Torne-se perito

O que fazem seis vacas no fundo do mar? Estão à espera dos cientistas

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Poliquetas (em cima) a comer os ossos das vacas; os ossos ao lado do bloco de cimento (ao centro); e o braço do Luso a apanhar amostras Fotos: EMEPC

A ideia é simular o que acontece a uma baleia que morre e as implicações da deposição dessa matéria orgânica nos ecossistemas. Parte das carcaças bovinas recebeu agora a visita do robô submarino Luso

Talvez seja difícil acreditar que no fundo do mar, a mil metros, ao largo de Setúbal e da ilha do Faial, repousam seis vacas, ou o que resta delas. Mas, sim, são mesmo vacas. E há razões - científicas - para alguém as ter lançado de navios, borda fora, já mortas e presas a blocos de cimento, há cerca de um ano.

Esperam, desde então, pela visita de cientistas portugueses. O que terá acontecido às carcaças dos animais? Terão sido completamente comidas? Ainda restarão ossos? A única maneira de encontrar respostas seria mergulhar com um veículo até à profundidade onde os blocos de cimento caíram com as vacas agarradas, e foi isso que agora aconteceu com o robô submarino Luso, da Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental (EMEPC).

A caminho de nova campanha para reforçar os dados da proposta de alargamento da plataforma continental portuguesa para lá das 200 milhas, na zona dos Açores, com o navio Almirante Gago Coutinho, da Marinha portuguesa, o Luso fez esta quarta-feira à tarde um mergulho de teste ao largo de Setúbal - e aproveitou-se assim para saber o que sucedeu às cinco vitelas, ou 570 quilos de carne e osso, que foram aí lançadas em Março de 2011. A sexta vaca, afundada em Agosto de 2011 no banco Condor, a sudoeste do Faial, ainda vai ter de esperar por uma visita, para depois se fazerem comparações entre os dois locais.

Pelas imagens de vídeo captadas pelo Luso - comandado à distância, no navio -, pôde ver-se que só restaram ossos. Estão espalhados pelo fundo do mar, ao lado do cimento.

Mas não foi fácil encontrar o que resta das vacas e, por isso, o mergulho do robô durou seis horas, como conta Ana Hilário, bióloga da Universidade de Aveiro, que coordena este projecto, feito em colaboração com Ana Colaço, do Departamento de Oceanografia e Pescas (DOP) da Universidade dos Açores. "Demorámos muito tempo a encontrar o local, porque, quando fundeámos as vacas, devemos ter apanhado alguma corrente forte que arrastou a poita para longe do local exacto onde estava o navio", relata Ana Hilário, a bordo do Almirante Gago Coutinho.

Mas quando deram com o local, as imagens recebidas estavam longe da desolação. "Os ossos estão cheios de vida!", diz Ana Hilário. O que a deixou contente, tendo em conta os objectivos deste projecto, o Carcace, que estuda a colonização de carcaças de mamíferos no Atlântico profundo. "A ideia é simular o afundamento de uma baleia. Quando morre, uma baleia cai no fundo marinho e sustenta os ecossistemas vários anos."

O que se passa a seguir ao afundamento de uma baleia, ou de vacas, decorre em pelo menos três fases, dizem estudos semelhantes para o Pacífico. O primeiro estudo do género foi nesse oceano, nos anos de 1980, quando se descobriu, por acaso, uma baleia morta. A partir daí, conta Ana Hilário, afundaram-se outras já mortas. Neste século, estudou-se uma ao largo da Suécia, mas só a 30 metros - por isso, este trabalho sobre a deposição de matéria orgânica no oceano é inédito para o Atlântico profundo.

Nos Açores, a bióloga Ana Colaço já pôs uma baleia-piloto a 200 metros de profundidade, próximo do Faial: "Quando lá fomos com o ROV [robô submarino] do DOP, que vai até 300 metros, vimos a poita que afundámos, mas não encontrámos nem ossos, nem nada, o que nos leva a crer que foi comida por um tubarão."

Primeiro, chegam os predadores, como tubarões e peixes grandes, que arrancam bocados de carne da baleia. "Caem pedaços de tecidos moles nos sedimentos, que os enriquecem com matéria orgânica", explica Ana Hilário, referindo-se à segunda fase de colonização de um ecossistema formado por uma carcaça.

"Finalmente, quando a matéria orgânica se decompõe, há compostos de enxofre, o que faz com que esse local seja propício à ocorrência de quimiossíntese e de bactérias quimiossintéticas. Há um ecossistema semelhante às fontes hidrotermais, em que a produção primária [de açúcares e proteínas] não depende do Sol e da fotossíntese, mas do uso dos compostos de enxofre por estas bactérias."

As fontes hidrotermais, descobertas em 1977, são emanações de água quente do interior da Terra, carregada de gases e metais e associadas a ambientes vulcânicos. Encontram-se rodeadas de vida, apesar de a luz do Sol não chegar ali. Geralmente, na base da cadeia alimentar marinha estão algas microscópicas, dependentes da luz solar para sintetizar os seus elementos. Mas nas comunidades biológicas em redor das fontes, a base da cadeia alimentar são microorganismos que sintetizam os elementos de que necessitam para viver usando só a energia química.

Assim, o estudo dos ecossistemas quimiossintéticos ligados à decomposição de grandes animais permite olhar também para a origem da vida. "Em termos evolutivos, há a hipótese de a vida ter começado num ambiente quimiossintético", frisa Ana Hilário.

Pode haver ainda uma quarta fase, que nem sempre ocorre, nos ecossistemas quimiossintéticos gerados pela decomposição das carcaças: poliquetas, do género Osedax, a alimentarem-se dos ossos. "Estas minhocas só se desenvolvem nos ossos de baleias ou ossos com muita matéria orgânica, com tutano", diz Ana Colaço. "A fêmea é grande e avermelhada e o macho microscópico."

Antes do mergulho ao largo de Setúbal, as duas cientistas não sabiam se estas poliquetas iriam aparecer nas águas portuguesas. Agora já sabem que sim, que se banqueteavam com os ossos das vacas. "Além de duas espécies de Osedax, provavelmente novas, há também mexilhões e muitos crustáceos", diz Ana Hilário.

E, com o braço robotizado do Luso, trouxeram-se até à superfície sedimentos, para estudar os microorganismos que albergam, e ossos cheios de bichos.

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