O que aproxima Jeff Koons e um doente do Júlio de Matos?

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Há anos que José Ribeiro, paciente do Júlio de Matos, desenha todos os dias, enchendo cadernos com a sua banda desenhada erótica e autocentrada JOSÉ FERNANDES

O Pavilhão 31 já tinha cruzado o trabalho de Cabrita Reis, Miguel Palma e Souto de Moura com o de doentes do Júlio de Matos. Agora internacionaliza-se: o norte-americano Jeff Koons enviou quatro obras para serem expostas com as de José Ribeiro

Em duas das paredes estão quatro auto-retratos do conhecido artista norte-americano Jeff Koons, da série Art Magazine Ads. Noutra parede, ampliados, estão desenhos de José Ribeiro, doente do hospital psiquiátrico Júlio de Matos - também estes auto-retratos (repare-se na seta por cima da cabeça da figura central deste trabalho organizado como banda desenhada). E no meio da sala de exposições do Pavilhão 31 do Júlio de Matos, no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, está uma ambulância antiga, sobre a qual José Ribeiro desenhou.

A exposição 31/2 (é a segunda que se realiza no Pavilhão 31, onde o projecto está instalado há um ano, depois de ter passado por outros pavilhões do hospital) é inaugurada hoje com a presença do ministro da Saúde, Paulo Macedo, e cruza as obras de duas pessoas que não se conhecem pessoalmente. De Koons, José Ribeiro sabia essencialmente que foi casado com antiga actriz porno e deputada italiana Cicciolina - com a qual fez, representando cenas de sexo, a série Made in Heaven, em 1990.

Mas da parte de Koons, conta Sandro Resende, que há 13 anos dirige o atelier de arte com os doentes do Júlio de Matos, não houve qualquer hesitação. "Contactámos a galeria dele, a Sonnabend, fizemos a proposta e duas semanas depois tínhamos as obras para escolher." Os trabalhos do norte-americano expostos agora em Lisboa têm, segundo a organização, um valor conjunto superior a 160 mil euros.

A galeria enviou duas séries de trabalhos, a Monkey Train, e esta Art Magazine Ads, que acabou por ser a escolhida. E porque é que se lembraram de Koons? O cruzamento de trabalhos de artistas plásticos consagrados com os doentes do atelier está longe de ser inédito e é, aliás, central - desde que o projecto começou, no antigo Pavilhão 28 do hospital, já passaram por ele nomes como Pedro Cabrita Reis, Eduardo Souto Moura e Miguel Palma, sempre em diálogo com os artistas/doentes.

Desta vez, Sandro Resende achou que, como José Ribeiro "faz desenhos eróticos, a roçar a pornografia", faria todo o sentido mostrá-lo no Pavilhão 31 ao lado de Koons, que sempre jogou também tanto com o erotismo e a pornografia como com o auto-retrato. E como Koons pintou um carro de corrida a convite da BMW, surgiu a ideia de pôr José Ribeiro a desenhar sobre uma velha ambulância.

Trata-se, então, de uma exposição em que há uma "partilha de informação", na expressão de Sandro, entre um artista consagrado e um artista-doente, cujo trabalho se situa na área da arte bruta (arte feita por doentes mentais ou por pessoas sem qualquer formação artística e que são movidos apenas pelo impulso criativo e não por qualquer interesse comercial). Não é bem assim, defende Sandro Resende. "Não gosto muito da expressão arte bruta. O que temos aqui é arte contemporânea feita por doentes mentais."

A definição de arte bruta e a delimitação das suas fronteiras é objecto de vivas polémicas, sobretudo desde que o género se tornou mais conhecido, tendo surgido em vários países galerias vocacionadas exclusivamente para a arte bruta, e tendo esta entrado já em alguns dos grandes museus do mundo. Mesmo nas bienais, na Alemanha e na Holanda, e nos encontros internacionais em que o projecto do Pavilhão 31 tem participado, a confusão é grande, explica Sandro. "E há um enorme interesse pelo nosso trabalho porque o nosso processo de trabalho não é muito comum."

Foi há 13 anos que tudo começou. Sandro respondeu a um anúncio de jornal que pedia um professor de cerâmica para o atelier do Júlio de Matos. "Eu de cerâmica não percebia nada, mas interessava-me trabalhar com os doentes." Veio e começou a dar aulas de pintura, desenho, vídeo e fotografia. O trabalho foi-se desenvolvendo. "Este foi o primeiro hospital em Portugal a ter uma galeria de arte", sublinha.

Quanto à ideia de que os doentes mentais trabalham de forma compulsiva, obsessiva, e não se interessam por vender, Sandro diz que não é de todo assim. "Para eles é muito importante que o trabalho que fazem seja reconhecido." Há aulas todos os dias entre as 10h e as 16h, e as pessoas de fora do hospital podem visitar o atelier e comprar peças aos doentes. "São eles que negoceiam, que definem o preço, que tratam de tudo."

A ideia do trabalho absolutamente espontâneo também não corresponde à realidade, na visão do responsável pelo projecto. "As pessoas aqui começam com o procedimento normal de aprendizagem. Depois vão para o lado pessoal e trabalham os temas que lhes interessa trabalhar. Não há aqui o coitadinho, o doentinho, o não consigo fazer."

Sandro ajuda-os com as técnicas. "Se me perguntam qual a técnica para desenhar um cubo, ensino, não vou deixá-los ali a tentar e a errar imensas vezes só para ser espontâneo." E quando há uma exposição todos trabalham para isso. José Ribeiro, que há muitos anos desenha todos os dias, enchendo cadernos e cadernos com a sua banda desenhada erótica e autocentrada, "quando entrou aqui e viu a exposição montada fez um sorriso enorme, como há muito tempo não lhe via".

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