Mimado, com orgulho!

Não temos direito a estudar tanto tempo, não temos direito a ter acesso a tanta tecnologia, não temos direito a gostar do nosso trabalho (isto é, a trabalhar naquilo em que gostamos), não temos direito a quase nada…

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Enric Vives-Rubio

Paremos tudo. Retiremos as coisas do sítio onde estão e andemos com o tempo para trás. Afinal, para a frente não é o caminho…

Nesta crise económica e financeira em que vivemos dizem-nos que somos mimados, que temos demais, que queremos demais, que sonhamos demais. Não tivemos as guerras nem a fome e a pobreza envergonhadas que outrora existiram, não só neste país, como em toda a Europa. Resultado: estamos estragados com mimo! Afinal, temos mais do que o que poderíamos ter e queremos mais do que é legítimo esperar (do que o mundo nos pode oferecer). Afinal, toda a esperança de prosperidade não passou de um sonho lindo, agora acabado. 

Vejo ideólogos (idiotas?) da austeridade dizer que nos devemos calar, não protestar. Aceitar o trabalho precário, os baixos salários, a ausência de direitos e a ausência de expectativas. Essa sim, é a realidade a que nos temos que habituar! Não temos direito a estudar tanto tempo, não temos direito a ter acesso a tanta tecnologia, não temos direito a gostar do nosso trabalho (isto é, a trabalhar naquilo em que gostamos), não temos direito a quase nada… A realidade, dizem eles, está aí escancarada: acabou-se o tempo da fantasia! 

A esses, eu digo: sou mimado, sim, com orgulho! Porque me deram mimo, carinho e afecto, pude ter uma infância feliz, com pessoas que tinham tempo para me amar e que tinham dinheiro para me sustentar, me educar e me dar saúde. Pude brincar e pude sonhar… Tive tempo para estudar e tive tempo para pensar! Aos seis anos não tive de ir trabalhar para ajudar no sustento da família. Não tive que andar quilómetros à chuva, sem sapatos, para ir à escola. Não tive que comer um pão e meia sardinha como almoço… E não tive que roubar nem me tiveram que transaccionar (houve tempos em que isso aconteceu e há distâncias em que isso ainda acontece…). E não me estragaram…

Olhemos, então, para os factos: somos a única espécie animal que conseguiu manipular a sua própria esperança média de vida e que consegue controlar a sua reprodução. Somos também a única que consegui prolongar a infância (no sentido de alargar o período de aprendizagem e formação dos mais novos), fazendo um investimento no futuro, e somos a que mais cuida do outro, em particular, daqueles que mais precisam (e que sozinhos pereceriam) como os velhos, as crianças e os deficientes. O nosso instinto de sobrevivência e a nossa inteligência determinaram que quiséssemos melhorar continuamente as nossas condições de vida, e as condições de vida dos que nos rodeiam. Eis um traço da humanidade: o querer sempre mais e melhor. Ou, por outras palavras, o perpétuo aumento do mimo para todos! 

Renegar este sentido de melhoria contínua das condições de vida, renegar este sentido crescente do mimo é, no fundo, renegar a própria condição humana. A verdade (que alguns parece precisarem de aprender) é que é com o mimo que podemos crescer como seres humanos, que podemos florescer, e criar um mundo melhor.

O eu ter crescido com expectativas de um futuro melhor, com menos agruras, é uma consequência do mimo, é um sinal de progresso. Ter que quebrar esse sentido é, então, o signo do retrocesso! E assim fica claro: os que esse sentido criticam, só podem ser apóstolos do retrocesso (ou servis de uma qualquer Senhoria…). E tudo isto em nome de uma ideologia que apenas protege a realidade que os dados nos mostram: que o mundo, ao mesmo tempo que se torna mais rico também se tornou mais desigual, de tal forma que uma pequeníssima minoria (essa sim, verdadeiramente estragada com mimos) tem uma cada vez maior percentagem do rendimento global. E só por isso é que já começa a não chegar para todos…

Mas escutemos as canções e lembremo-nos que “há princípios e valores, há sonhos e há amores, que sempre irão abrir caminhos” e façamos com que os apóstolos do retrocesso não sejam suficientes para contrariar o sentido da humanidade. Mais a mais, eles continuamente esquecem-se que a poesia é quem mais ordena e que é o sonho que comanda a vida e ”que sempre que um homem sonha, o mundo pula e avança como bola colorida por entre as mãos de uma criança”. 

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