A vingança dos Mau-Mau e os arquivos secretos da descolonização britânica

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Prisioneiros Mau-Mau escoltados por polícias no Quénia, em 1952, quando foi decretado o estado de emergência DR

Na sequência de um processo movido por antigos prisioneiros Mau-Mau contra o Estado britânico, o Foreign Office viu-se forçado a tornar pública a existência de um vasto arquivo colonial secreto. O seu conteúdo promete abalar muitas das ideias feitas acerca da descolonização britânica

Em Julho de 2011, quatro cidadãos quenianos, três homens e uma mulher, ouviram numa sala de audiências do High Court, em Londres, um juiz pronunciar-se a favor da admissibilidade da acção que haviam interposto, dois anos antes, contra o governo do Reino Unido, no sentido de se verem ressarcidos por abusos e torturas alegadamente sofridos às mãos de agentes do poder colonial britânico no Quénia, em meados da década de 1950.

Wambugu Wa Nyingy, Paulo Muoka Nzili, Ndiku Mutwiwa Mutua e Jane Muthoni Mara, todos eles octogenários, afirmam ter sido sujeitos a sevícias de vária ordem, incluindo castrações e violações sexuais, todas elas geradoras de traumas que os acompanharam pela vida fora. Entre as muitas vítimas deste género de práticas ter-se-á contado também o avô paterno de Barack Obama, que depois de ter servido no exército britânico na Birmânia durante a II Guerra Mundial, foi acusado de ter pertencido ao movimento Mau-Mau. As primeiras audiências do julgamento tiveram início na primeira quinzena de Julho, mas as suas implicações extravasaram já o âmbito estritamente judicial. Para além do precedente que pode resultar daqui para situações análogas (no Chipre e Malásia, nomeadamente), o caso está a obrigar os historiadores, e a opinião pública, a reequacionarem o papel da violência no fim do império, que tudo indica ter sido muito mais relevante do que até aqui geralmente se admitia. Na verdade, seria errado sugerir que os historiadores alguma vez tenham negado que essa dimensão estivesse presente. Mas algumas obras recentes - Histories of the Hanged (2005), do britânico David Anderson, ou Britain"s Gulag (2005), da americana Caroline Elkins, curiosamente ambas publicadas no rescaldo das primeiras revelações sobre a prática de tortura em prisões no Iraque pós-invasão - têm trazido elementos que demonstram como o recurso a métodos de repressão, controlo e terror foi tão sistemático no contexto da descolonização britânica como no de outros espaços imperiais europeus. Os dois historiadores, juntamente com Huw Bennett, um especialista na campanha do exército britânico durante a fase militar do conflito do Quénia (1952-1960), foram arrolados como peritos pela firma de advogados que representa os antigos prisioneiros quenianos e foram eles quem começou a examinar a enorme massa de documentação que este caso ajudou a desclassificar - e que se tornou num processo altamente polémico por si só.

O fim do idílio colonial

O episódio histórico a que o julgamento se reporta ficou conhecido como a "Emergência" ou a "Rebelião Mau-Mau". Na sua origem esteve a irrupção de vários focos de violência no Quénia, protagonizados por africanos recrutados entre as etnias kikuyu (sobretudo esta), embu e meru. Mais do que um movimento de libertação nacional, os Mau-Mau foram sobretudo uma revolta anticolonial, que deu expressão ao ressentimento de vários segmentos da população africana contra as iniquidades do domínio britânico. Protectorado da Coroa em 1895, colónia em 1905, o Quénia distinguiu-se como um dos territórios de eleição das elites britânicas expatriadas no império, que ali prosperaram como grandes fazendeiros (o cenário de Out of Africa /África Minha, de Karen Blixen). A hegemonia branca estabeleceu-se, como seria previsível, a expensas das populações nativas. Operações de confisco de gado, apropriação dos solos mais férteis, arregimentação forçada de mão-de-obra, campanhas militares punitivas foram apenas alguns dos aspectos definidores do "encontro colonial" no Quénia. A seguir à II Guerra Mundial, com um nova vaga de imigração europeia, os conflitos em torno do acesso à terra intensificaram-se. As elevadas cotações das matérias-primas encorajaram as autoridades a apostar em esquemas desenvolvimentistas visando o aumento da produtividade agrícola. Uma vez mais, o campesinato africano foi encarado como um empecilho para estes planos. Confinados a pequenas "reservas nativas", milhares de kikuyu afluíram a Nairobi, para aí se depararem com um ambiente social hostil. Em 1948, muitos fazendeiros começaram a sentir-se inquietos com a multiplicação de incidentes envolvendo ataques a gado e rumores de misteriosos ajuntamentos de nativos. Um movimento clandestino difundiu-se do Vale do Rift até às reservas kikuyu e, por fim, a Nairobi. Actos de terror - dirigidos sobretudo contra outros kikuyu identificados como "colaboradores" do poder colonial - tornaram-se cada vez mais frequentes. Algumas características do movimento - os seus indecifráveis rituais iniciáticos e a prática de actos de violência crus e, por vezes, sádicos - provocaram o pânico e a ira entre os colonos europeus. Muitos viram nos Mau-Mau (um nome aparentemente sem qualquer significado na linguagem kikuyu) o produto de um "atavismo bestial", eventualmente manipulado pelas forças do comunismo internacional - explicação que à época deixara já muita gente céptica.

A declaração do "estado de emergência", em Outubro de 1952, levou à detenção de Jomo Kenyatta, o primeiro Presidente do Quénia independente e, ironicamente, um opositor moderado dos Mau-Mau, logo seguida de uma perseguição metódica aos rebeldes refugiados nas florestas dos Aberdares e do Monte Quénia. Nesse mesmo mês, a morte de uma fazendeira branca serviria de pretexto para a expulsão de mais de 100 mil camponeses kikuyu do Vale do Rift, instigada por colonos europeus. Apesar das reacções emocionais provocadas por essa morte, a verdade é que o número de assassinatos de europeus durante a "Emergência" (poucas dezenas) foi relativamente reduzido, quando comparado com as baixas entre os africanos. Em muitos aspectos, os Mau-Mau, mal armados e sem apoios exteriores, revelaram-se uma presa fácil para o poder britânico, que de forma hábil e impiedosa tirou o máximo partido das clivagens nos grupos étnicos onde a insurgência recrutava os seus adeptos. Uma Guarda Nacional de kikuyus leais, assim como gangs e milícias de várias etnias constituíram auxiliares fundamentais das forças policiais e militares britânicas, um facto que acabaria por conferir ao conflito características de uma guerra civil. Para além desta capacidade de arregimentar aliados, e de uma superioridade evidente em termos de hardware militar e logístico, os britânicos beneficiaram ainda das lições colhidas noutras colónias a braços com revoltas semelhantes. Da Malaia, por exemplo, importaram a ideia de concentração das populações em aldeamentos - um expediente que dificultava a vida à guerrilha, ao mesmo tempo que lhes permitia usar os melhoramentos proporcionados às comunidades para efeitos de propaganda pró-governamental. Este confinamento de largos segmentos da população kikuyu (cerca de 1 milhão) foi realizado debaixo de coacção e terror e prolongou-se muito para além da captura do "general" Dedan Khimathi, o líder dos Exércitos Terra e Liberdade (o "outro" nome dos Mau-Mau), em Outubro de 1956, acontecimento que pôs termo à fase militar do conflito. Nos quatro anos seguintes, as medidas de excepção continuaram em vigor, dando cobertura às operações desenvolvidas pelas autoridades britânicas com vista a desmantelar a rebelião e infligir castigos exemplares aos insurgentes e aos seus cúmplices. Ao contrário do que pretendiam as narrativas oficiais da "Emergência", é hoje claro que o emprego de técnicas de tortura equivalentes às que os franceses usaram na Argélia não partiu da iniciativa de alguns indivíduos de inclinações sádicas (as habituais "maçãs podres" do sistema); era sim uma prática rotineira e generalizada, sancionada ao mais alto nível. As forças armadas britânicas estiveram directa e regularmente implicadas em diversas atrocidades, magistrados emitiram sentenças com base em confissões extraídas sob tortura, e Sir Evelyn Baring, um dos governadores, terá assistido pessoalmente a diversos espancamentos em centros de interrogação - factos conhecidos pelos responsáveis ministeriais em Whitehall. A certa altura, apreensivo com tanto zelo repressivo, o primeiro-ministro Winston Churchill achou mais prudente recomendar às autoridades em Nairobi que abrandassem o ritmo das execuções dos condenados à pena capital - mais de mil no cômputo geral da "Emergência", muitos deles "passeados" pelas suas aldeias e bairros, a fim de advertir as comunidades para as consequências que poderiam enfrentar, se colaborassem com a rebelião. Embora a morte de 11 prisioneiros em Hola Camp, em 1959, tenha causado consternação no Reino Unido, e dado origem a um inquérito que ajudou o primeiro-ministro MacMillan a ganhar argumentos para uma aceleração da descolonização da África britânica, muitos acreditaram que incidentes desse género eram a excepção, e não a regra, da governação imperial no Quénia. Uma ilusão não mais possível de manter.

Encobrimento

O julgamento no High Court veio também revelar até que ponto muitos dos militares, polícias e funcionários britânicos implicados no aparato securitário no Quénia estavam cientes da gravidade de muitos dos seus actos, tendo por isso solicitado emendas às disposições legais que regulavam os poderes de emergência, ou mesmo uma cobertura legal retrospectiva, por via de uma extensão das leis de amnistia de 1956. Uma vez mais, alguns dos documentos agora revelados mostram até que ponto altos responsáveis em Londres estavam a par das arbitrariedades do sistema. Num deles, o procurador-geral, referindo-se ao recurso ilegal ao trabalho forçado nos campos de concentração, comentou: "Se vamos pecar, então que o façamos discretamente."

Imediatamente antes da transferência do poder no Quénia, em 1963, foram também tomadas providências para repatriar toda a documentação potencialmente incriminatória para o Reino Unido. Alguma dessa documentação - que compreende mais de 1500 dossiers relativos à "Emergência" queniana (e 8800 relativos a episódios potencialmente melindrosos ocorridos noutras 36 colónias) - foi conservada num complexo governamental em Hanslope Park, no condado de Buckinghamshire, à margem do sistema nacional de arquivos britânico. Muita dessa documentação, até aqui classificada como secreta, está agora a ser passada a pente fino por equipas de investigadores, a fim de se apurar com exactidão o fundamento das queixas apresentadas em tribunal. A revelação de um corpus documental tão vasto e inédito causou consternação e perplexidade. Uma investigação oficial ordenada por William Hague, o secretário de Estado do Foreign Office (e ele próprio um historiador), veio demonstrar que os arquivos nacionais britânicos, em Kew Gardens, se tinham recusado a incorporar esse material, alegadamente por se tratar de um "arquivo colonial", logo não prioritário - explicação tida como pouco convincente. O facto de essa documentação ter há uns anos corrido o risco de ser destruída abalou a confiança de muitos investigadores numa instituição que, na sequência do Freedom of Information Act de 2000, parecia estar a aproximar-se dos regimes de acesso mais liberais que há muito vigoram em arquivos oficiais de outros países (nomeadamente os EUA). Alguns artigos saídos na imprensa, baseados em desclassificações selectivas realizadas pelo FO, sugerem, por exemplo, a possibilidade de a campanha dirigida contra a guerrilha comunista na Malaia (1948-1960) ter sido marcada por diversos episódios de atrocidades sobre populações civis, mas os historiadores suspeitam que podemos estar apenas perante a ponta do icebergue.

Tudo indica pois que, mais tarde ou mais cedo, uma reavaliação geral da descolonização britânica venha a ter lugar nos próximos anos. Esperar que a historiografia mais nacionalista que ainda hoje pontifica nos media do Reino Unido renuncie de vez aos mitos da benevolência imperial talvez seja pedir de mais; mas uma visão mais crítica e desapaixonada do projecto colonial britânico terá agora outras condições para fazer valer os seus argumentos.

Professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL, Departamento de História

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