Meu querido IC1

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Muitos troços do IC1 estão em perfeitas condições. Outras vezes, os sinais ameaçam. "Piso em mau estado", avisa uma placa, um pouco antes de uma das paragens clássicas deste itinerário"Este Verão as pessoas regressaram ao IC1 e estão muito satisfeitas. É mais barato." O IC1 acaba, entra-se no Algarve, a praia da Oura em Albufeira está pejada de gente. É Agosto

A A2 matou-lhe alguns negócios. O aumento das portagens foi uma espécie de lufada de ar fresco. O IC1 teve este Verão mais carros. E os comerciantes de beira de estrada, um pouco mais de clientela. Aqui há tractores, paragens de autocarro, bifanas e cozido. E se o trânsito pára, conversa-se com os do automóvel da frente. Assim começam e acabam as férias de muitos portugueses

A dona Rosa a virar bifanas na grelha, no seu restaurante, em Grândola, quando ainda passa pouco das 11 da manhã. Os camiões - um, cinco, dez, 15 de seguida - estacionados na berma da estrada à hora do almoço. As famílias à volta de uma caixa de plástico com bifes panados, no parque da Mimosa, onde ainda param muitos autocarros que atravessam o Alentejo. As bandeiras portuguesas ao vento, a ajudar a assinalar as bancas dos melões. Placas que anunciam que se vendem casas, lenha, móveis. Para muitos portugueses foi com estas imagens que as férias arrancaram. E terminaram. É tudo isto o Itinerário Complementar n.º 1 (IC1).

Depois da Marateca, aos primeiros quilómetros do percurso que leva cada mais portugueses a banhos, o trânsito abranda. Até parar. O sol aquece. Estão a pintar o pavimento. Um sinal avisa: "Circulação alternada." Há quem saia da viatura para espreitar o que se passa, fumar um cigarro, falar com as pessoas do automóvel da frente. Há tempo. O pára-arranca durará uns 20 minutos. Avistam-se pernas e pés com chinelo esticados para fora do vidro das janelas dos carros. Viajar era isto, no passado - filas com algum convívio, numa estrada onde há paragens de autocarro, várias, no meio do nada, e circulam tractores. E onde não se pode andar a mais de 90 km/hora. Mas muitos não sabiam, ou já se tinham esquecido, que podia ser assim chegar às praias de Albufeira - o destino que o PÚBLICO, que partiu de Lisboa, escolheu para esta reportagem.

O aumento das portagens tem levado cada vez mais pessoas a fugir das auto-estradas. E o mês de Agosto foi o reflexo disso mesmo. Há quem esteja feliz. O responsável de serviço do restaurante São Sebastião da Mimosa, em Grândola, fala de um aumento no negócio de 30%, em relação ao Verão passado. No minimercado de Canal Caveira, o MiniMix, Lessandro, o proprietário brasileiro, aponta para um crescimento da mesma ordem de grandeza.

A A2 foi construída ao longo de 40 anos, bocadinho a bocadinho. O último troço foi concluído a 25 de Julho de 2002. O que se seguiu foi "uma grande decadência", conta Adélia Teixeira, hoje com 71 anos, proprietária de um restaurante de grelhados numa recta na EN120, uma das nacionais que integra o IC1. Houve estabelecimentos a fechar portas, empregados despedidos.

"Mas há 20 anos, antes da auto-estrada, também era de mais", recorda, depois de ir à cozinha verificar "se está tudo bem com o tacho". "As pessoas chegavam aqui cheias de fome, cheias de pressa, os filhos pela mão, esfomeados também, cheios de sede, que isto de viajar era duro. Duas horas para fazer uns poucos quilómetros, filas, acidentes."

Adélia não o diz assim, com todas as letras, mas não era fácil aturar os humores dos automobilistas à hora de almoço.

Senhor GNR, olhe o negócio

Com a auto-estrada do Sul a ganhar forma, "foi tudo para a auto-estrada, porque as pessoas estavam cansadas de andar em bichas".

À falta de freguesia, cada cliente era precioso. E Adélia dava com ela a pedir aos guardas da Brigada de Trânsito "para não se meterem a fazer controlo de velocidade" ali à porta do restaurante, porque lhe davam cabo do pouco negócio que havia. "Se havia carro da GNR aqui, ninguém parava", diz a rir. "Pelo menos não venham à hora de almoço..."

Quando apareciam descaracterizados, também não gostava. "Chegavam a esconder-se aqui atrás dos vasos das flores. Às oito da manhã já cá estavam. "Bom dia. Já cá estão?" Respondiam: "Até é bom, que as pessoas vêem carros parados aqui e param também." "Deixe lá isso que eu dispenso essa propaganda!", respondia eu."

Agora é diferente. A GNR já não controla à porta do restaurante. "Vai mais para a frente" - que esta recta é propícia a excessos de velocidade. E, este Verão, o movimento na estrada aumentou bastante: "Só não se nota mais no negócio, porque também não há muito dinheiro."

Nem tudo são rosas. Logo no início da viagem, Manuel Peixoto, 54 anos, chapéu, bigode, está na esplanada do snack bar Avenida, rente à Estrada Nacional n.º 5, em Águas de Moura, e resmunga. É ali que este reformado por invalidez costuma parar, mesmo com os carros a roncarem a tal velocidade que, às vezes, parece que vão entrar pelo café adentro. É claro que a pequena terra animou. "Todos os dias param aqui quatro ou cinco a procurar pelo caminho certo" para o Sul, conta outro cliente. Mas Manuel dorme pior. Ironiza: "À frente da minha casa puseram uma passadeira com uma lomba a assinalar. Acho que nunca lá passou um peão. Mas os camiões passam, e passam com uma força que a casa estremece toda - tum, tum, tum. É uma alegria."

Quando é que chegamos?

A família Pestana (marido, mulher, três filhos, um deles com a namorada) está num monovolume, parado, como os outros, na fila que se forma no IC1, alguns quilómetros depois da Marateca. Há bagagem no tejadilho, para seis dias de férias no Algarve: "Estivemos a ver uma reportagem na televisão sobre como poupar, não indo pela auto-estrada." Seguiram os conselhos. Vêm de Loures, não escolhendo a A2 são 37 euros em portagem que não gastam, ida e volta. "Vamos lá a ver se não há muitas paragens destas." Não haverá.

Muitos troços do IC1 estão em perfeitas condições. Outras vezes, os sinais ameaçam. "Piso em mau estado", avisa uma placa, um pouco antes de uma das paragens clássicas deste itinerário: o restaurante As três Irmãs, em Grândola. As três Irmãs prometem há muito "as melhores bifanas do mundo". E Rosa Chainho está na grelha, cheia de energia, a virar carne. "Isto há 40 anos era uma taberna. Depois o negócio cresceu." E, depois, decresceu, quando as bifanas deixaram de conseguir competir com a A2.

Este mês de Agosto está, contudo, a correr bem. Há muitos carros parados à porta. Uma mãe de família do Barreiro, que prefere não dar o nome, explica que, desde que se lembra de ir para o Algarve, pára aqui - quando usava a auto-estrada, chegava a fazer um desvio de propósito. Com o aumento das portagens, desistiu de vez da A2. "Levo o dobro do tempo a chegar ao destino, mas paciência. Fazia Barreiro-Albufeira numa hora e meia - gostamos de andar depressa, sim. Agora levo três horas. As crianças queixam-se, impacientam-se no carro. Estão sempre a perguntar: "Quando é que chegamos? Quando é que chegamos?"" Mesmo tendo as bifanas como compensação.

Siga-se viagem. André Fava, 16 anos, varre a caruma junta à banca de melões e melancias, cebolas e alhos, "tudo produção própria", de que toma conta há seis anos (só no Verão, "no Inverno [vai] à escola"). "Há mais trânsito e o negócio melhorou um bocadinho", afirma com um ar profissional.

Mais cautelosa é Alda Mestre, proprietária do restaurante Canal Caveira, que diz que é muito cedo para tirar conclusões. "Vamos ver o que acontece [ao negócio] depois de Agosto." Será que as pessoas acabarão por conformar-se com as subidas de preço das portagens e voltar a trair o IC1?

De qualquer modo, em plena hora de almoço, Alda não tem muito tempo para falar com jornalistas. A fila dos clientes que esperam por uma mesa engrossa...

Quatro anos sem dormir

Umas casas à frente estão Lucília Matos, 56 anos, doméstica, José Peixeiro, 71 anos, reformado, ex-ferroviário, e António Ramos, 77, reformado também. Estes, sim, têm tempo para a conversa: estão sentados numas cadeiras de plástico, à sombra, a mirar os carros que passam.

Alguns viveram a vida toda neste local da EN259 a que "erradamente" - garantem - se chama Canal Caveira. "Isto é Aldeia Nova de São Lourenço. Puseram ali a placa a dizer Canal Caveira, mas está mal. Canal Caveira é lá mais adiante", diz José muito afirmativo.

Ela, Lucília, não é dali, só para ali foi quando se casou, há uns 30 anos. "Durante quatro anos não dormi com o barulho dos carros e do comboio", diz a rir. "Não dormias, mas era porque tinhas acabado de te casar", graceja José. E Lucília cora.

Já ninguém liga ao som dos carros, nem ela, mas notam que o movimento na estrada aumentou bastante nos últimos meses.

A conversa do nome da terra voltará à baila: "Mas se puserem nas cartas "Canal Caveira" também cá chegam", continua Lucília. "Chegam, mas está mal", insiste José crispado. "Havia antigamente um monte que se chamava Caveira. Agora é só ruínas. Depois houve uma mina de ouro, com o mesmo nome. E isto ficou Canal Caveira", explica calmamente António.

Todos se lembram das filas no Verão na nacional, quando não havia auto-estrada. "Tudooo aí paradooo..." E todos se lembram do que aconteceu, "quando a auto-estrada foi concluída": "Muita gente daqui que trabalhava nos restaurantes foi despedida."

E a bifana roda...

O responsável pelo serviço nas Mimosas - onde se pode apanhar autocarros "para qualquer ponto do país" - conta algo parecido: "Antes da A2 isto era um mundo, gente de manhã à noite. Quando a auto-estrada abriu, tivemos uma quebra de 50 a 60%. Tivemos que nos adaptar. Houve dispensa de pessoal, mas houve também um investimento nas instalações, nos sanitários, na qualidade."

E agora? "Este Verão as pessoas regressaram ao IC1 e estão muito satisfeitas. É mais barato. A estrada está boa. Os serviços de apoio à estrada melhoraram bastante." E vê-se cada vez mais gente a fazer asneiras com os carros na estrada, como dirá Miranda ("Miranda-aqui-e-em-todo-o- lado", como se apresenta), o camionista que fuma um cigarro, na cabine do seu grande camião parado numa berma. Está à espera de "uns colegas".

Depois de Ourique, o trânsito parece ter desaparecido. São três da tarde, hora do calor. Passam camiões, pouco mais. Em Corte Pereiro, perto de Messines, há outro estabelecimento já com uns anos: O Gasolinas. Não se chama assim por acaso: há mesmo uma bomba de gasolina. O que não há é clientela - para além dos dois ou três homens que jogam às cartas na mesa da esplanada.

Vestida de preto, atrás do balcão, está a dona, com um ar desalentado. "Não foi a auto-estrada que tirou clientes à casa. Foi a crise, porque isto era uma casa que vivia muito das pessoas ligadas à construção. Iam trabalhar, à tarde tudo vinha aqui para o petisco e para meter gasolina." Outros tempos: "Deixando de haver construção, deixou de haver trabalho. Os homens que viviam disso estão hoje por aí, cada um metido no seu buraco, pela serra. Fazíamos aqui 200, 300 almoços e jantares por dia. Hoje dei seis."

E não nota que por estes dias haja mais trânsito? Nota. Mas n"O Gasolinas, o movimento dos carros não se traduziu em mais clientes. E os que vêm dividem refeições, não se gasta como dantes.

O IC1 acaba, entra-se no Algarve, a praia da Oura em Albufeira está pejada de gente. É Agosto.

O regresso a Lisboa faz-se pelo mesmo caminho. E às dez da noite, junto a Grândola, o trânsito está tão movimentado como estava pela manhã. Não são veraneantes a ir para a praia a desoras. É uma feira enorme, cheia de néons e carrinhos de choque, ali perto, que atrai multidões. Nas Três Irmãs, Rosa Chainho continua junto à grelha. A bater carne com um martelo, tum, tum, tum. Não parece ser uma alegria.

Passaram quase 11 horas desde que o PÚBLICO a encontrou pela primeira vez, a virar bifanas. Tem um ar cansado, mas diz que já descansou qualquer coisa. De qualquer modo, é Agosto, mês de férias para uns, e de mais trabalho para outros...

Chega mais um cliente. Sai uma costeleta.

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