair do hospital só para participar num ensaio, já muito fraco. Não resistiu. E é nesse contexto que ouvimos Knittle a entoar os versos de Coldplay: “And the tears come streaming down your face/ When you lose something you can't replace/ When you love someone, but it goes to waste/ Could it be worse?”. Lou sintetiza o sentimento: “O Young at Heart tem mensagens enormes, sobre as dores da vida, sobre a dificuldade de viver em sociedade”. Nada é linear. Ainda que tudo pareça apenas uma canção rock.

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