As Linhas de Wellington: o épico ficou à porta

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A equipa de Linhas de Wellington ontem em Veneza Reuters

A intimidade da vida privada durante a guerra é um cromo errático, o épico histórico não sabe o que fazer para se reinventar. As Linhas de Wellington teve estreia ontem em Veneza

Sem Raúl Ruiz, mas com a memória de Raúl Ruiz logo no genérico. A sua viúva, Valeria Sarmiento, lembrava ontem que o chileno dizia ser mais difícil realizar um pequeno filme do que um projecto com a envergadura de épico. As Linhas de Wellington , projecto do produtor Paulo Branco com um argumentista, Carlos Saboga, interessado pelas invasões napoleónicas e pelos factos e pessoas da guerra, e com parte da equipa de um projecto anterior com Ruiz (Os Mistérios de Lisboa), teve a sua estreia ontem em competição no Festival de Veneza. Sem Ruiz, que morreu dois meses depois de começar a preparação, e com Valeria Sarmiento a realizar.

Ruiz terá influenciado a escrita do argumento, "três ou quatro ideias" suas foram mantidas, segundo Paulo Branco e Saboga, mas o filme é daquela que foi sua companheira e cúmplice durante 30 anos.

Terá razão o produtor quando diz que não se pode imitar um realizador imprevisível, que todos os dias inventava como ia fazer. Concorda-se que é injusto e derivativo tentar imaginar um "como teria sido se..." a propósito desta reunião de um cast multinacional - John Malkovich, Catherine Deneuve, Isabelle Huppert, Vincent Perez, Melvil Poupaud, Carloto Cota, Albano Jerónimo, Soraia Chaves, Nuno Lopes... - para recriar as invasões napoleónicas, no início do século XIX, e a estratégia do general inglês Wellington para deter as tropas francesas: uma linha de fortificações na zona de Torres Vedras, do Tejo ao mar, para impedir os franceses de chegar a Lisboa. Diz-se no argumento de Saboga que os ingleses foram a funda que os pequenos portugueses atiraram aos franceses, quais David contra o gigante Golias.

Não imaginamos o que seria o filme de Ruiz. Vemos apenas o que é o filme de Sarmiento. Teria sido decisivo que o pequeno filme deixasse marcas na convenção do épico. Em vez disso, há uma recorrência de actores, personagens e histórias apenas esboçados para logo desaparecerem - os estrangeiros, Deneuve, Huppert, etc., aparecem numa cena e não deixam rasto ou são resultado de graçolas, como Malkovich/Wellington; os portugueses, de forma geral, vêem o seu drama sabotado: não há intimidade ou vida privada em tempo de guerra que sejam mais do que erráticas. Veremos o que a versão televisiva alterará.

A dimensão épica, depois, aparece com dificuldades em (se) reinventar. Roda sobre um vazio. Não há isso a que se possa chama olhar. O material não é agarrado, mexido, violentado, é apenas afagado, se calhar com receio. Será por isso que todas as sequências parecem começar com o mesmo travelling? Será por isso que à voz off repartida entre portugueses e franceses não corresponde a oscilação de perspectiva e é apenas um instrumento, como muitos outros que se usam nos épicos e que aqui apenas foi "aplicado"?

Há um vislumbre num plano. Ressoa algo de apocalíptico sobre nós, portugueses, gente de um país pequeno à mercê das aventuras europeias: o regresso a casa, depois das invasões, paisagem devastada... A reconstituição histórica com sinais de vida, enfim. Sufoca de seguida. É o último plano, já acabou.

Notícia corrigida às 18h07, invasões napoleónicas, no início do século XIX

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