O segredo do calçado português não está nos preços baixos

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O valor médio do par de sapatos exportado por Portugal é de 24 euros Foto: Manuel Roberto

Design, qualidade de fabrico e marcas próprias: estas foram as receitas do sector do calçado para sair da crise em que se encontrava há uma década. Nos sapatos, o "made in Portugal" vende e aos preços mais elevados.

Se o calçado é hoje uma das raras histórias de sucesso da indústria portuguesa foi porque soube passar por cima das suas próprias tormentas. Há pouco mais de uma década, o sector vivia em clima de crise, ameaçado pela saída de Portugal de alguns gigantes europeus e pela debandada de encomendas para países com mão-de-obra mais barata. Hoje, cresce a nível global, mesmo num cenário económico difícil, no país e no mundo.

Em poucos anos, o sector do calçado reagiu às dificuldades, percebeu as suas próprias limitações e deu-lhes resposta, modernizando-se. Hoje, o triunfo dos sapatos portugueses baseia-se num triângulo: qualidade, design e relação de confiança com os clientes. "O design português tem procura mundial", valoriza Ute Windhausen-Kiss, co-directora da GDS, uma das maiores feiras mundiais do sector que decorreu, na primeira semana do mês, em Dusseldorf, na Alemanha. Segundo a especialista, apenas a Itália ultrapassa Portugal a nível de procura.

Windhausen-Kiss considera que esse reconhecimento internacional se justifica por dois factores: a "qualidade do produto português", há muito reconhecida no meio, e uma aposta em marcas próprias "que permitem reconhecer esse sucesso" a nível global. Na feira de Dusseldorf, Portugal esteve representado por 74 e lançou três novas marcas para o mercado, reforçando uma aposta que, nos últimos anos, tem trazido maior reconhecimento aos sapatos nacionais.

Foi o que fez a Marisport, uma empresa de grande tradição no sector, que começou há 25 anos, em Felgueiras, a criar calçado desportivo e de segurança. Na GDS, apresentou a Neosho, uma marca que quer aliar o "espírito urbano e algum estilo vintage", explica o administrador Adriano Marinho. A empresa factura 14 milhões de euros por ano a trabalhar para outras marcas, mas quer acrescentar os seus próprios sapatos à sua produção, como forma de diversificar a oferta e proteger-se das variações do mercado de encomendas. "Em três a quatro anos, esperamos que a Neosho possa valer 20% da facturação da empresa", antecipa o responsável.

Na mesma feira, o grupo Joia apresentou a Cloud, a sua nova marca, disposta a entrar no segmento do calçado urbano confortável, mostrando algum atrevimento dos empresários portugueses, mesmo em tempo de crise internacional.

A importância dada ao design e à criação de marcas próprias foi um ponto de viragem no calçado português. A essas duas apostas, juntou-se uma modernização tecnológica, a qualificação da mão-de-obra e uma maior abertura aos mercados internacionais, colocando os sapatos portugueses em destinos cada vez mais longínquos. Os outros "trunfos" do sector já estavam há muito nas mãos dos industriais portugueses. A qualidade dos sapatos feitos em Portugal já era reconhecida, sobretudo na Europa, há décadas.

"Quando se pega num produto dos nossos pode ver-se que há uma mão que sabe fazer o sapato", ilustra José Machado, administrador da Macosmi, empresa de Santo Tirso que detém as marcas Atelier do Sapato e CoqueTerra. Os clientes reconhecem esse saber-fazer e exigem o selo "made in Portugal" nos seus produtos. "Isso diferencia", defende Ruben Avelar, da Profession Bottier.

A realidade internacional também ajuda Portugal. A nível global, o sector começou a recordar-se que a qualidade é mais importante do que os baixos preços. E actualmente há clientes que tinham optado por países de mão-de-obra mais barata, abandonado as empresas portuguesas, que começam a voltar a fazer encomendas em Portugal.

Para isso muito contribui a "credibilidade e o serviço" que os portugueses são capazes de prestar, acrescenta Miguel Abreu, administrador da Goldmud. "Portugal é hoje o único país da Europa em que a maior parte da sua produção é feita internamente. Os compradores têm a confiança de saber que quem lhes está a vender vai depois ser capaz de lhes dar uma resposta", explica. A directora de marketing da Dkode acrescenta outra explicação: o cumprimento dos prazos de entrega. "Parece uma coisa óbvia, mas no mundo dos sapatos não é", garante.

Os segundos mais caros do mundo

A história de sucesso do calçado tem agora um novo capítulo. No último ano, os sapatos feitos em Portugal passaram a ser os segundos mais caros do mundo, deixando para trás a França. Cada par destinado à exportação sai das fábricas nacionais a um preço médio de 32 dólares (cerca de 24 euros), um valor que é apenas ultrapassado pela Itália (45,32 dólares).

Os produtores nacionais conseguiram aumentar em cinco euros o valor médio de cada par face ao ano anterior, mostra o estudo "World Footwear 2012 Yearbook", lançado pela Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e seus Sucedâneos (APICCAPS) durante a última feira GDS.

No ano passado a indústria portuguesa foi a 11.ª maior exportadora mundial, apesar de ser apenas o 22.º maior produtor do mundo do sector. Portugal vende sobretudo para o exterior a maioria da sua produção, tendo fabricado 70 milhões dos 21 mil milhões de pares de sapatos produzidos em tudo o mundo em 2011.

Mesmo num cenário de crise, no ano passado o sector conseguiu um crescimento das exportações de 16%. Os bons resultados do calçado português continuam este ano. Na primeira metade do ano, o sector exportou 32 milhões de pares de sapatos, no valor de 747 milhões de euros, o que representa um acréscimo de 3,1% relativamente ao período homólogo.

Os sapatos portugueses continuam a ter um contributo positivo para a balança comercial do país. A indústria portuguesa de calçado exporta, actualmente, mais de 95% da sua produção para 132 países, nos cinco continentes. Nos primeiros seis meses do ano, tiveram um contributo positivo para o saldo comercial de 528 milhões de euros.

Esta realidade contrasta com a que se vivia há menos de uma década, com o sector baseado ainda sobretudo nas encomendas de marcas internacionais e na existência em território nacional de grandes unidades de empresas europeias. Isso tornava-o mais exposto às deslocalizações das grandes empresas europeias que nos anos anteriores se instalaram no país. Um dos casos mais mediáticos foi o do encerramento da Clarks, em Castelo de Paiva, no início de 2003. A firma alemã fechou em Portugal a sua produção quatro anos mais cedo do que o prometido, lançando 588 trabalhadores no desemprego.

Hoje o tecido produtivo é mais versátil e é constituído sobretudo por empresas de média dimensão, que subcontratam unidades mais pequenas nas suas regiões de origem nas fases de maior trabalho e para as etapas da produção mais exigentes do ponto de vista da mão-de-obra. Isso torna a indústria do calçado menos exposta às variações das encomendas.

A viragem valeu-lhe um prestígio internacional que pode ser comprovado, por exemplo, na feira de Dusseldorf. No pavilhão 4, estava instalada a área "White cubes", uma área exclusiva em que os espaços de venda são habitualmente fechados. Nesta zona, as empresas só entram por convite da organização, que lhes cobra um preço de aluguer do stand que é o dobro do praticado no resto da feira. Aqui encontramos duas marcas portugueses, Atelier do Sapato e Catarina Martins. No pavilhão 3, onde estão as principais marcas de moda do sector, a presença portuguesa é impressionante. Ao lado da Converse ou da Desigual, Portugal coloca alguns dos seus principais ponta-de-lança, casos da Cubanas, Dkode, Goldmud ou Fly London.

Depois de Dusseldorf, os industriais do calçado voaram para Milão onde, na semana passada, estiveram presentes na MICAM, a maior feira internacional do sector. Entre 1600 expositores, de 50 países, Portugal fez-se representar com 101 marcas. Estes números fazem desta a maior participação de sempre da fileira portuguesa no certame e a segunda maior delegação estrangeira na feira deste ano, apenas superada pela Espanha.

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