Portugal à luta com as classes sociais

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Foto: Rui Gaudêncio

Nas últimas décadas, o país cobriu-se de auto-estradas, rotundas e centros comerciais. O ensino superior massificou-se e compensa no salário ao fim do mês. As classes médias alargaram-se: mas houve mobilidade social ou melhorámos apenas as condições de vida? Leitores do PÚBLICO online voluntariaram-se para contar a sua experiência. Há quem ganhe hoje cinco vezes mais do que os pais, quem tenha visto as expectativas de subir um degrau serem defraudadas e quem, ao descer, tenha perdido a voz na família. TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NA REVISTA 2 DE 5 DE AGOSTO DE 2012

Em casa não havia estantes com livros. Não havia férias em família. Não havia actividades extracurriculares. Não havia praticamente hipótese de fazer desporto. E durante muito tempo a única ligação com o mundo era um televisor “a preto e branco”, onde Sandra via documentários sobre vida selvagem, história, viagens. Ela pensava: “Quero conhecer aquilo que ali está.” Em casa, o incentivo para estudar era “mais pela negativa”: “Ou tiras boas notas, ou vais trabalhar”, diziam-lhe. Nunca soube o que era outra coisa: ter más notas, “perante o sacrifício que os pais faziam”, “era quase vergonhoso”. “Desde que me conheço como gente que ir trabalhar em vez de estudar não era sequer uma opção.”

A primeira vez que Sandra saiu de Portugal “a sério” tinha 21 anos. Hoje, aos 32, está em Inglaterra a trabalhar numa multinacional na área da engenharia eólica, uma das maiores do ramo. Escreve-nos a contar a sua história pedindo o anonimato, falamos depois ao telefone, e a imagem da mulher que, contra todas as expectativas, seguiu a sua determinação em aprender com os melhores e conhecer o mundo vai ficando mais nítida. A sua história, sabe-o, tem os ingredientes das histórias de sucesso. É o típico caso de quem venceu na vida. Ganha cinco vezes mais que os dois pais juntos.

Os pais são filhos de “pessoas pobres de ambiente rural” do interior Norte. Depois da morte do avô de Sandra, o pai foi criado por uma família em troca de trabalho. Tornou-se carpinteiro e não sabe ler (ela tem um livro de ficção publicado). A mãe saiu da escola quando terminou a 4.ª classe, para ajudar em casa. Foi costureira, casou-se “cedo de mais”, teve duas filhas.

Sandra, a mais nova, fez a universidade no Norte com o “dobro ou o triplo” do esforço que colegas “de background melhor”: nunca teve explicações, computador com Internet, alguém “próximo com quem discutir as opções de futuro”. “O meu percurso foi muito mais longo porque o ponto de partida é uma situação em que vivia em habitação social, com pais com muito pouca escolaridade, muito poucos recursos.”

Hoje diz que desde cedo os pais perceberam que ela “era diferente” e depositaram as esperanças de filha normal na irmã – professora, casada e com filhos, vive perto deles. “Em mim vêem a outra. Não me importo, é o que sou.”

Inês, de 36 anos, abre as portas de casa com um sorriso e uma sopa na mão, aquecida pelo marido antes de ele ir para o trabalho numa empresa gráfica. Arquitecta e designer de comunicação, mora no centro de Lisboa, num apartamento com luz, paredes da sala pintadas de azul-claro, desenhos da filha pendurados num armário, estantes de madeira com livros e dossiers, uma escada encostada para dar acesso às prateleiras mais altas.

A casa foi “emprestadada” pelos pais, que, diz a brincar, são de alguma forma os seus “cartões de crédito”. É a angústia com o que vai e não vai poder dar à sua filha de cinco anos que a motiva a participar na reportagem.

Conversamos numa mesa branca redonda, cadeiras a condizer. Há aparelhagem, computador, televisor de ecrã plano. Muitos dos gadgets foram coisas “recicladas” do pai, sublinha. No quarto da filha há imensas caixas coloridas como as paredes — e lá dentro, adivinha-se, brinquedos. Inês parece mais nova do que é quando se levanta para ir buscar um Nespresso à cozinha, divisão que dá para um quintal-jardim que será arranjado quando houver dinheiro.

Ao pôr o leite no frigorífico, diz-nos que agora bebe o de “marca branca”, metade do preço do que costumava comprar. É um dos cortes que fez para ajustar o orçamento. Na família há dois carros, mas ela anda a pensar que talvez faça sentido ter apenas um e começar a usar transportes públicos. Aos 21 anos, quando teve a carta, andava com uma “bomba”, um carro “com estofos de cabedal e todos os extras”.

Estudou em colégios. Viveu dois anos em África durante a adolescência. Tinha empregada todos os dias. Ficou em casa até aos 27 anos, fez o programa Erasmus em Roma durante um ano, com “condições excelentes”.

Os avós paternos eram do ramo farmacêutico. Da parte da mãe, o avô era um empreendedor e a avó, apesar de ter saído da escola aos 14 anos por razões de saúde, era uma leitora e uma curiosa pelo mundo. O nível de vida dos pais foi melhorando, passando da classe média para a classe média-alta, descreve. “Os meus pais fizeram um esforço tremendo, apostas de separação de casal [a mãe ficou em Portugal, o pai saiu para trabalhar no estrangeiro] para poderem progredir e darem saltos mais rápidos. Estamos a falar daquilo que todos querem: casa, educação dos filhos e fundo de maneio.”

Agora, diz, voltou a descer um degrau. Não janta fora como dantes, não compra coisas de marca, não compra música, não vai ao cinema, não vai a centros comerciais, há coisas de que nem se aproxima.

Aprendeu a valorizar a educação acima de tudo e não tem espaço para ter um segundo filho, por enquanto, pois não poderia pagar duas mensalidades no colégio onde faz questão de ter a filha a estudar. “É uma escola onde se aprende a pensar por nós próprios, a participar e a não sermos mais um carneirinho.” O desinvestimento na educação da filha representaria o “descalabro completo”. Preferiu largar o atelier que partilhava com colegas e passar a trabalhar em casa. “Não é bom: falta companhia, falta discutir ideias, as pessoas isolam-se”. Hoje serve de plataforma entre os amigos para trocarem roupa, por exemplo. Nota, em relação aos seus “pares”, “uma dificuldade em estar à tona de água”. “O que me faz impressão é a falta de esperança.”

Não há estudos exaustivos recentes sobre mobilidade social que possam dizer com rigor se os percursos de subida e descida de Sandra e Inês são representativos de uma tendência X ou Y na sociedade portuguesa. Os sociólogos são unânimes: é um tema pouco estudado em Portugal. António Barreto diz mesmo que nunca foi analisado profunda e seriamente — a Fundação Francisco Manuel dos Santos, que dirige, está a preparar um longo estudo sobre o tema.

Há, no entanto, relatórios internacionais que, apesar de terem uma amostra pequena e não serem exaustivos sobre cada país, dão pistas. Um dos mais recentes é de 2010, foi feito pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), e coloca Portugal como tendo um dos piores índices de mobilidade entre gerações. Tomando a educação como factor determinante na mobilidade social, revela que o filho de alguém licenciado tem muito mais probabilidade de estar no topo da hierarquia em termos salariais. Em Portugal, a “penalização” para quem nasceu numa família com fracas habilitações é ainda mais alta no caso das mulheres.

Manuel Villaverde Cabral, autor de dois estudos sobre classes sociais — um de há 13 anos, outro, sobre as elites, de 2006 — caracteriza a mobilidade social portuguesa ascendente como normal até final do século passado porque está associada à modernização e à economia. Foi, porém, uma mobilidade de curto alcance: globalmente, houve mobilidade da classe trabalhadora para a média, mas não da média para as elites. Porém, “a estrutura socioeconómica e cultural é atrasada — temos muita gente no sector primário e secundário e um sector terciário sem qualidade. Portugal conheceu um processo de industrialização lento e um processo de terciarização menos lento, mas sem qualidade, pouco tecnológico”.

Mobilidade ascendente existiu, concorda Elísio Estanque, mas foi resultado de um processo estrutural de mudança na economia e na sociedade portuguesas, muito determinada pelo impacto das políticas públicas, do Estado social, da rápida concentração urbana e da forte terciarização da economia a partir dos anos 1960, e com mais força depois do 25 de Abril. Para existir mobilidade social, a passagem de uma classe social a outra teria que abranger mais do que uma geração, ressalva.

Apesar de as suas opiniões se basearem em “intuições” porque dados não os tem, António Barreto acredita que até aos anos 1960-1970 a mobilidade social era “reduzidíssima”, depois houve um “enorme safanão” na sociedade portuguesa e “toda a gente quis ser melhor”. A questão é: “Será que sair do campo e ir para a cidade já é mobilidade social? Será que um pequeno camponês que deixa o campo para ir para a cidade ser assalariado está a subir na vida ou está a melhorar sem subir socialmente? Talvez viva melhor, tenha melhor casa, mais conforto, e, se ganha mais, tem mais bem-estar. Tem também mais acesso à cultura, à formação educativa, à formação tecnológica, à informação, e isto representa alguma mobilidade, mas não é mobilidade no sentido forte da palavra de se poder mudar de ambiente, de meio social e até de classe.”

Apesar disso, o paradoxo, acrescenta, é que quando se pergunta se Portugal é uma sociedade imóvel, Barreto responde que não. “Agora a posição relativa entre os ricos, os médios e os pobres, a sua vivência dentro de um meio social determinado, mantém-se relativamente mais estável.” Ou seja, as distâncias entre as diferentes classes mantêm-se.

Num artigo recente sobre classes e desigualdades, a investigadora do Observatório das Desigualdades (OD) Margarida Carvalho analisa a evolução de 1985 a 2009 em Portugal para concluir que as cinco classes sociais, definidas pela posição profissional, tiveram um aumento mensal de rendimento, mas que “a classe média está a ficar para trás” e com uma distância cada vez maior das mais ricas. De resto, o fosso entre os ricos e os pobres é agora maior, conclui. As classes dividiam-se assim em 2009, de acordo com dados de um inquérito do Gabinete de Estratégia e Planeamento às empresas em que se baseou: 4,1% de dirigentes e profissionais liberais (média mensal de salário quase 2300 euros), 17,8% de profissionais técnicos e de enquadramento (média mensal de cerca de 1600 euros), 42,3% de empregados executantes (média mensal de 777 euros), e 35,9% de operários e assalariados agrícolas (média mensal de 764 e 623 euros, respectivamente).

Esta distribuição de classes, que não é substancialmente diferente da que Villaverde Cabral analisou em 2006, mostra uma tendência “inversa” a sociedades com menos desigualdades como a sueca: tem quase o dobro na base do que no topo, quando na Suécia havia mais pessoas nas classes mais altas do que nas classes mais baixas. Idealmente, as classes seriam um cilindro, defende.

Lendo estes dados, Renato Miguel Carmo, sociólogo do OD, fala de uma mobilidade “parcial e inacabada”: a classe dos profissionais técnicos e de enquadramento engrossou (passou de 3,8% em 1985 para 17,8% em 2009) e qualificou-se, “mas essa mudança não inverteu os factores de persistência na sociedade portuguesa”, porque os empregados executantes e operários ainda representam uma larga fatia (76% no conjunto). É desqualificada, tem rendimentos baixos e 10% da população trabalhadora está em situação de pobreza, acima da média da União Europeia. “Ainda continuamos a ser uma sociedade dualista e isso reflecte-se ao nível das estruturas de poder porque a distância entre os mais e menos desfavorecidos ainda é muito grande. O que depois tem reflexos na prática da cidadania.”

Mas lembra que houve uma geração que conquistou mais habilitações literárias do que os pais e que isso se reflectiu nos rendimentos. Ainda que este processo esteja a desvanecer-se com a crise, atirando licenciados para o desemprego, estudar ainda compensa. De 1985 a 2009 a população trabalhadora com ensino superior passou de 3 para 15% e diminuiu o número dos que têm menos do que o ensino básico (de 9 para 1%). Quem é licenciado continua em grande vantagem: em 2009, ganhava três vezes mais do que quem não tinha a quarta classe, valor quase igual ao de 1985 (dados do OD).

Porém, Barreto relativiza a questão da educação como ascensor social: “Nos anos 1960 o grande mito das oportunidades era a educação. Ao fim de 10 ou 20 anos, começou a ver-se que todos estavam mais educados, todos subiam, mas não havia passagem de umas camadas para outras: no final de contas, a educação melhora toda a gente, mas tem muito pouca influência na mudança da posição relativa.”

É verdade que a educação universal engrossou as classes médias, considera, só que o problema é que “as classes médias não têm definição”, são uma “enorme categoria, com enorme fluidez na análise”: “A classe média em Portugal são quantas pessoas: 70% da população? 50%? Ninguém sabe.”

Elísio Estanque, autor de A Classe Média: Ascensão e Declínio, reconhece a dificuldade em medir a classe média, mas defende que neste momento está em queda, consequência da degradação da situação económica das famílias, mas também das expectativas quanto ao futuro.

Fez a universidade — Cinema — com bolsa e viveu numa residência de estudantes. Cresceu numa vila no Alentejo, no Redondo, onde chegou a viver com a mãe em quartos alugados antes de terem casa própria. Não tinham carro e às vezes andavam à boleia, coisa que ela hoje diz que não faria com o seu filho. “Mas não éramos propriamente pobres”, lembra Aurora Ribeiro, de 27 anos, que vive nos Açores e hoje diz levar “uma vida burguesa, com uma boa casa, filho no colégio”, “respeitada”.

Sente que pertence à classe média e que subiu um degrau na escada social. A mãe, funcionária pública, fugiu de casa aos 18 anos, que é como quem diz fugiu de um projecto de vida “mais estandardizado”, em que era suposto estudar, casar, ter um emprego, estabilizar. A família materna, classifica, pertence à classe média “com pretensões a classe média-alta”.

Provavelmente pelo que lhe foi passado pela mãe e pelo estilo de vida de alguém que foi da cidade para o campo, uma mulher divorciada que não se inibia de sair à noite num ambiente em que isso só era permitido aos homens, Aurora Ribeiro sentiu-se socialmente diferente dos colegas na escola no Redondo. Em algumas coisas achava que pertencia a uma classe social mais baixa, noutras não. É o que os sociólogos chamam “inconsistência de estatuto social”: alguém com poder económico baixo pode ter poder cultural ou social elevado — ou vice-versa. Ela descreve a experiência assim: “A maior parte dos meus colegas não tinha interesse pelo que se passava noutros sítios, nos livros, nos jornais. Normalmente, associamos pobreza a ignorância e riqueza a conhecimento, mas isso está a mudar: há cada vez mais acesso à informação e isso depende menos das possibilidades económicas de cada um, depende mais do interesse e da educação.” No Redondo, não se identificava propriamente com os colegas das classes mais altas porque os interesses não eram os mesmos, porque os “colegas que tinham mais dinheiro interessavam-se mais por roupas, pelo aspecto, por demonstração de posses, e essas coisas.”

Quando chegou à Escola Superior de Teatro e Cinema, em Lisboa, as distinções sociais esbateram-se, “as pessoas identificavam-se mais pelos interesses”. A viver na Horta, de onde é originalmente o companheiro, arquitecto, sente-se hoje mais confortável financeira e socialmente. “Em geral, as pessoas levam-me mais a sério, têm mais respeito. É um pouco difícil explicar isto. Na vila onde vivíamos, uma mulher divorciada não era respeitada como uma mulher casada, havia uma visão castradora. Em relação ao respeito, sinto que o tratamento hoje é diferente por causa da classe social, mas também porque estou mais velha e me sinto mais segura. Claro que a minha incursão na ilha também foi facilitada pelo facto de a família do meu companheiro ser respeitada.”

Vou com um trolley bordeux”, avisa-nos Eduardo Rodrigues, para o reconhecermos no café marcado em Lisboa. Com um pólo claro, sapatos de vela, vestido de maneira descontraída, apanhou um autocarro do aeroporto até ao centro da cidade. Há-de ir depois de camioneta até Setúbal, onde os pais têm um apartamento.

Advogado, de 37 anos, também vive numa ilha como Aurora, mas na Madeira, o que, de certa forma, não é muito diferente do sítio onde nasceu e cresceu, o Cercal. “O Alentejo também é uma ilha. Mas a mobilidade geográfica e social está mais limitada no Funchal: quem não tem poder económico, tem menos mobilidade e, por isso, menos oportunidades. O meio é pequeno e não é fácil ir a uma entrevista a Lisboa, por exemplo. Acaba por se viver num microcosmo e isso limita as expectativas e as aspirações”.

Fez o curso de Direito em Coimbra com o dinheiro que ganhava, depois de no 11.º ano ter desistido de estudar, ter aberto uma loja de produtos naturais no Cercal que geriu durante 16 anos, ter sido bancário e finalmente voltado à sala de aula à noite. Em 2007, foi fazer a segunda parte do estágio ao Funchal. Acabou por ficar e hoje tem um escritório com mais três colegas. Vem regularmente ao continente.

É o mais velho de três irmãos, ambos engenheiros. O pai tem a 4.ª classe, trabalhou na agricultura e em extracção de areias num terreno da família, foi treinador de futebol, presidente da direcção de bombeiros; a mãe foi professora no ensino básico, ambos estão reformados.

Classifica a família como pertencendo à classe média, “por uma questão de rendimentos”. “Nos anos 1980 o Alentejo não era o que é hoje em termos de desenvolvimento, não havia as oportunidades que há, os jovens não tinham acesso à informação”, lembra. Mas ele, devia andar pelos 12 anos, recebeu um computador, algo que os colegas não tinham — e isto vê como exemplo de que pertencia à classe média.

O incentivo para estudar não existia como hoje e nesse aspecto notava a diferença em relação aos colegas porque sempre foi motivado pela mãe, que “tinha a visão de que a escola era importante pelo interesse intelectual, para progredir e evoluir”.

Sabe que tem acesso a “outro tipo de coisas e de oportunidades” que os pais não tiveram, até porque “há os contactos com os clientes e amigos da área”. Que coisas? Mais conhecimento, mais informação, mais mobilidade geográfica.

Apesar de reconhecer avanços na escada social em relação à família, tem uma relação ambivalente com a ideia de “mobilidade social” ascendente. “Ter sido estudante de Coimbra fez com que tenha conhecido pessoas de toda a parte do país, da pessoa mais simples ao arquitecto e engenheiro. Quando se estuda em Coimbra há uma uniformização das classes sociais — a batina servia para isso mesmo, para apagar a diferenciação”.

A definição de classe social é aquilo a que António Barreto chama a resposta de “um milhão de libras”. Não há consenso, desde que a Sociologia foi fundada que é um dos temas clássicos. Em Portugal, diz Villaverde Cabral, a classe está associada à profissão, que, por sua vez, está ligada ao rendimento e a um padrão de comportamento, hoje atenuado. Porque muitos consideram que nas sociedades mais desenvolvidas as variáveis clássicas — profissão, rendimento, escolaridade — não chegam, um grande inquérito sobre as classes sociais na Grã-Bretanha (The Great British Class Survey, da BBC) usa três grandes categorias de análise: o capital económico, o capital social e o capital cultural.

Depois há especificidades, como a portuguesa: segundo as conclusões de Villaverde Cabral, o patronato tem níveis de instrução muito baixo, por isso o filho de um patrão pode ter tirado um curso sem ter subido de classe, diz. As classes mais altas têm um nível de exercício de cidadania política mais baixo até do que o operariado da Suécia, sinal de que o nosso desenvolvimento cívico é fraco, acrescenta.

Por outro lado, será que podemos colocar o advogado do pequeno escritório na mesma classe social do advogado que gere 300 outros colegas? A pergunta é de António Barreto, que precisaria de saber também dados sobre a família: se os pais são proprietários, se têm bens, qual a sua formação cultural e profissional, por exemplo. E para saber se houve mobilidade, Barreto comparava estes dados com os dados da situação actual da pessoa: mudou? Onde mora? Foi progredindo profissionalmente ao longo da vida? Entrou numa experiência profissional mais complexa e trabalhou no estrangeiro?

Elísio Estanque associa a classe à redistribuição de recursos económicos e sociais, algo que pressupõe interdependências e que tem a ver com mecanismos de poder e de privilégio em que uns grupos têm acesso a eles e outros não — cada grupo tende a reforçar a sua posição ou então a lutar pela ascensão e as tensões geram-se pelos interesses contraditórios que defendem. A classe social está ligada à actividade profissional, sim, e, embora esteja relacionada, não é a mesma coisa que estatuto, algo que depende do prestígio e do reconhecimento que a sociedade atribui a determinadas categorias.

Mas há ainda outro factor que é o da autoclassificação, “importantíssimo”, “porque a vida em sociedade é composta também de representações e subjectividades”, diz Estanque: “O mundo em que vivo é o que está na minha cabeça, e é o facto de viver numa determinada cultura e país que me permite incorporar os códigos, os valores, os costumes e o significado dos comportamentos. A vida social tem muito de ficção e imaginação. E a posição subjectiva nunca deixa de ter em conta o grupo de referência.”

Em geral, as atitudes de quem desce e de quem sobe tendem a desenhar-se assim: quem sobe identifica-se e adopta padrões de vida da classe de destino, quem desce mantém a identificação com a posição social de origem. “Se se desce, pensa-se que se pode recuperar, que é uma situação transitória. Muitas vezes não se recupera, mas o investimento que se faz na educação e na qualificação dos filhos acaba por ajudar a que os seus próprios descendentes reponham o que eles perderam. Isso revela o potencial destas representações subjectivas. Quando o percurso é de ascensão, as pessoas tendem a ser mais optimistas, a valorizar o que está para a frente.”

Em Portugal, o facto de os processos de mudança terem sido muito rápidos fez com que as famílias fossem interclassistas, isto é, com que numa mesma família houvesse posições de status e situações socioprofissionais muito variadas — o que também contribuiu para atenuar os conflitos sociais, diz.

Estanque nota, porém, que as classes sociais se estão a recompor. Não por acaso, há já quem defenda que existe uma nova classe, o “precariado” — alusão ao trabalho precário —, sector indefinido, mas que é altamente qualificado, predominantemente jovem e tem uma familiaridade com o ciberactivismo. “Se a crise permanecer por muito tempo, é provável que o precariado se transforme num sujeito de acção colectiva que poderá introduzir rupturas e transformações sociais de novo tipo.” Quais, Elísio Estanque ainda não sabe.

A precariedade pode, de resto, vir a ser factor de mobilidade descendente, diz Renato Carmo, até porque gera impacto na compressão dos salários, mas isso não significa automaticamente regressão na escada social, pois para isso teria que haver também desqualificação do trabalho.

Às vezes Graça Castro Ribeiro (não é familiar de Aurora), tradutora de inglês e francês, de 44 anos, duvida de que tenha feito a opção certa ao comprar, com empréstimo ao banco, o apartamento num prédio relativamente moderno em Arcozelo, perto de Vila Nova de Gaia. Saiu de casa dos pais já tarde, faz três anos, antes de a sua empresa de tradução ter fechado em 2010.

Por isso, quando entra na sala ampla, janelas ao fundo, passa-lhe pela cabeça que aquele espaço seja grande de mais para ela. A casa tem três divisões, duas casas de banho, uma cozinha de dimensão média, tudo impecavelmente arrumado. Na sala, os móveis, baixos, são de madeira clara e há, além do sofá, duas cadeiras de couro castanho. Não tem televisor.

Num armário encarnado, com portas de vidro, ela guarda memórias: um serviço de copos que era dos pais, um mealheiro que tem desde pequena e que representa o início da sua ascensão social — lembra-lhe a escola e a luta por um emprego melhor —, uma chávena em tons azuis e brancos que será asiática e que foi a peça mais cara que alguma vez comprou, 125 euros, um luxo que não poderá repetir, prevê. Há talheres, caixinhas, copos pequenos — e muitos livros em baixo, alguns de arte.

Graça Ribeiro passa os dias no escritório, e raramente cozinha (é a mãe que o faz para a ajudar). O gosto pela leitura veio do pai, que não fez mais que a escola primária, mas era um curioso pela leitura, sobretudo por autores portugueses — mais tarde foi influenciada pelo irmão mais velho, hoje quadro numa grande empresa portuguesa. Estudou durante seis meses em Inglaterra, ao abrigo do programa Erasmus, com ajuda dos pais e do irmão do meio, tornou-se tradutora e melhorou o seu inglês a um nível que não seria possível se tivesse ficado em Portugal.

O pai era filho de lavradores, a mãe de um carpinteiro. Ambos têm a 4.ª classe, apesar de o pai ser considerado patronato e classe média porque tinha uma carpintaria e empregados por sua conta — mas foi obrigado a fechar o “micronegócio” com a crise na construção civil. A sorte é que têm um quintal, terreno e saúde para o cultivar, diz.

Num tempo em que “tirar um curso era garantia de melhor emprego”, a família apostou na educação dos filhos, por vezes com alguns sacrifícios. Teoricamente, houve um salto na escada social. Na prática, “não é bem assim”. “Até determinado período da vida, a evolução socioeconómica dos meus pais foi mais constante do que está a ser a minha. A deles foi gradual, pequena, mas eu na melhor das hipóteses estagnei. Classe média? Só se for por estar entre ricos e pobres.”

Além da tradução, Graça foi gestora durante cerca de 14 anos. Em 2011, primeiro ano como trabalhadora independente, o seu rendimento foi de 8700 euros, perdendo 50% de salário em relação aos anos anteriores “com tudo o que isso acarreta”: a cultura e a ocupação de tempos livres foram cortadas ao “limite mínimo” e isso era “um contributo muito importante” na sua vida. “Prezava muito, e agora faz-me sentir mais desclassificada do que realmente sou”, diz com uma voz tranquila e pausada. Olhamos à volta e percebemos: há postais e cartazes de espectáculos e exposições a decorar um pouco toda a casa, há catálogos em várias estantes. “O trabalho não me realiza muito e tudo o que fazia fora era importante. Abdicar disso contribuiu para uma sensação de falhanço, de descida social.”

Viagens, que nunca foram hábito na família e pelas quais ela própria começou a adquirir o gosto tarde, nem sonhando. Também não vai ter férias, à excepção de “uns quatro dias, incluindo fim-de-semana”. “A reviravolta” na sua vida, acha, transformou-a na “preocupação dos pais” e num “pequeno grande encargo”, criando-lhes “ansiedade”. “Sinto uma grande tristeza em relação aos meus pais, tenho a sensação de que falhei e os deixei ficar mal. Esperavam que tivesse emprego para a vida, não tanto que houvesse uma subida social, mas que mantivesse o nível de vida que eles proporcionaram.” Não está agora a ser o caso.

No Montijo, João é, para gente mais antiga da cidade, o filho de X ou o neto de Y. Com um curso de Direito, passagem por um escritório de advogados, pós-graduações e formações profissionais no currículo e uma carreira de mais de dez anos nos seguros, é filho único.

O pai era serralheiro mecânico até se reformar. A mãe sempre trabalhou na Câmara Municipal de Alcochete, fazendo progressão na carreira. É uma mulher na casa dos 60 anos, mas parece bem mais nova quando deixa João, de 37 anos, de carro, à porta de casa. Blazer de linho bege, camisa aos quadrados, sapatos de vela, jornais e revistas debaixo do braço, conduz-nos ao prédio moderno, parecido com os que fazem fileira atrás e à frente. A mulher, professora de Matemática e de Ciências no ensino básico, e a filha, de pouco mais de um ano, estão lá dentro a fazer a sesta. São 17h40, hora a que normalmente João chega.

Entramos pé ante pé no apartamento, chão e portas de madeira clara, móveis mais escuros, mas modernos: a sala está por conta da filha, com brinquedos arrumados em vários cantos, até na estante com livros. Sentamo-nos à mesa de jantar. À nossa frente um sofá e o móvel rectangular baixo que suporta o televisor de ecrã plano.

Fez o curso em universidades privadas, com propinas pagas pelos pais, ia de férias para o Algarve em casa alugada, primeiro em Portimão, depois em Armação de Pêra. De vez em quando ainda vai de fim-de-semana com eles: o último foi em Óbidos e ficaram no Bom Sucesso, um resort desenhado por arquitectos como “o [Gonçalo] Byrne”.

Lê desde muito novo, de Ernest Hemingway ou Somerset Maugham. Os pais sempre lhe “passaram a informação boa”, incentivando-o a estudar; discutia política com o avô, comunista. Quando entrou para o mercado de trabalho, “já não era líquido que uma licenciatura arranjasse emprego”. “Na altura, diziam: ‘Se não estudares, vais lavar escadas.’ Hoje faz-se um curso e vai lavar-se escadas na mesma.”

O curso foi importante do “ponto de vista intelectual” — “sempre que posso, faço formações e o primeiro requisito é se me vai dar satisfação mental”. Diz-se “viciado” em História e Política e ao longo da conversa vai citando autores e opinion makers e tem o hábito de recortar e digitalizar “as colunas de pensadores” dos jornais. “Faço a minha vida dignamente. Se me dissessem: ‘Gostavas de ganhar o dobro?’ Claro, em vez de ir de férias para o Algarve ia para a Florida.”

Não nota, confessa, grandes diferenças no nível de vida que hoje tem com o que que tinha quando vivia com os pais. Almoça fora todos os dias, quando lhe apetece compra presentes à filha, quando lhe apetece vai de fim-de-semana. Vem de uma família da classe média, classifica — e na classe média ficou. Mas, tendo “um percurso de empenho, seria expectável que chegasse a um patamar mais além”. Como materializaria isso? “Em termos de progressão, não tenho para onde ir acima. Passar a um quadro de chefia era expectável, mas há quadros técnicos e superiores a mais. A bitola para mim é a intelectual, é uma satisfação que não tenho em termos profissionais. Se tivesse uma crónica num jornal, aí teria chegado a um patamar que os meus pais não chegaram. Em termos de prestígio social, não tenho nem mais nem menos do que eles. Uns são socialmente designados por sra. e por sr., enquanto eu posso ser por dr., mas isso não se traduz em nada mais do que no mero aspecto de cortesia social.”

Por razões óbvias, valoriza-se a ascensão social, desvaloriza-se a descida. O que é que a mudança de classe social traz exactamente em termos de perdas e ganhos? “Tempo”, responde Inês, que o perdeu. Tempo de descompressão, qualidade de vida. “Quando podemos comprar, compramos tempo: eu compro o tempo de uma empregada, de uma baby-sitter, de uma carrinha que me leva a filha à escola e me faz ganhar tempo para outras coisas. Sem tempo, perde-se capacidade de pensar.”

Graça Ribeiro, que vê a descida social como “a aprovação e a maneira com os outros olham para nós”, sente-se “diminuída”. Na família, “perdeu a voz” e a sensação do “direito a falar”. As relações mudaram. “A ideia de que me tenho que reduzir à minha insignificância, colocar-me no meu devido lugar faz com que deixe de ser um elemento tão participativo na família.”

Aurora nota que “quanto mais se sobe, mais regras existem”: “Mas isto é uma coisa que sinto mais emocionalmente do que em termos materiais.” E há também “pressões” nas classes mais altas porque, explica, “os pais pressionam um filho para ter um percurso que não o faça perder aquilo que já foi conquistado por eles”.

O percurso de alguém que está numa classe média-alta “tem regras, não é livre”, sendo que, ao mesmo tempo, o poder financeiro “também abre muitas oportunidades”. Por outro lado, vê o meio profissional onde se move — artístico — como “menos rígido” em termos de regras sociais: “As classes, embora existam, não estão tão bem definidas, e não dependem propriamente do poder, mas de um certo prestígio e certificação”.

Eduardo Rodrigues não fez um corte com o meio de onde veio e continua a ter os mesmos amigos. Porém, sente, às vezes, que “há um olhar diferente, não diria que de inveja”, “talvez seja das pessoas notarem diferença em mim”. Há temas de conversa que já não lhe interessam, e há outros, como “os problemas do mercado financeiro e a influência das agências de cotação nos ratings nas dívidas soberanas do Estado”, que não aborda com metade desses amigos de infância. Do que se sente mais distante? “Ir no fim-de-semana para Albufeira para o Aquasplash não me seduz. Em contraponto, se convidar um desses amigos para ir a um concerto de música clássica na Gulbenkian, ele talvez franza o nariz”.

Sandra tem uma resposta mais emocional, provavelmente por o seu salto ter sido o maior dos entrevistados. Está, de resto, literalmente entre dois mundos. Sente-se distante dos colegas, que acha que “nunca a iam entender” — “tinham amas para tomar conta deles”. Sente-se distante da família, com quem tem que fazer um esforço enorme para estabelecer pontes de conversa. Quando a pergunta é feita de forma directa — mas o que é que se perde? — Sandra faz um longo silêncio. “A família. Ela continua lá. Mas não somos tão próximos.”

Entre Sandra e os pais, houve uma “tremenda evolução”, mas desde que foi viver para Inglaterra que reavaliou a posição social a que julgava ter conseguido chegar. Em Portugal, achava que pertencia à classe média, e que teria hipóteses de subir ainda mais um degrau. Depois, reconsiderou, achando que afinal era da classe trabalhadora, como os pais. “Não sou nem serei classe média à escala de outros países da Europa ocidental. Vir para aqui mudou a minha mentalidade e fez-me perceber que não vejo as coisas como uma pessoa da classe média, que é também uma maneira de olhar o mundo. Eu própria tenho que combater isso. Durante estes anos fui imprimindo no meu subconsciente que o objectivo era ter um emprego certinho e estável, e, mesmo que não gostasse, punha a comida na mesa, isso é que interessava. Esse é o objectivo de alguém de classe trabalhadora. Não nos aventuramos porque simplesmente não podemos falhar. Não podemos falhar porque não temos uma rede que nos apoie.”

Somos uma sociedade em que a classe social determina as oportunidades? Uma das conclusões a que Villaverde Cabral chegou num dos seus estudos foi que a sociedade portuguesa é “altamente estratificada porque é atrasada e é atrasada porque é estratificada”: “As elites controlam o país ao milímetro. Neste momento as posições de topo são para quem já lá está. Para que exista mobilidade é preciso que abram mais posições do que aquelas que seriam ocupadas pelos filhos de quem estava nas posições de topo. Se há 1000 médicos em Portugal, a probabilidade de que os próximos médicos sejam filhos de médicos é altíssima. Para que isso mude, é preciso que se criem mais posições de médicos: em vez das mil, umas cinco mil.”

“Se fosse filho de A ou B, se calhar estaria noutra posição”, afirma João. Aurora Ribeiro diz que “as oportunidades são criadas através de contactos e os contactos são feitos através das relações pessoais”. Portugal é um país de oligarquias, responde Sandra. Inês não tem dúvidas: “Somos o povo. Mas não podemos mudar as coisas? Podemos, podemos. Podemos sempre refilar e dizer que não aceitamos. Podemos votar, nem que seja em branco. A capacidade de mudar, de interpelar, parte de nós. ”

Ver Infografia sobre Mobilidade Social

Nota: as pessoas que não têm apelido pediram reserva de identidade

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