Excêntrico. Neurótico. Genial. Solitário. Controverso. O que resta do mito?

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Corbis

Passaram 30 anos desde a morte de Glenn Gould, mas o músico continua a suscitar reacções apaixonadas. É o que nos dizem os pianistas Angela Hewitt, Stephen Hough, Steven Osborne, Pierre-Laurent Aimard e Francesco Piemontesi, para quem o seu legado não deixa de levantar interrogações

Continua a soar como algo que nunca tínhamos ouvido, não importando quantas vezes a escutemos: a primeira gravação das Variações Goldberg de Bach por Glenn Gould, efectuada em 1955, possui uma energia, uma intensidade e uma alegria tais que continua a ser tão irresistível hoje como era quando compradores de discos atónitos a ouviram pela primeira vez, há quase 60 anos. Não é surpresa que este disco tanto tenha iniciado o mito de Gould, como tenha assinalado o início da sua carreira. Mas ninguém poderia ter previsto o efeito que este jovem pianista canadiano teria sobre a música.

Apesar de elogiado por todo o mundo - a sua digressão pela Rússia em 1957 ainda é relembrada com grande admiração pelo pianista e maestro Vladimir Ashkenazy e por todos os outros que lotaram os salões de concertos para o ouvirem -, Gould rapidamente começou a desaparecer da esfera pública. Deu o seu último espectáculo em 1964, confinando-se aos estúdios de gravação no resto da sua curta vida. Uma das suas últimas gravações, em 1981, foi uma segunda versão, claramente mais lenta e mais reflectida, das Variações.

As suas ideias acerca da edição e da montagem estavam décadas à frente do seu tempo: sonhou com uma verdadeira democracia de gravações, em que ouvintes poderiam editar as suas próprias versões de temas, como podemos fazer agora com o clique de um rato. Gould era também um excêntrico hipocondríaco, com traços de personalidade obsessiva (usava um sobretudo e luvas, independentemente da temperatura que estivesse, e insistia em tocar sentado sempre na mesma velha e degradada cadeira) que foram exacerbados nos seus últimos anos de vida por misturas de antidepressivos e ansiolíticos que, ironicamente, foram mais prejudiciais do que úteis. Morreu pouco depois de completar 50 anos, a 4 de Outubro de 1982.

Mas esse foi apenas o início do mito de Gould. A sua mística foi engrandecida pela aparente esquisitice deste génio recluso e pela iconoclastia das suas gravações - o seu brilhante Bach, claro, mas também o seu deliberadamente "tonto" Mozart e um tortuoso Beethoven. Mas por baixo da excêntrica necessidade de tudo controlar existia uma pessoa mais normal do que muitas vezes se tem escrito. Era um solitário, certamente, mas Gould era também um dos músicos mais divertidos e mais brincalhões de sempre, um irreprimível e essencial teórico e pensador de música, e os seus discos e documentários radiofónicos são impulsionados por uma inesgotável curiosidade acerca do mundo e do lugar que a música tem nele. Naquele que teria sido o seu octogésimo aniversário, perguntámos a alguns proeminentes pianistas o que significa Gould para eles. Como se perceberá, continua a ser uma figura controversa.

Angela Hewitt

"Glenn Gould era uma presença inevitável quando eu era criança, em Otava. Ele já era uma espécie de lenda, mas ainda não o género de mito em que se tornou desde a sua morte. Quando eu tinha quatro ou cinco anos, os seus programas passavam na CBC [Canadian Broadcasting Company, rádio e televisão pública do Canadá] no domingo à noite. Lembro-me de correr para o quarto dos meus pais e ver uma pessoa com o piano ao nível do seu nariz! Com aquela idade eu não conseguia perceber o que ele estava a fazer - e mesmo quando já era mais velha, era difícil perceber.

Comprávamos os seus discos sempre que era editado um álbum. Lembro-me do seu Brahms, do seu Strauss, e, claro, do seu Bach. Ouvíamos os seus discos de Bach - os meus pais também eram músicos - e o meu pai dizia: "Este andamento é ridículo. Para que é que ele o está a tocar assim?" (Geralmente, se era uma peça lenta, ele estaria a tocá-la demasiado depressa, e vice-versa.) Mas havia sempre ali algo para admirarmos. Ele era um pianista maravilhoso, e naquela altura a maneira como ele tocava Bach fez sensação. Era totalmente destemido, havia na sua forma de tocar uma tal ferocidade, uma tal exuberância juvenil e energia. Mas eu nunca o imitaria. Nunca me quis tornar numa má cópia de Glenn Gould. Toquei as Variações Goldberg pela primeira vez quando tinha 16 anos. Lembro-me de ir à biblioteca e ouvir a gravação de Gould, a famosa de 1955. Mas apenas a escutei uma vez, e gravei o Cravo Bem Temperado sem sequer ter ouvido a sua versão. O que acontece com Gould é que ele tem coisas maravilhosas e coisas horríveis. Questionamo-nos sobre a razão de ele ter tocado Mozart da forma que o fez, e no Beethoven... Vi um filme sobre as sonatas para violoncelo, com Leonard Rose, e não há muitos pontos de contacto visíveis entre os dois.

A sua memória e as suas ideias eram extraordinárias, mas ele também era excêntrico e incrivelmente neurótico. Existe muita tristeza a lamentar na sua vida - que tenha terminado tão cedo, que ele estivesse a tomar todos aqueles comprimidos. Por vezes penso que o culto de Gould é um pouco exagerado, pois acabamos mais a falar sobre a sua personalidade do que sobre a maneira como ele tocava piano."

PIERRE-LAURENT AIMARD

"Fico fascinado com a força da personalidade de Gould, a sua inteligência, a sua sagacidade e a forma como ele conseguia construir o seu próprio mundo tão completamente através da sua interpretação. Tenho por ele uma grande admiração como pianista devido à forma como ele fez isso. Ele conseguia ser muito interessante e divertido, e os seus escritos têm sempre uma grande qualidade e entretêm muito. Ele era um excêntrico, isso é certo, mas a forma como ele absorvia a música que tocava, a maneira como ele percebia a polifonia de, digamos, Bach torna-o num fenómeno interessante e assegura o seu lugar no panteão dos intérpretes de Bach.

Mas fico de algum modo frustrado e irritado pelo resultado das suas gravações. Frustrado porque parece que ele vivia num mundo exclusivamente de Glenn Gould. A questão é como ele comunica as suas emoções através do som do instrumento. Existe um problema com a sua abordagem repetitiva e automática ao tempo, e existe um problema com o seu som. Não é que não seja um som belo, é mais por não haver flexibilidade na forma como ele fraseia as melodias e as harmonias daquilo que está a tocar. E a irritação? Essa vem dos maneirismos e das afectações da sua interpretação. O que temos como objectivo, enquanto ouvintes, é esquecer o intérprete, apenas ouvir a música, mas Gould, quando interpreta, está muito presente, perturbando e impedindo que nos esqueçamos dele. Há muitas razões comerciaisengenhosas para o culto de Gould que existiu durante a sua vida e que continua até agora. Não sou um fanático nem um membro desse clube, sinto-me sim mais frustrado pelo facto de para muitos ele ser "o" intérprete de Bach. Existem muitas outras pessoas que são realmente notáveis nessa música, e Gould certamente não é alguém que toque a música de Bach de uma forma que não levante interrogações."

STEVEN OSBORNE

"Não consigo pensar nas Variações Goldberg sem pensar em Gould. Considero o que ele faz tão absolutamente admirável que nunca cheguei realmente a aprender essa peça: penso nas Variações, e imediatamente imagino-o a tocar, e não vale a pena tocá-las outra vez como ele as tocava. Inicialmente, foi a sua segunda gravação delas, a que ele fez em 1981, que ouvia. O detalhe contrapontístico que ele descobre em cada compasso é espantoso; ninguém igualou a forma como ele tocou a ária. Mas ainda mais extraordinária é a linha que ele cria e que une toda a peça.

Não tenho a certeza de alguma vez ter ouvido alguma outra obra onde cada nota individual esteja colocada tão cuidadosamente, seja tão pensada. Para algumas pessoas, é demasiado controlado, mas eu não acho isso. Mas mesmo assim prefiro a gravação da obra de 1955. Não me consigo lembrar de um único artista que tenha feito uma mudança tão profunda na sua abordagem a uma peça ao longo de toda a sua carreira. Na gravação mais tardia, ele por vezes vai a uma velocidade que é metade da da primeira. E o que torna a primeira gravação tão maravilhosa é a sua espontaneidade - está mesmo a acontecer naquele momento, e faz-me sorrir. É uma combinação do incrível controlo técnico que ele tem, mas é também ele a expressar algo tão incrivelmente poderoso. É como um murro no estômago."

FRANCESCO PIEMONTESI

"O som de Gould, as suas perspectivas, a forma como ele experimentava as técnicas de gravação vêm-me muitas vezes ao pensamento. Sinto-me grato por ele ter deixado tanto material interessante para nós ouvirmos, lermos e nos entretermos. O seu sentido de humor é realmente único - dêem uma olhadela aos seus "alter-egos", o musicólogo alemão Dr. Klopweisser, o maestro inglês sir Nigel Twitt-Thornwaite e o hostil crítico Theodore Slutz.

Mas o aspecto mais importante do trabalho que Gould efectuou foi o seu caso de amor com o processo de gravação. Ele pensou a tecnologia como uma experiência criativa dentro da música clássica. Existe um vídeo maravilhoso onde se pode vê-lo a brincar (com a ajuda de vários microfones) com diferentes tomadas de som num prelúdio de Scriabin.

As paisagens sonoras que ele cria através desse processo lembram-me um bom régisseur [director de cena] que nos mostra a mesma cena de diferentes ângulos e assim cria perspectivas psicológicas contrastantes. (Estou a pensar, por exemplo, na cena de abertura de Blue Velvet, de David Lynch.) Do que entendo de Gould, ele rejeitou a atmosfera quase religiosa da sala de concertos e desejava estabelecer uma relação mais equilibrada entre o artista e o ouvinte. Ele até encorajava o ouvinte a "manipular" o som das gravações para criar as condições ideais para uma particular peça de música. Num artigo publicado nos anos 1960, escreveu: "Não existe nada que impeça um conhecedor dedicado de actuar como um engenheiro de som e exercer essas predilecções interpretativas que lhe permitam criar a sua própria performance ideal."

Este processo, no qual foi certamente um pioneiro, levou a resultados muito inspiradores: por exemplo, podemos ouvir como cria uma paisagem sonora na sua tardia gravação da Valsa de Ravel, quase como se estivesse a tocar com diferentes colocações de microfones, como fez com Scriabin. Só que a gravação de Ravel foi feita com o mencionado truque de microfone - foi a sua forma de tocar que fez isso tudo. Acho fascinante a sua coragem para tomar um caminho muito distintivo com as suas interpretações. E muitas vezes com resultados maravilhosos - particularmente nas suas gravações de música do século XX. Mas, com todo o respeito pela qualidade da sua interpretação e pela pungência das suas ideias, nunca fui um fã do seu Bach. Pelo que me é dado ver, ele muitas vezes considera Bach como um material abstracto, isolando a música da sua perspectiva histórica. Mas as obras foram compostas num determinado período de tempo, numa dada parte geográfica da Europa, numa visão do mundo protestante bem definida. Também tenho dificuldades em ouvir a sua leitura de Mozart: ele escolhe deliberadamente cruzar todos os limites em termos de forma, estrutura, harmonia e linguagem musical. O preço da singularidade é demasiado para o meu gosto.

As ideias de Gould acerca de som e interpretação florescem melhor sem sairmos do contexto da música do século XX - Prokofiev, Ravel, mas também nas raramente executadas obras de Krenek e Strauss. Muitos compositores dessa época permitem mais liberdade para aplicarmos as nossas próprias ideias."

Stephen Hough

"Apesar de parecer que Gould estava à frente do seu tempo - ou até mesmo que era um profeta - porque percebeu que algumas pessoas preferiam ouvir a sua música em gravações do que numa sala de concertos, ele não teve consciência de que a tecnologia iria tornar a música gravada tão disponível e anárquica. A alta-fidelidade do álbum de vinil possibilitou-lhe uma vida confortável através dos rendimentos dos seus direitos de autor. O que seria impossível no mercado actual, de ainda mais alta-fidelidade, streaming e reprodução, onde se levantam questões sobre a capacidade de manter o controlo sobre os direitos de autor a todos os níveis. De qualquer modo, ele criou uma nova maneira de pensar sobre a música gravada, em que o álbum de vinil se tornou numa forma de arte em si própria - não apenas uma réplica de uma actuação ao vivo. E essa primeira gravação das Variações Goldberg, tão viva e alerta e fresca - acompanhada por referências lendárias de braços encharcados em suor, luvas grossas e assentos instáveis -, anunciou uma nova era nas relações públicas. Mas para além de toda a moda e todo o mito, Glenn Gould era um pianista transcendental. Mesmo que tudo aquilo em que ele tocasse se transformasse em Gould [trocadilho com gold = ouro] (poucos artistas são tão reconhecíveis em tantos estilos diferentes), mesmo assim ele tocava com uma acalorada paixão pela comunicação - tornada ainda mais evidente e tocante por ser emitida, como o foi, de um apartamento isolado nos frios subúrbios de Toronto."

Exclusivo PÚBLICO/ The Guardian

Tradução de Eurico Monchique

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