O tempo em que Salman Rushdie foi condenado a ser Joseph Anton

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Andrea Comas/Reuters

Durante 11 anos o autor de Os Versículos Satânicos vestiu a pele de uma personagem ficcional juntando os primeiros nomes de Conrad e Tchekov. Para celebrar a vida depois de uma fatwa de morte, publica agora as memórias desse tempo, que aqui reconstituímos

Em 1989, o octogenário Khomeini agonizava numa clínica nos arredores de Teerão, o coração ainda mais debilitado depois de "beber o cálice de veneno" do cessar-fogo numa guerra de oito anos com o Iraque de Saddam Hussein. A 4 de Fevereiro, intrigado com as imagens que vira no noticiário da tarde, inquiriu o filho sobre o que se passava, e este informou o ayatollah de que muçulmanos estavam a ser mortos na Índia e no Paquistão em protestos contra Os Versículos Satânicos, um livro "insultuoso para o islão".

"Poucas horas depois, um documento foi levado aos escritórios da rádio iraniana e apresentado como um édito [fatwa] de Khomeini", relata o autor do "livro blasfemo" em Joseph Anton: Memórias, obra centrada no período em que deixou de ser Salman, estrela literária que, em 1981, ganhara o Booker Prize com Os Filhos da Meia-Noite, para se tornar apenas Rushdie, ser maldito que poderia render milhões de dólares a quem o matasse.

A nova obra de Salman Rushdie em que revisita o seu tormento mistura, no título, os primeiros nomes de dois dos seus escritores favoritos, Joseph Conrad e Anton Tchekov -, a "personagem ficcional" que inventou para se "tornar invisível" durante 11 anos. Embora o lançamento esteja marcado para o próximo dia 18, a revista The New Yorker deu já a conhecer uma parte, The Disappeared - How the fatwa changed a writer"s life, que serve de base para as citações usadas neste artigo (traduzidas pela editora D. Quixote, que detém o exclusivo para Portugal).

O édito do teólogo que, em 1979, derrubara o imperador Mohammad Reza Pahlavi instaurando a primeira república islâmica "era apenas um pedaço de papel com um texto escrito à máquina", observou Rushdie. Aparentemente, "ninguém viu jamais o documento formal, se é que ele existiu. O pedaço de papel foi entregue ao locutor da estação que o leu" ao país. As palavras de Khomeini terão sido estas: "Informo o orgulhoso povo muçulmano que o autor deste livro, Versículos Satânicos, que é contra o islão, o profeta [Maomé] e o Corão, e todos os envolvidos na sua publicação e conscientes do seu conteúdo estão condenados à morte, a partir de agora. Apelo a todos os muçulmanos zelosos que os executem rapidamente, onde quer que os encontrem, para que nenhum deles se atreva a ofender a santidade islâmica. Quem morrer a fazer isto será admirado como mártir e irá directamente para o paraíso."

Era Dia de São Valentim e, em Londres, Rushdie teve conhecimento desta "sentença" quando a BBC o contactou. Esqueceu-se do nome da jornalista que lhe dissera "que tinha sido posto um ponto final em toda a sua antiga vida e estava prestes a iniciar-se uma existência nova". Mas recorda-se de ter pensado: "Sou um homem morto", e de se ter questionado sobre quantos dias lhe restavam, "provavelmente um número de um só dígito". Como se "tivesse sido atingido por uma corrente eléctrica", deambulou sem nexo pela casa, fechando cortinas, verificando as trancas das janelas, incapaz de explicar o que lhe estava a acontecer.

Naquele Dia dos Namorados, a crise no casamento com a romancista americana Marianne Wiggins foi suspensa e adiado o divórcio inevitável, porque ela o alentou a ser corajoso. Não desistiu, por exemplo, de dar uma entrevista à CBS anteriormente marcada, nem de estar presente na homenagem fúnebre ao seu grande amigo, o também escritor Bruce Chatwin. No entanto, quando saiu de casa, na 41 St. Peter"s Street, onde vivia "há mais de meia década", teve a certeza que não regressaria tão cedo.

Na entrevista à CBS, na primeira reacção ao que lamentava ser "uma tentativa de apagar o seu passado", enfurecido com a violência e as injúrias por parte de muçulmanos extremistas, Rushdie declarou, com orgulho assumido: "Quem me dera ter escrito um livro mais crítico." Mas o medo criava raízes. Ele temia pela segurança da mãe e da irmã mais nova, que viviam em Carachi, no Paquistão - onde os protestos causaram dezenas de mortos e feridos -, e de outros familiares, mas sobretudo preocupava-o a protecção do filho Zafar, prestes a completar dez anos e que residia com a mãe, Clarissa, perto de Clissold Park.

Foi para aqui que Rushdie se dirigiu depois das exéquias de Chatwin, na centenária catedral ortodoxa grega de Santa Sofia. À sua espera estava uma patrulha da polícia que o aconselhou a manter-se discreto até que responsáveis políticos e de segurança decidissem o que fazer. E foi, pois, na casa de Clarissa que ele combinou com Zafar ligar todas as noites às 19h00 e, se mãe e filho não estivessem em casa, teriam de deixar mensagens nos gravadores dos telefones fixos - num tempo em que "os termos PC, portátil, telemóvel, Internet, Wi-Fi, sms e email eram desconhecidos ou muito recentes".

Voltaire, observa Rushdie em Joseph Anton, recomendava que os escritores vivessem perto de uma fronteira para que, caso irritassem poderosos, pudessem fugir - o que aconteceu ao grande pensador francês do Iluminismo quando importunou um aristocrata e se exilou na Inglaterra durante três anos. Só que, em tempos de "acção extraterritorial", ninguém está a salvo.

A partir de agora, a vida diária de Rushdie seria regida segundo dois conceitos: "segurança" e "risco". Ou como ele explica: "O nível de ameaça era geral, mas o risco era específico" e, neste caso, cabia ao Special Branch, unidade de elite da Polícia Metropolitana, avaliar a gravidade da situação. Assim, a partir de 15 de Fevereiro de 1989, porque o nível de ameaça era "extremamente sério", ou seja, "de grau 2", passou a ser escoltado pelos polícias (ambos voluntários devido aos "imponderáveis") Stanley Doll e Ben Winters (nomes fictícios). Teria ainda ao seu dispor dois carros (para o caso de um se avariar) e dois motoristas.

Embora se sentisse um prisioneiro a caminho da cadeira eléctrica, os serviços de segurança britânicos não olharam a meios para garantir que os executores de Khomeini não ganhariam os vários prémios oferecidos (por uma fundação e um ayatollah iranianos e uma associação paquistanesa) pela execução de Rushdie. Levavam-no, por exemplo, ao cinema, quando a sala já estava escura para que não fosse reconhecido. Um dia, quando lhe apeteceu ver Zafar, o filho, e Sameen, a irmã mais velha, foi transportado num Jaguar blindado que o impressionou pela estrutura sólida e elevado consumo de combustível. Na descrição, sobressai o prazer de uma conversa com Dennis, um dos condutores. "Sabe qual é o termo técnico para nós, motoristas do Special Branch? (...) É O.F.D."s (...) Only Fucking Drivers."

Como advogada, Sameen ofereceu-se para defender o irmão, mas este recusou que ela fosse igualmente vítima da fatwa que via como uma forma de Khomeini arregimentar de novo os fiéis após a derrota humilhante imposta ao Irão pelo Iraque (graças a satélites, fundos e armas dos EUA e Europa) num conflito que causou mais de um milhão de mortes. Rushdie tornou-se "o homem que ninguém amava e muitos odiavam".

Omid Memarian tinha 14 anos e vivia em Teerão quando Khomeini condenou o escritor que, em 2007, já quase livre de perigo, haveria de ser condecorado "Sir" pela Rainha de Inglaterra. "Foi a primeira vez que o ayatollah emitiu uma fatwa contra um escritor", disse à revista 2, em declarações por Facebook, o agora jornalista freelance que colabora com a agência IPS (Inter Press Service), o serviço persa da BBC, os jornais New York Times e Los Angeles Times, entre outras publicações. "Os livros de Rushdie, antes de Os Versículos Satânicos, eram muito populares no Irão. A primeira reacção entre os leitores foi a de ir à procura das suas obras anteriores, e toda a gente esperava para ver quem iria fazer a primeira tradução para farsi, de modo a encontrar resposta para a questão: "Porquê uma fatwa por escrever um livro?""

Para Memarian, que teve de fugir do seu país em 2004, depois de, Outubro a Dezembro, ter sido detido numa cela solitária e torturado, por ter publicado artigos em vários jornais favoráveis aos reformistas, "o incidente" com Rushdie mostrou a muitos compatriotas "a verdadeira natureza do regime islâmico". Na mesma altura, ou seja, finda a guerra com o Iraque e na sequência de uma tentativa dos Mujahedin-e Khalq (Combatentes do Povo, principal organização de resistência armada e aliada de Saddam), de conquistar o poder, "milhares de dissidentes políticos foram executados nas prisões iranianas."

A fatwa contra Rushdie, acrescentou Omid Memarian, "foi uma forma de os líderes religiosos no Irão mostrarem que controlam a vida de toda a gente. Foi também um forte sinal de que o sentido criativo e de imaginação de escritores, escultores ou outros não podiam ultrapassar os limites do islão. Recordo-me ainda de que havia uma ânsia enorme para ler o livro de Rushdie em farsi, mas quem podia correr esse risco? Essa pessoa, se a encontrassem, seria acolhida também com outra fatwa de morte. E, no Irão, não falta generosidade para emitir esses éditos absurdos".

O jornalista não tem dúvida de que a sentença decretada por Khomeini "mudou o mundo para Rushdie e mudou a imagem do fundador da República Islâmica para milhões de pessoas - e, em ambos os casos, para sempre".

Nos primeiros dias de "clandestinidade", Rushdie foi notificado por Stan e Benny de que a sua salvação poderia estar num pedido de desculpas sugerido por Ali Khamenei, na altura Presidente do Irão e futuro sucessor de Khomeini como Supremo Líder. Os polícias aconselharam que ele "deveria fazer qualquer coisa para baixar a temperatura". Entregaram-lhe um "texto aprovado" que poderia ser alterado, se "não lhe agradasse o estilo". Só que "assiná-lo seria admitir derrota", e como poderia ele aceitar "abandonar os seus princípios e a defesa do seu livro em troca do apoio e protecção das autoridades britânicas?"

Havia outras vidas em jogo, como a do empresário Roger Cooper, preso na cadeia de Evin, em Teerão, desde 1985, condenado à morte e mais dez anos por espionagem. Também era preciso resgatar no Líbano 96 reféns, a maioria britânicos e americanos, sequestrados pelo Hezbollah, movimento xiita criado pelos Guardas da Revolução iranianos. "A situação deles é pior do que a sua", disse Stan a Rushdie, recomendando que "fizesse a sua parte".

Rushdie cedeu (mais tarde, haveria também de se reconverter ao islão e depois renegar de novo a fé). E a sua declaração foi esta: "Como autor de Os Versículos Satânicos, reconheço que os muçulmanos em muitas partes do mundo ficaram genuinamente desgostosos com a publicação do meu romance. Lamento profundamente este desgosto que a publicação causou aos sinceros fiéis do islão. Vivendo nós num mundo de muitas crenças, esta experiência ajudou a lembrar-nos de que temos de estar conscientes da sensibilidade dos outros."

O futuro Comandante da Ordem das Letras e das Artes de França (1999) e membro honorário estrangeiro da Academia Americana das Artes e Letras (2008) interiorizou que se desculpara pela mágoa causada mas não pelo livro. O "texto subliminar" era: "Sim, devemos estar conscientes das sensibilidades dos outros, mas não devemos render-nos a elas." O gesto foi primeiro "rejeitado, depois parcialmente aceite e de novo rejeitado, quer pelos muçulmanos britânicos como pela liderança iraniana", queixou-se o escritor. Khomeini, que haveria de morrer de paragem cardíaca a 3 de Junho de 1989, manteve-se inflexível: "Mesmo que Salman Rushdie se arrependa e se torne no mais pio dos homens de todos os tempos, é dever de todos os muçulmanos retirarem-lhe tudo o que ele tem, a sua vida e a sua riqueza, e enviá-lo para o inferno."

Porque tradutores foram assassinados, livrarias incendiadas e editoras recusaram imprimir a sua obra, Rushdie também foi implacável para com os responsáveis muçulmanos, em particular no Reino Unido. Cita a sua irmã Sameen, que os ataca como hipócritas e oportunistas: "Eram líderes sem seguidores. (...) Durante uma geração, a política das minorias étnicas na Grã-Bretanha foi secular e socialista. Era a maneira de as mesquitas controlarem a religião. Os asiáticos britânicos nunca antes se haviam dividido em facções hindus, muçulmanas e sikhs."

O actual presidente da Associação dos Muçulmanos Britânicos, David Rosser-Owen, foi um dos "envolvidos no Rushdie Affair", como ele designou o processo do escritor de origem indo-paquistanesa num diálogo com a revista 2 por Facebook e email. Na época, ele era apenas membro executivo, mas participou em reuniões com a sua mulher, Bashiera, que trabalhava para a Penguin Books, editora britânica de Os Versículos Satânicos; com o seu antecessor, Rasjid Skinner; com Ayman Abdelkader Ahwal, um inglês já falecido, marido da cantora pop francesa Catherine [Aziza] le Forestier, e membro da World Muslim League em Londres.

"Temos de sublinhar, antes de mais, que a histeria à volta da publicação do livro surgiu quase exclusivamente da comunidade oriunda do Paquistão e do Bangladesh", afirma o Shaikh David. "Não houve reacções da parte da comunidade da Malásia e da Indonésia, nem sequer dos cidadãos de origem na África Oriental e Ocidental. Da comunidade árabe e da turca, a única observação foi a do defunto Ramazan Güney, um turco, que disse: "Coisas piores foram escritas em turco por Ziya Gökalp" ou em árabe, por Taha Hossein"."

Gökalp era um sociólogo, poeta e activista político que ajudou Mustafa Kemal Atatürk a definir o nacionalismo do Estado que emergiu do Império Otomano; o egípcio Hossein foi um dos mais influentes intelectuais do movimento modernista árabe.

Os jornalistas, segundo David, procuravam "comentários de loucos", mas como as declarações que obtinham "eram demasiado razoáveis", acabaram por citar só Yusuf Islam. A primeira reacção do cantor que se chamava Cat Stevens até aceitar o Islam (religião que, em árabe, se traduz por Submissão) foi durante uma palestra na Kingston University, em Londres: "Ele [Rushdie] deve ser morto. O Corão é bem claro - se alguém difamar o profeta, tem de morrer."

Posteriormente, num debate na BBC, Yusuf Islam/Cat Stevens foi também provocador, quando inquirido o que faria se Rushdie entrasse no restaurante onde ele se encontrasse: "Provavelmente, ligaria ao ayatollah Khomeini ao invés de ir a uma manifestação queimar a sua efígie."Prossegue Shaikh David.

É certo que, "em Bradford e em Burnley, quiseram queimar o livro de Rushdie em público", refere David. "Advertimos contra essas acções, salientando que ninguém as iria compreender; que seriam actos comparáveis à queima de livros na Alemanha dos nazis nos anos 1930; e que seria um ataque ultrajante à liberdade de expressão. Fomos ignorados."

"Há muitos elementos que precisam de ser avaliados, porque muitas pessoas, no jornalismo e nas editoras pensavam cinicamente naquela altura, que enviar um exemplar de Os Versículos Satânicos a Khomeini seria uma forma de ganhar notoriedade e vender mais livros", lastima-se David, evocando um episódio antigo para justificar o seu raciocínio.

Em 1970, conta, Auberon Waugh, escritor e jornalista britânico, "publicou no semanário The Sunday Times um artigo jocoso, na realidade, bastante engraçado como a maioria dos seus textos, no qual chamava "apanhadores de Alá" às shalwar, as calças largas usadas pelos turcos no passado e pelos paquistaneses na actualidade. Isso gerou uma tumultuosa manifestação de cerca de 250 muçulmanos junto à sede da News International em Londres onde foram queimados exemplares do Times. Foi exigido aos governos muçulmanos que boicotassem o jornal, que expulsassem os correspondentes do Times dos países islâmicos e um pedido de desculpas, na primeira página, por Waugh ter "insultado e difamado o islão". Ainda mais surpreendente, uma multidão enfurecida incendiou a biblioteca do British Council em Rawalpindi. Waugh foi despedido do Times - algo que os manifestantes nunca reclamaram."

Estes "250 muçulmanos" eram todos paquistaneses, realça David, que fazia a reportagem para o entretanto extinto Maida Vale and Bayswater News. "Isto é relevante porque, depois daquela manifestação e do incêndio em Rawalpindi, subiram as vendas de exemplares antigos que continham o artigo de Waugh e, durante algum tempo, a tiragem dos jornais The Times e The Sunday Times atingiram números recorde. A lição a tirar é a de que chatear os paquistaneses dá lucro. A esta conclusão se chegou também em 1989, quando uma cópia de Os Versículos Satânicos foi enviada a Khomeini pela própria Penguin Books. E o representante da Penguin na Índia, um sikh, alertou contra a publicação do livro, quando o manuscrito ainda estava a ser revisto pela editora, porque iria provocar uma convulsão no subcontinente."

David Rosser-Owen não esconde a antipatia por Rushdie: "É uma pessoa arrogante e bastante desagradável, que não é o típico paquistanês, quer no Reino Unido quer na América. Ele provém de uma classe social bastante superior e, além disso, foi educado na Rugby School e na Universidade Cambridge. Conheço muito bem alguns dos membros da sua extensa família. Um dos seus primos em primeiro grau é a filha de um general do Exército Indiano Britânico (mais tarde o Exército Paquistanês), por exemplo. A locutora da BBC Mishal Husain é uma prima distante. Por isso, a dedução que, devido ao seu livro Os Versículos Satânicos, ele tem vivido um pesadelo não é credível."

O presidente da Associação dos Muçulmanos Britânicos nota que, em Os Filhos da Meia-Noite, já adaptado ao cinema e com estreia para breve, Rushdie "enfureceu os indianos", com o retrato peculiar da sua cultura, e com Shame "irritou os paquistaneses", numa sátira aos generais do país. Sendo que estas duas obras "antecederam , em cinco ou mais anos, Os Versículos Satânicos, obviamente, Rushdie procura atrair notoriedade com os seus livros".

Inquirido sobre se leu a obra que aborda os perigos das migrações (de Bombaim/Mumbai para Londres ou do islão para o ateísmo), o Shaikhbritânico assegura: "Sim, eu li! Foi uma tarefa extremamente árdua, porque está muito mal escrito. Acho que o editor o deveria ter devolvido para ser reescrito. Contudo, porque Os Filhos da Meia-Noite havia ganho o Booker Prize, presumo que Rushdie foi tratado com luvas e tudo o que fosse da sua autoria seria bem recebido. Um dos polícias que o protegeu disse-me, em tom jocoso, que a recompensa oferecida por Khomeini teria valido a pena só pelos danos que Rushdie fez à literatura inglesa. Para mim, é lixo literário."

Ao contrário de Khomeini, porém, David acha que "nem o islão - nem qualquer outra religião - pode ser insultado, seja por Salman Rushdie ou Dan Brown [o autor do Código Da Vinci, criticado pela Igreja Católica]. Aliás, ele "tem quase a certeza" de que Khomeini nem sequer leu Os Versículos Satânicos. "Porque é uma leitura muito difícil até para os falantes de inglês e, além disso, um chefe de Estado teria outras coisas para fazer. Provavelmente, ter-lhe-ão dado uma sinopse e, como todos sabemos, as sinopses reflectem as opiniões dos burocratas que as redigem - portanto, suponho que a sua fatwa foi emitida a partir disso."

Quanto ao édito, declarado "assunto encerrado", em 1998, pelo ex-presidente iraniano Mohamad Khatami (um pragmático que defendia o fim do isolamento e a reaproximação ao Ocidente), Shaikh David dá a sua opinião como muçulmano sunita: "Não seria válido sem um tribunal e um julgamento, fosse o castigo o corte dos pulsos, uma multa ou a pena capital. Em todo o caso, provocar uma rebelião civil é inaceitável em qualquer civilização."

A explicação em termos de doutrina xiita é dada à revista 2, por Facebook, por outro Shaikh, Muhammad Amin-Evans, perito na corrente islâmica seguida pela maioria dos iranianos e professor na Queen"s Foundation em Londres, uma faculdade teológica Anglicana/Metodista/Reforma Unida. "O que me foi dado a perceber na fatwa contra Rushdie, por parte dos meus orientadores próximos do ayatollah Khomeini naquele tempo, é que pessoas já ligadas aos protestos foram pedir-lhe uma opinião em abstracto, por exemplo, "se um homem faz isto e aquilo, qual é o castigo?" A resposta foi então aplicada a Rushdie e uma associação privada de "caridade" ofereceu uma recompensa."

"A jurisprudência xiita", especificou Amin, "é talvez mais formal na estrutura do que outras escolas islâmicas de pensamento. Estuda-se [no xiismo] o Corão, os hadith [tradições orais da era de Maomé], História, Direito, Filosofia, Línguas..., para receber o título que lhe permite ser designado por Alim. Depois desse patamar, alguns estudiosos tiram o curso de Dars ak-Kharaj. Os que completam este processo com aprovação dos seus pares e teólogos mais veteranos tornam-se Mujtahids, podendo exprimir, a partir daí, pareceres legais e actuar como juízes. Só um pequeno número de Mujtahids é validado pelos seus pares e aceita a responsabilidade de publicar opiniões legais, agindo como guias em assuntos de direito religioso para quem escolha segui-los. Os que são reconhecidos são venerados como Marja al-Taqlid" ou Fonte de Emulação.

Ora, segundo o "Imã Evans", título que faz dele um guia espiritual, o ayatollah que derrubou a monarquia e conferiu aos mullahs os poderes temporais que sempre pertenceram aos reis persas "nunca foi aceite como um jurisconsulto porque os seus estudos avançados tendiam para a espiritualidade, filosofia e política". No caso de uma fatwa, esta "requeria um julgamento constitucional, como vários teólogos xiitas repetiram durante o "Caso Rushdie"".

Amin-Evans não revelou se leu Os Versículos Satânicos, mas Daayee Abdullah, outro membro da Associação dos Muçulmanos Britânicos, não hesita em dizer-nos, também por Facebook, que comprou o livro a um colega recém-chegado dos EUA, em 1988 (ano em que o livro foi lançado), quando vivia no Cairo, onde uma editora fazia "cópias caseiras".

"Gostei da obra e não acho nada que seja um insulto ao islão", frisou. "Algumas pessoas são demasiado rigorosas na expressão da sua fé. Quando os muçulmanos aceitarem que os hadith não são exactos nem a verdade absoluta, poderemos ter uma visão alternativa dos textos corânicos e acabar com a violência. Ao contrário dos cristãos, em situações semelhantes, os muçulmanos não seguem os padrões mais elevados dos seus ensinamentos religiosos."

Omid Safi, professor de Estudos Islâmicos na Universidade da Carolina do Norte (EUA), também nos diz, por email, que leu Os Versículos Satânicos mas achou o livro "muito fraco para os padrões de Salman Rushdie", de quem se considera "um grande admirador". Ao contrário de Abdullah, ele não duvida que a obra condenada por Khomeini "é, deliberadamente, insultuosa e ofensiva". Cita, por exemplo, o facto de Mahound, um protagonista, "ser a forma pejorativa que os cristãos medievais usavam para retratar Maomé como diabo".

Em Joseph Anton, Rushdie insurge-se com a "distorção subtil" do título completo do seu livro. Os Versículos Satânicos perdeu o inicial "Os" e, com isso, "deixou de ser um romance" para se confundir com Satanic Verses, "versos realmente satânicos". Trata-se de um episódio, fonte de discussão entre teólogos muçulmanos e expurgado do Corão, que terá sido uma tentativa de o demónio convencer Maomé a aceitar três deusas pagãs (al-Lat, al-Uzza e Manat). Ele resistiu, mantendo-se leal a Deus, embora tivesse sido mais difícil enfrentar a hostilidade em Meca contra a comunidade de crentes (Umma, em árabe) que os muçulmanos tentavam formar.

A inspiração, revela Rushdie, surgiu em 1966, quando estudava História em Cambridge. "Aqui estava um paradoxo fascinante: uma teologia essencialmente conservadora que olhava para o passado (...) tornou-se numa ideia revolucionária, porque as pessoas que atraía eram, sobretudo, as que tinham sido marginalizadas pela urbanização - os pobres, a gente da rua. Talvez fosse assim porque o islão, a nova ideia, era tão ameaçadora para a elite de Meca."

Omid Safi renega "os demagogos que pretendem ser teólogos e juristas para incitar a populaça a sublevações. Fingem que operam segundo a tradição islâmica, mas não se deve dar um pódio aos zelotas e idiotas, sejam muçulmanos ou não. O mais importante a reter é isto: é falsa a dicotomia entre islão e liberdade de expressão. Na verdade, isso coloca os muçulmanos ocidentais na posição insustentável de terem de escolher entre a sua fé - que eles prezam - e as suas liberdades políticas - que eles também valorizam."

Quanto a Rushdie, que recuperou uma vida mais ou menos serena e voltou a ser idolatrado em púbico, adoptou os lemas de dois marinheiros. O de James Wait, personagem de O Negro do Narciso, de Joseph Conrad: "Devo viver até morrer." E "as palavras imortais" de Popeye, que acompanham a sua conta de Twitter: I yam what I yam and that"s all that I yam.

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