Brian de Palma foi ao fundo do catálogo

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Em Passion, de Brian de Palma, não haverá nunca hipótese de inocência Foto: DR

Os últimos três filmes em competição em Veneza passaram ontem, com um De Palma todo jogos de máscaras e pesadelos sinalizados, actores esticados ao ponto da desintegração. Hoje é dia de prémios.

Tão mau que é bom? Depois de seis anos a tentar arranjar filmes para fazer (o último foi Redacted, em 2007), Brian de Palma acabou por ir parar a um remake de um filme de Alain Corneau, que tinha Ludivine Sagnier e Kristin Scott Thomas como intérpretes. Projecto do produtor Saïd Ben Saïd, De Palma construiu o seu cast com Rachel McAdams e Noomi Rapace e foi ao fundo do seu catálogo: não só Hitchcock (quando lhe perguntaram aqui qual a influência de Sir Alfred na sua obra, respondeu como não podia deixar de responder: "Não sei do que fala") mas também ele próprio, de Sisters a Raising Cain, passando por Carrie.

Passion

(concurso) é uma história de despique entre duas mulheres, uma loura, outra morena (um toque de

Mulholland Drive

para este desejo que se transforma em máquina de mentira e decepção). Em cenário de anónimo luxo corporativo, o jogo de máscaras e os pesadelos estão sempre a ser sinalizados, Noomi e Rachel prestam-se a transformar o desconforto por tudo - diálogos e situações, ser esticado à beira da desintegração - numa segunda pele. Como comentário permanente ao que estão a fazer. Tão mau que é bom?

O cinema de De Palma está naquela zona que dota o espectador de uma hiperconsciência dos mecanismos da emoção tão aguda - como se estivesse a ser vigiado por si próprio - que a experiência pode ser gritantemente grotesca (houve quem sentisse assim) ou uma rollercoaster ride pelo "segundo grau". O que não haverá nunca é hipótese de inocência. É claro que o material de base aqui é mais reles do que o habitual. Mas até as engenharias financeiras para montar o projecto - rodagem em Berlim, actores alemães, etc. - foram integradas, e por isso Passion também é um filme que nos dá a ouvir a falsidade de uma co-produção (esta é franco-alemã).

E por falar em Carrie: Kimberly Peirce realiza neste momento o remake.

Para encerrar a sua trilogia sobre o Homem e a Natureza, depois de Khadak (na Mongólia) e de Altipiano (nos Andes), Peter Brosens e Jessica Woodworth ficaram-se pela Bélgica natal. (Ele é geógrafo e antropólogo, ela é documentarista.) Em La cinquième saison (concurso) acontece o desregulamento entre a vida animal e vegetal. Inexplicavelmente, numa comunidade que vive desse contrato e dessa expectativa, as vacas deixaram de dar leite, a Primavera recusa-se a vir a seguir ao Inverno, o galo a cantar. Pintura, dança ou videoarte?, perguntou-se por aqui. Talvez não interesse responder. Mas interessa sentir que Brosens e Woodworth se esforçam por propor imagens desse apocalipse que, na suas palavras, "está próximo", e acontecerá quando a Natureza vier cobrar as dívidas. Mas que não conseguem sair da proposta de série de "quadros" metafóricos congelados por referências. Tarkovsky, a pintura flamenga, Bergman... E pensa-se, então, em Le Quattro Volte, de Michelangelo Frammartino (2010): como o italiano filmou o desaparecimento do homem da hierarquia cósmica, deixando o seu cinema ser invadido, usurpado, tomado pela vida.

Francesca Comencini desvia um rapaz e uma rapariga do destino da viagem - ele um chauffeur, ela uma pretendente a actriz que vai ter o seu casting couch com um onorevole - mas Un Giorno Speciale (concurso) não poupa ao espectador nada do que seria de esperar: o argumento a dosear doçura sempre que a coisa podia derrapar. Por exemplo naquela entrada no centro de Roma destes suburbanos que estão nas margens de um "sonho italiano"... Mas não, serve apenas para um gesto inconsequente, que não é sequer de confronto, previsível artimanha de argumento para encaminhar tudo outra vez para a ordem com a sensação de que a catarse foi feita. Não fazia sentido esperar pela grandeza da anarquia e da selvajaria que o cinema italiano já teve, isto não é Il Sorpasso, de Dino Risi, 1961, em que a correria de Vittorio Gassman e Jean-Louis Trintignant, nos anos do boom económico italiano, acabava em desastre.

Acompanhe o festival no blogue Câmara Escura

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