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Relvas e Passos agiram em simultâneo para angariar contratos

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A pista de Monfortinho (aqui como está hoje) já em 2004 estava desactivada Fotógrafo

Registos da Ordem dos Arquitectos, testemunhos dos seus antigos dirigentes e sobretudo declarações de Miguel Relvas e de Pedro Passos Coelho - em 2004 e há dois meses - mostram mais do que a arquitecta Helena Roseta disse em Junho. Passos e Relvas trabalharam em simultâneo com o mesmo objectivo

Miguel Relvas, na qualidade de secretário de Estado da Administração Local, e Pedro Passos Coelho, então consultor da Tecnoforma, trabalharam em simultâneo, em 2004, para convencer a Ordem dos Arquitectos (OA) a adjudicar àquela empresa um importante contrato pago por fundos públicos. As propostas de formação apresentadas por um e por outro eram idênticas. A ordem rejeitou ambas.

Em meados de Dezembro de 2003, o então secretário de Estado da Administração Local reuniu-se com a arquitecta Helena Roseta, à época presidente da OA, e apresentou-lhe uma proposta de formação profissional para arquitectos das autarquias.

A ideia tinha a ver com a disponibilidade de verbas no Foral, um programa destinado a formar funcionários das câmaras municipais de todo o país, financiado pelo Fundo Social Europeu e tutelado por Relvas. O regulamento do Foral permitia que as ordens profissionais se candidatassem como promotoras desses projectos de formação e que subcontratassem depois a sua execução a empresas especializadas.

Poucas semanas depois, Pedro Passos Coelho, em nome da Tecnoforma, pediu uma reunião à presidente da Ordem dos Arquitectos. Helena Roseta escusou-se a recebê-lo e pediu a uma sua colega do conselho directivo nacional da ordem (CDN) para o fazer. No encontro, Passos Coelho apresentou uma proposta de protocolo de colaboração com a ordem relacionada com um vasto plano de formação de arquitectos financiada por fundos comunitários.

Apesar da quase coincidência temporal entre as duas reuniões, as informações que o PÚBLICO reuniu nos últimos meses não permitiam, por si só, esclarecer se as propostas de Miguel Relvas e de Pedro Passos Coelho visavam exactamente o mesmo plano.

Mas a memória de alguns arquitectos e funcionários da ordem que intervieram neste processo permite reconstituir pormenores das propostas de um e de outro. Aquilo de que se lembram vai claramente no sentido de uma ter a ver com outra.

"Tenho ideia de que as propostas do secretário de Estado e de Passos Coelho eram sobre o mesmo assunto", afirma Leonor Cintra Gomes, a arquitecta que recebeu o consultor da Tecnoforma, a pedido de Roseta. Mais: "Tenho ideia de que Passos Coelho vinha encaminhado pela Secretaria de Estado e de que vinha já com uma proposta muito formatada, embora não me lembre dela."

Arquivos fazem luz

A antiga presidente da ordem, por seu lado, foi muito mais longe ao afirmar na SIC Notícias, em Junho, que Miguel Relvas condicionou o financiamento dos eventuais projectos da OA à sua posterior adjudicação à empresa de Passos Coelho. No entanto, Roseta disse então que não se lembrava do nome da empresa, e há dias acrescentou que muito menos se lembrava de que Passos Coelho tinha apresentado à ordem, semanas depois, uma proposta de formação em nome da empresa.

Miguel Relvas não confirmou nem desmentiu Roseta, mas disse que apresentou uma queixa em tribunal contra a arquitecta, por difamação.

Documentos arquivados na Ordem dos Arquitectos ajudam a juntar algumas peças do puzzle.

A 13 de Dezembro de 2003, Helena Roseta informou o CDN de que a Secretaria de Estado da Administração Local criara um programa de formação para as autarquias e que a ordem se podia candidatar. A acta da reunião é parca em pormenores, como acontece normalmente.

A sua ordem de trabalhos acrescenta, todavia, um dado relevante. O ponto 4.4 constava do seguinte: "Protocolo com a Secretaria de Estado da Administração Local - Programa Foral - Informação."

Um dos participantes na reunião (que prefere não ser identificado devido às funções que ocupa) garante que a presidente da ordem disse muito mais do que está na acta, nomeadamente que o assunto lhe tinha sido apresentado por Miguel Relvas, e que "deixou claro que aquilo cheirava a esturro".

Cinco meses depois, a 13 Maio de 2004, realizou-se uma outra reunião do CDN em cuja ordem de trabalhos está escrito, no ponto 4.3: "Protocolo de formação com a Tecnoforma, SA - Proposta 5". De acordo com a acta, a discussão desse ponto foi adiada. Por isso mesmo, a proposta em causa, da iniciativa do CDN, não consta dos anexos da acta. Os responsáveis da ordem explicam que ela deveria ter sido junta aos documentos da reunião em que fosse finalmente discutida, mas que isso nunca aconteceu, porque o assunto não voltou ao conselho.

Um antigo responsável administrativo da ordem diz que a proposta rejeitava o acordo apresentado por Passos Coelho e que foi retirada da ordem de trabalhos - acabando por nunca ser objecto de uma decisão formal - porque as secções regionais da ordem, às quais pertencia a competência relativa à formação profissional, não tinham mostrado qualquer interesse no projecto da Tecnoforma e nem sequer se pronunciaram por escrito sobre ele.

Um dado adicional para a clarificação do caso surge nos anexos à acta dessa reunião de 13 de Maio de 2004. Trata-se de uma informação assinada por João Paulo Saraiva, então director-geral da OA, destinada a servir de base à discussão do ponto 4.3. E tinha o seguinte título: "Proposta de Protocolo entre a OA e a Tecnoforma SA, com o objectivo de colaborarem na concepção, candidatura a fundos comunitários e execução de curso de formação para arquitectos". Tratava-se, portanto, de formação com fundos comunitários.

"Em dia que não consegui precisar, no passado mês de Janeiro, a arquitecta Leonor Cintra, tesoureira, reuniu-se com o director-geral da Tecnoforma, Luís Brito, e com o consultor da Tecnoforma Pedro Passos Coelho, com o objectivo de lhe ser apresentada uma proposta de colaboração entre a OA e a Tecnoforma", lê-se nessa informação.

Nos pontos seguintes descrevem-se as diligências desenvolvidas pelos serviços do CDN, entre Janeiro e Maio de 2004, para que as secções regionais se pronunciassem, e acrescenta-se que Pedro Passos Coelho foi sendo informado das mesmas.

A síntese do processo parece ser a de que Roseta afastou a proposta de Miguel Relvas - devido à exigência de envolver a empresa de Passos Coelho - e evitou receber este poucas semanas depois. Formalmente não lhes respondeu, dado que a área da formação dependia das secções regionais, e terá pedido aos serviços para que as consultassem, com o resultado já referido.

Nos arquivos nacional e regionais da ordem não foi, contudo, localizada a proposta de Dezembro de Relvas, não havendo sequer a certeza de que ela tenha sido passada a escrito. O mesmo aconteceu com o protocolo da Tecnoforma proposto pouco depois por Passos Coelho, que a actual direcção da ordem diz também não ter sido encontrado. Neste caso, porém, os registos disponíveis identificam-no claramente como um documento escrito e confirmam o seu envio às secções regionais.

João Paulo Saraiva, que acompanhou todo o processo e também não se lembra do objecto concreto da proposta de Passos Coelho, tem ainda presente que a ideia era a de a ordem ser formalmente a promotora do projecto, apesar de ser a Tecnoforma a tratar de tudo. "O que não tenho dúvida é de que houve uma ligação sequencial entre a reunião de Miguel Relvas com a arquitecta Roseta e a ida de Passos Coelho à ordem", salienta.

A grande questão está em saber se um e outro propuseram à ordem a mesma coisa ou parecida, naquilo que seria uma conjugação de esforços com vista à angariação de contratos para a Tecnoforma.

Relvas e Passos respondem

A resposta está numa declaração de Relvas ao PÚBLICO, em meados de Janeiro de 2004 (publicada na edição de 19 de Janeiro), e numa declaração de Passos Coelho, também ao PÚBLICO, em Agosto deste ano.

"Está em estudo um acordo entre o Estado e a Ordem dos Arquitectos, para o aproveitamento de jovens estagiários e arquitectos no levantamento dos edifícios municipais, o que vai permitir a elaboração de planos municipais de emergência e protecção civil", explicou então Relvas, referindo-se expressamente ao programa Foral como fonte de financiamento.

O actual primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, por seu lado, garantiu agora que naquela época só falou uma vez com Helena Roseta [segundo a ordem, não foi com ela, mas com Leonor Cintra Gomes] em nome da Tecnoforma. "Propus-lhe um programa de segurança para edifícios públicos que ela declinou, não teve interesse em fazer. De resto foram os serviços [da ordem] que analisaram e acharam que o mérito da proposta não era assim muito relevante, e portanto declinou."

Conclusão: ambas as conversas de Relvas e Passos com a ordem foram sequenciais no tempo e visaram projectos a financiar pelo Foral, com propostas de formação idênticas, embora não expressas pelas mesmas exactas palavras.

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