No mundo como num café

De frente para o Adriático, nas margens do Danúbio, no mundo total de um louco, Claudio Magris persegue a identidade do centro da Europa a partir de Trieste, cidade que todos quiseram e que resiste a deixar-se possuir. No limite, este mundo pode caber num café. Mas um café de verdade, como o San Marco.

O mundo pode caber inteiro num café. Não um pseudo-café, exclusivo, para pares. Não é isso. Um café de verdade, para casais e solitários, artistas com muito ou pouco génio, escritores em angústias criativas, estudantes em exames ou em desamores, bebedores de cerveja ou de vinho, conversadores ou contemplativos. Um café em L, com mesas de mármore sobre pés de ferro a acabar em patas de leão.

Por entre essas mesas, as pessoas deslocam-se formando ângulos rectos como cavalos num tabuleiro de xadrez. A imagem é literária, usada por um homem que costuma sentar-se a uma dessas mesas, entregue a si ou mirone descomplexado. Esponja de histórias dos outros e ele mesmo contribuinte para narrativas alheias, a ver quem entra e sai, os batentes das portas a oscilarem no rasto dessa gente que passa. Muitas vezes ele estudou ali, tantas vezes falou ali da história de Trieste e da cultura centro-europeia enquanto alguém jogava cartas, numa mesa ao lado. "Enquanto existirem cafetarias, a ideia de Europa terá conteúdo", escreveu George Steiner, outro frequentador de cafés, outro pensador da Europa e da sua geografia, território que tem a particularidade de poder ser percorrido a pé. Pode-se calcorrear a Europa. Questão de tempo. Um caminhar contínuo, a pé, entrando e a saindo de cafés. "Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da ideia de Europa", desafiou ainda Steiner num pequeno volume de ensaios publicado em 2004. Ele explica e exemplifica: "A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrado, aos balcões de Palermo."

Os cafés de Steiner são como os do escritor de Trieste. Formadores. Cafés de verdade que, como a cidade à beira-mar, são lições de tolerância. O vizinho da mesa ao lado condescende com os tiques e os defeitos do outro. Roer as unhas, abanar a cadeira. Na café de verdade, e não naquele onde só cabem iguais, a fidelidade é conservadora mas há um pluralismo libertador entre champanhe e bolos de fruta, e um ruído de fundo que é o conjunto de todas a vozes e talheres e louças e passos e tosses e risos. "Um mundo é cheio de vozes", e aquele café tem o mundo. O lugar dos poemas, da boémia, dos brindes ao momento feliz de um amor, à gritaria do louco que paga a rodada. Lêem-se os jornais, comunitários, partilha de civilidade, presos à haste de madeira. E escreve-se.

O San Marco é um mundo. Essa a ideia a não perder nunca. O café a que já chamaram uma "academia platónica", "onde não se ensina nada, mas se apreendem a sociabilidade e o desencanto"; o café onde é possível conversar, "contar casos", mas onde não se pode fazer comícios. "Nesse lugar de desencanto, no qual já sabemos como o espectáculo termina, mas nem por isso perdemos o gosto de assistir a ele, ou a indulgência para com os lapsos dos actores, não há lugar para falsos mestres, que seduzem com falsas promessas de redenção aqueles que têm uma ansiosa e vaga necessidade de falsa e imediata redenção." Este café "é o lugar da escrita": "Estarmos sós, com papel, caneta, e uns dois ou três livros no máximo, agarrados à mesa como um náufrago sacudido pelas ondas." Tudo sem a ilusão de que não tenha havido pecado original, o que dificulta a venda de bilhetes para a terra prometida.

Quem escreve, como Claudio Magris escreve e tem vindo a escrever nas mesas do Caffè San Marco, em Trieste, sabe que não está na terra prometida e que jamais se poderá chegar lá, mas mesmo assim segue caminho. "Sentados no café viajamos. Como num comboio, num hotel ou pela rua temos connosco muito poucas coisas, não é possível opor a coisa alguma qualquer vaidosa marca pessoal. Não somos ninguém. Naquele anonimato familiar, podemo-nos dissimular, livrar-nos do eu como de uma casca." E escrever sem saber do tempo, com todas as interrupções de um café. O riso dos outros, uma conversa curta, "o perfil de uma mulher".

Um rio de muitos nomes

Reduzir o universo de Claudio Magris a um único sítio seria concentrá-lo no Caffè San Marco. O mundo. Fica em Trieste, a cidade o escritor onde nasceu em 1939, onde vive, onde estudou e se especializou em estudos germânicos, onde ensinou; a cidade a partir da qual se fez viajante por não haver quem resista ao mar, ao que há para lá da massa azul de água, ainda que ele mesmo tantas vezes tenha seguido por terra, Europa dentro, costas para o Adriático - o seu mar -, Danúbio abaixo, da Floresta Negra ao Mar Negro, ligando a Alemanha à Grécia (uma união cada vez mais errática). E tantas cidades e tantas línguas pelo meio.

O Danúbio dos muitos nomes visto a partir daquele microcosmos que é Trieste, por onde ele não passa, mas onde a viagem de Magris pelas letras começou. Um ponto tão disputado num mapa de guerras com fronteiras em desalinho. No seu café, Magris não espera a terra prometida, mas continua como se ela existisse. Há quem diga que um dia virá um Nobel para ele, um dos homens que melhor sabem conjugar literatura com Europa, ou Mitteleurope, num momento em que a Europa está a precisar de livros. Mas se o Nobel não vier, Magris há-de continuar no café, a escrever e a falar de Trieste e de literatura e de romance e de viagem, e não há-de ser nada. Tantos foram os grandes que nunca o tiveram. Ele continuará nesse microcosmos a construir a sua cosmogonia.

O rio dos tantos nome é um mundo e tanto. "Entre vários povos, Danúbio e Istro indicavam respectivamente o curso superior e o inferior mas por vezes também o rio inteiro: Plínio, Estrabão e Ptolomeu interrogavam-se onde acabava um e começava outro, talvez na Ilíria ou nas Portas de Ferro. O rio "bisnomis", como lhe chamava Ovídio, arrasta a civilização alemã, com o seu sonho da odisseia do espírito que orna a casa, para oriente e mistura-a com outras civilizações, noutras tantas metamorfoses mestiças em que a sua história atinge a consumação e a queda." Magris é um germanista e sabe do que fala quando fala do curso deste rio e do caudal que ele transporta. Como ele, outros germanistas viajam "intermitentemente", como e quando podem. "Ao longo de todo o curso deste rio que liga o mundo, transporta atrás de si a sua bagagem de citações e de ideias fixas; se o poeta se confia ao barco embriagado, aquele que o reveza procura seguir o conselho de Jean Paul, que sugeria que se recolhessem e anotassem de passagem imagens, velhos preâmbulos, cartazes de teatro, conversas locais, poemas e batalhas, inscrições fúnebres, inscritos metafísicos, recortes de jornais, editais fixados nas estalagens e paróquias."

Tudo pode começar por uma placa com a inscrição hier entspringt die Donau (aqui nasce o Danúbio), no Parque dos Fürstenberg, em Donaueschingen. Cena para fotografar, já que certezas não existem. No limite, há quem diga que o Danúbio nasce de uma torneira, mas na Floresta Negra há outra nascente assinalada, a mais distante do Mar Negro, a que faz o Danúbio ter 2888 quilómetros até à foz, ou seja, mais 48,5 quilómetros do que teria se nascesse no Parque dos Fürstenberg. Essa, a mais longínqua, fica em Breg, perto de Furtwangen. É de anotar. Magris tomou nota neste livro onde não só deus, mas sobretudo a viagem, está nos detalhes. Façam-se as malas e pouco importa o lugar de saída. Haja espaço para a imprevisibilidade, que hão-de vir peripécias.

A partir do banco de pedra junto ao hotel Neu-Eck, na Floresta Negra, ou da cadeira de madeira do San Marco, em Trieste, a cidade que nunca se deixou possuir, que já foi austríaca, que a Jugoslávia quis para si, que a Itália ganhou. Croata, eslovena, alpina, austríaca, italiana... as marcas dos tempos e dos povos estão nela. Fixam-na, como o San Marco que apareceu ao fundo da rua Battisti, diz-se que a 3 de Janeiro de 1914. Destruído pelas guerras, reconstruído depois delas, muito vivido durante, enquanto ponto de encontro de "jovens irredentistas", "laboratório de passaportes falsos para patriotas anti-austríacos que queriam fugir para Itália". Por essa altura alguém disse que se o "civilizado" império austro-húngaro tivesse continuado o mundo teria permanecido um Caffè de San Marco. E perguntava o homem: "Acham pouco?"

Magris vai buscá-lo à memória para falar de um mundo à sua imagem. "No San Marco triunfa, viçosa e impetuosa, a variedade", escreve, como que para dizer que é o mais que se pode querer para o espaço que vai da nascente à foz do Danúbio, o rio que em 1986 deu nome a um dos mais marcantes livros da sua carreira: "Este Danúbio que é e não é, que nasce em vários lugares e vários progenitores, recorda-nos que cada um de nós, graças à trama múltipla e oculta a que deve a sua existência, é um Nonteentiendo, como os praguenses de nome alemão ou de nome checo." Continua Magris, num presente que eterno: "Esta tarde, ao longo do rio que de Verão, dizem-nos, desaparece, o passo junto ao meu é insofismável como o curso da água, e na sua onda, seguindo a curva das margens, talvez eu saiba quem sou".

A identidade nunca é dissociável da viagem, sobretudo da viagem do viajante solitário, a sós, num curso interior, como Magris se vê percorrendo as margens do Danúbio. Em Viena, Bucareste, Budapeste. Mas também fora do rio. No universo de Às Cegas (2009), todo o espaço no tempo que uma viagem pode abarcar - coisa que na cabeça de um louco ou de um inventivo fica perto do infinito. Para Magris, é o mundo e o Homem nele. O que, no limite, cabe num café de verdade.

De passagem

Tome-se a literatura como transporte, viajantes sós ou bem acompanhados a ver o mundo. A testemunha, no papel ou na palavra dita, na imagem partilhada, é tão fundamental como o leitor na literatura. Faz-se a mala como quem escreve o livro. Desfaz-se a mala como quem dá o texto por terminado. O incomportável. Com a dimensão, com a estrutura, com a bagagem, com a memória. O intransmissível. Sabendo o que ficou para sempre noutro lado, sabendo que, mesmo assim, no regresso vão faltar coisas; nunca há suficientes blocos, nem malas, nem suportes, nem sabedoria para eliminar esquecimentos; "como em qualquer viagem, em qualquer mudança", há perdas.

Para alinhar a ideia da inevitabilidade do falhanço do transporte, Magris pede ajuda ao poeta. "Na verdade caminhamos quase órfãos, diz Hölderlin na poesia Nas Nascentes do Danúbio - o rio corre e cintila ao sol como o fluir da vida, mas o sentido que reluz é uma ilusão óptica do olhar deslumbrado que vê inexistentes manchas luminosas na parede, esplendores do néon que se dissipa, sedução da aparência, capas ilustradas." Não há como carregar cada pormenor. "Entre uma e outra viagem, de regresso a casa, procuramos distribuir os volumosos cadernos de apontamentos na superfície plana do mapa, transpor envelopes, blocos, desdobráveis e catálogos para folhas batidas à máquina." Mesmo assim, há que rumar a Sul, tal como o Danúbio. "Movermo-nos é melhor do que nada. Olha-se da janela do comboio que se precipita na paisagem, oferece-se ao rosto um pouco da frescura que desce das árvores do caminho, misturando-se à gente, e alguma coisa corre e passa através do corpo, o ar insinua-se entre as roupas, o eu dilata-se e retrai-se como uma medusa, um pouco de tinta transborda do tinteiro para se diluir num mar cor de tinta." À partida, o rio e o escritor olham o mesmo objectivo: o mar. No Adriático, Magris aprendeu que o azul pode ser impiedoso; no Negro, o Danúbio encontrou a foz. "Em toda a viagem há pelo menos um fragmento de Sul, horas que se alargam, abandono, fluir da vaga. Sem querer saber dos órfãos das suas margens, o Danúbio corre para o mar, para a grande crença."

Como o escritor no fio da sua narrativa. Ele, Magris, corre, mas sem pressa. Ou se a tem não se nota. Um livro leva anos de notas, de atenção aos outros. O Danúbio continua como metáfora. Segue-o, como a si mesmo. Entra, a pretexto dele, nos cafés de Viena, mas sabe que cada café vale por si. O mérito da leitura do colectivo está nessa capacidade de formar o puzzle da experiência solitária, de se perder em cada um dos cafés de Viena como se estivesse no San Marco. Neles, aprendeu que a sabedoria vienense se pode resumir a uma máxima linear: "Vive e deixa viver". Parte dessa sabedoria veio-lhe de ser um meticuloso observador de esplanada. "No Café Central estamos ao mesmo tempo no interior e ao ar livre, numa ilusão entre ambas as coisas; as altas vidraças da cúpula, cobrindo uma espécie de jardim interior, derramam uma luz diurna que faz esquecer os vidros, mas não deixam passar a chuva. A grande chuva vienense desmascara a crescente abstracção e irrealidade da vida, devorada cada vez mais pelos mecanismos da informação colectiva e transformada na sua própria encenação", observa, sem nunca esquecer a gente que povoa os espaços.

A cada sítio, os seus protagonistas, factor humanizante de uma escrita atenta ao modo como cada um ocupa e deixa as suas marcas no espaço. Aqui, estão Musil e Altenberg, mas também Robert Altman. Numa única página. É ler para perceber. Descobrir o que pode ser o sabor de um gelado em Budapeste, a mais bela das cidades do Danúbio, atreve-se, correndo apenas o risco de levar com a sensibilidade alheia, do outro enquanto viajante, como ele observador. "Budapeste dá a sensação física da capital, com uma altivez e uma imponência de cidade protagonista da História, apesar do lamento de Ady pela vida magiar "cinzenta, cor de poeira"."

Enquanto mimese de Viena, ou seja, mimese de uma mimese de Paris, Budapeste é um poema. Podia ter sido escrita à mesa de um café. Existe nas margens do Danúbio e ainda o rio vai longe da sua foz, no negro tido como pouco hospitaleiro do mar onde desagua, antes de passar por Bratislava, Timisoara, pela Transilvânia, por tantos nomes míticos de uma Europa nunca como agora carente de mitos. "Nas margens do Danúbio domado, que corre lento e repleto de serenidade para o seu fim, mulheres ajoelhadas na água lavam tapetes e estendem-nos a secar." Estamos em Sulina, o fim. Navios de ferro e ferrugem oscilam sobre as vagas, sugerindo o movimento de um porto activo, mas a cidade dormita num desarmamento impreciso, varanda de uma hospitalização apática e prolongada cujo motivo se perdeu da memória clara. Nas lojas e nos armazéns não há quase nada, algum toucinho e comida em lata, e do mesmo modo no mercado as bancas estão vazias enquanto uma oferta supérflua de profusos rabanetes parece uma paródia da abundância."

O caminho é o do mar, a vontade é a de "mergulhar a mão e o pé nas águas mistas da transmutação ou de tocar a solução de continuidade, o ponto hipotético da dissolução." Magris estava de passagem. Sabia-o quando embarcou na viagem, desde a nascente, ou mais atrás, desde o café de Trieste. Vê-se sempre passageiro, talvez a mais precária das condições, mas também a que o transforma num intérprete do que vê, quanto mais não seja o rasto dos que entram e saem do Caffè San Marco, fazendo balançar os batentes das portas, na sua Trieste natal.

Na próxima semana, o mapa de escrita de Paul Auster

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