O Youtube trocou as voltas a Bernardo Nascimento

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Bernardo Nascimento, 36 anos, está a trabalhar agora na sua longa, Ocean Size DR

Dentro de dias apresenta a Ridley Scott, no Festival de Veneza, uma proposta para uma web series. É para já o seu "prémio" por ser um dos dez finalistas do Your Film Festival. O que faz online um defensor do classicismo e do cinema nas salas?

Um português de 36 anos vai apresentar a Ridley Scott, durante o Festival de Veneza, um projecto de série de dez episódios, de 15 minutos cada, para ser exibida na plataforma YouTube. Bernardo Nascimento chega aí - à possibilidade de ter à disposição 500 mil dólares - porque é um dos dez finalistas do Your Film Festival, um festival de cinema online (criado por Scott). Uma curta que realizou, North Atlantic (no ano passado distinguida com o prémio de fotografia no Festival de Curtas de Vila do Conde), foi seleccionada de entre 15 mil propostas. Chegou-se a um lote de 50 semifinalistas e uma votação pública online definiu os dez títulos finais, entre os quais o do português. Um grupo que inclui dois norte-americanos, dois australianos, um boliviano, um brasileiro, um libanês, um egípcio e um espanhol.

Mas a verdade é que a partir de agora North Atlantic não fará mais nada por Bernardo. Serviu para ter encontro marcado com Ridley Scott em Veneza, onde, de hoje e até 8 de Setembro, se desenrola o Festival Internacional de Cinema. É a proposta que lhe vai apresentar no dia 2 que o declarará ou não como vencedor. Se vencer, terá ainda de ser convencido... Na verdade, está progressivamente a convencer-se. É que Bernardo ainda tem dúvidas. "A plataforma online não me convence." Mas por outro lado: "Há coisas que estão a mudar."

Experimentou essa reticência no início do processo, quando lhe propuseram apresentar North Atlantic online. Percebe-se, a reticência, quando se vê um filme a pedir ecrã largo, a desejar o cinemascope mítico e experiência às escuras em sala grande. Em cerca de 15 minutos: a história de um controlador aéreo numa ilha açoriana que entra em contacto com um piloto que ficou sem combustível sobre o Atlântico e vai despenhar-se. Encontro suspenso, uma clássica espera: quando começa pode lembrar-nos Carpenter (os planos nocturnos do recorte da costa, O Nevoeiro) mas progride para uma música à beira da comoção que, ainda por cima falado em inglês, evoca o encontro entre David Niven e Kim Hunter no A Matter of Life and Death de Michael Powell e Emeric Pressburger. É claro que North Atlantic permanece numa antecâmara, sem explodir como a fantasia romântica de Powell/Pressburger. Mas não parece nada estar a fazer "género" - está convictamente ensopado em classicismo.

"É claro que quando fiz o filme não pensei na Net, fi-lo para a sala de cinema", diz Bernardo, que recorda com emoção o full screen do National Film Theater, no South Bank de Londres, onde North Atlantic se estreou. Apesar de ter sido "uma experiência irrepetível", já que não encontrou mais salas com condições de ecrã semelhantes, Bernardo trabalhara no filme "os elementos naturais, o mar e o vento, de forma a que eles ganhassem preponderância, reduzindo as figuras humanas a uma escala muito pequena". Estava convencido que essa solidão, "geográfica e antropológica", precisava do ecrã largo para ser exponenciada e experimentada. Inicialmente disse que não à participação no Your Film Festival. "Imagino que uma comédia à la Woody Allen com gente a conversar à volta de uma mesa pode funcionar... Resisti. Só não fui mais teimoso porque o convite chegou através do programador de curtas do Festival de Sundance, que tinha visto o meu filme e que é alguém com experiência em termos de programação nos novos canais de distribuição. Convenceu-me que podia funcionar na Net."

O início foi doloroso, confessa. "A cor perdeu-se em absoluto. O YouTube como plataforma tecnológica defendeu mal os filmes ao início. Fiz dez uploads de North Atlantic antes de chegar a uma coisa aceitável... Há um imediatismo nos browsers a que eu não queria sujeitar o filme. Mas depois foi uma surpresa sentir que as coisas podiam correr bem. Quando, por exemplo, directores de fotografia me telefonaram a dizer que tinham gostado do que viram."

É, então, numa encruzilhada que Bernardo se encontra. Enfrenta uma proposta - como se dizia num filme de outro tempo e de um classicismo formidável - que não pode recusar. "O YouTube trocou-me as voltas. O que percebi rapidamente é que está a querer tornar-se produtor de conteúdos. Inicialmente, a proposta era de o vencedor receber meio milhão de dólares para realizar uma longa" - foi até divulgada a participação do actor Michael Fassbender, mas, Bernardo nota, hoje não se percebe claramente em que condições essa participação se concretizará. O que agora é claro é que "esse meio milhão de dólares é para uma web series". Como é que "web series" aparece no mesmo contexto em que se evoca Michael Powell? Essa é, como se viu, uma história destes tempos.

Onde é que ele está?

Um amigo de Bernardo disse-lhe que com North Atlantic ele tinha "conseguido fazer o AMatter of Life and Death sem a parte boa" - isto é, sem a parte da negociação de David Niven perante o tribunal celeste a defender o seu caso de vida. "Vivendo em Londres tenho-me cruzado com a obra de Michael Powell, através do British Film Institute, por exemplo, ou da programação na televisão. É uma presença constante aqui." Mas esse era precisamente um dos filmes de Powell/Pressburger que Bernardo não tinha visto. "A coisa forte do Matter... é a questão moral, é não haver tempo certo para morrer, é a sequência da escadaria, é a conversa com os deuses. Há um sentido de humor, por exemplo, que o meu filme não tem." Sim, mas a questão de Powell aqui serve apenas de fantasma. E chama para que se perscrute em North Atlantic uma genealogia, um "onde é que estás?".

Onde é que ele está? A pergunta, nestes tempos, será escandalosamente restritiva: quer fixar quando tudo à volta exige flutuação. Não é por acaso que Bernardo anda às voltas com o YouTube. Ainda assim... "Gosto muito de um cinema espartano. De filmes magros - até porque é-me mais simples, como realizador, controlar as coisas. Gosto de [Terrence] Malick, da forma como situa o homem na Natureza. Gosto de [Ingmar] Bergman, o realizador que mais admiro porque faz coisas que não entendo e que dificilmente são replicáveis. Trabalhei com Manoel de Oliveira, não partilho as suas ideias sobre a imobilidade da câmara mas aprendi a lição de que não se deve mexer a câmara só para o filme ficar mais bonito. Mas, por exemplo, gosto do Wong Kar-wai. E vejo e revejo os filmes de Billy Wilder."

Antes de ir para Londres, há cinco anos, o estudante de História Contemporânea e Música trabalhou em Portugal como assistente. Um espectro vasto, de Oliveira (no Quinto Império, 2004) ao Crime do Padre Amaro, o que quer dizer que experimentou os dois lados, a histórica dicotomia que o "chateia", aquela que coloca "cinema de autor" de um lado e "cinema comercial" do outro. "Há uma escala de cinzentos entre uma coisa e outra. Tenho amigos em França que invejam Portugal como o último sítio onde se faz cinema livremente. Reconheço esse valor. Mas sinto a falta de filmes que encerrem em si uma criação autoral e que sejam acessíveis." Ou seja, Bernardo Nascimento, que trabalha também neste momento na sua longa, Ocean Size, "história da última semana de Verão numa vila escocesa", dá corpo a uma tradicional forma de resolução da dicotomia que é colocar-se numa "terceira via". Na conversa, a expressão é atirada por nós depois de Bernardo afirmar a necessidade de "quebrar estigmas e desejar o mercado." Mas não lhe desagrada de todo essa definição de um cinema "do meio".

"Houve pessoas que viram North Atlantic e que disseram: "Porra, não parece português". Agradou-me. E incomodou-me. Quero é fazer filmes. Se fizer vários e daqui a uns anos alguém achar que eles contribuem para a definição de uma identidade, tudo bem. Sou português. Quero fazer filmes. Como eles vão ser catalogados, isso escapa-me. E quero partilhá-los com as pessoas, essa é uma parte do processo que me interessa."

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