Um pátria que se repete no Verão

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O Adriático junto ao Molo Audace, em Trieste, onde Claudio Magris nasceu: foi aqui que coleccionou as suas primeiras cenas literárias, e que aprendeu que quem nasce ao pé do mar só tem uma pátria, o Verão ELVIS DEL TEDESCO

Os livros de Claudio Magris, ensaios, romances, viagem, estão presos à geografia. Quase sempre na primeira pessoa, não importa se autor e narrador se confundem - como em Danúbio - ou são distintos - caso de Às Cegas. Há o registo de lugares e de objectos, a descrição de paisagens, a busca enciclopédica da explicação das coisas e dos seus nomes, a cartografia das emoções, um brique-a-braque que parece sem ordem, mas ao qual o autor tenta sempre um sentido. É um coleccionador na sua função literária. De datas, de lugares e de gente, e de gente numa dada data num determinado lugar, que pode não ser o seu.

Aqui entra a noção de pátria. De onde sou? De um território, de uma língua? O comum é ser dessa conjugação da palavra com a terra. Mas Magris é de Trieste. Que lugar para nascer... "Salataper morre pela italianiedade de Trieste, mas o seu nome denuncia as suas origens eslavas", lembra, para desmontar a ideia de pátria, tida como boa por tanta gente, o nacionalismo e todos os ismos que ela promove. "A nação, a pátria, a identidade não são um ídolo imóvel, nascem, vivem e transformam-se no tempo. As pátrias morrem e renascem; em 1943 morreu uma Itália e nasceu outra, herdeira de toda a sua história." Italiano? Germanófilo também, pois é o alemão a língua que contrapõe o agressivo Vaterland a Heimat, a pátria entendida como casa natal - "aquela casa nata", dizia o imaginativo marxista Ernst Bloch, "em que ainda ninguém esteve realmente, porque a verdadeira pátria, a verdadeira casa natal da vida é um mundo libertado da injustiça e da opressão, um mundo que ainda não existe".

A pátria de Claudio Magris tem fundo azul. É a que prendeu o seu olhar. Montanhas de um lado, Adriático do outro. Ali, nesse lugar chamado Trieste, coleccionou as primeiras cenas literárias. Fixou os primeiros nomes, sentiu o ambiente, os cheiros, e aprendeu que quem nasce ao pé de um mar como aquele, é, sobretudo de um tempo que se repete todos os anos: o Verão. "Nas cidades à beira de água, o Verão é grande luz marinha, horas passadas a deixar-se embalar pelas ondas, a vê-las e ouvi-las rebentar na margem; retorno à infância da humanidade - que provém do mar - e do indivíduo, que aprende a nadar, no oceano originário pré-natal, antes de aprender a caminhar."

Pelo vazio de tarefas, esse é o tempo de todas as possibilidades. Escreve no derradeiro ensaio de A História não Acabou, que reúne muitas das suas crónicas para o Corriere de la Sera: "O Verão, especialmente marinho, é a paisagem deste presente imóvel; cores absolutas do mar, vento cálido no meio de aloendros carnosos, ciclos de mel e de fogo, ilhas que se afundam como o Sol do meio-dia, incessante canto das cigarras. É a estação da confidência erótica com a vida, também com o seu amadurecer e murchar; o odor das algas que secam, ou o de um fruto que apodrece caído no chão não é pior que o dos pinheiros, dos insectos que pousam nas peles nuas e não incutem nenhuma puritana esquisitice - até morrer sob aquela luz impiedosa como Apolo que esfola Mársias já não faz tanto medo, torna-se uma onda que rebenta, a imperceptível deslocação de uma constelação no céu."

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