Um provérbio chamado Nelson Rodrigues

Prolífico dramaturgo, jornalista, cronista, ficcionista e uma das grandes personagens públicas do Brasil do século XX, Nelson Rodrigues nasceu há 100 anos

Em 1977, Nelson Rodrigues foi convidado para uma sessão de autógrafos do seu novo livro, O Reaccionário, numa livraria de Florianópolis, cidade do Sul do Brasil. Nelson não viajava de avião e detestava sair do Rio de Janeiro e até da sua Zona Norte, "o único lugar", dizia ele, "onde ainda há o suicídio por amor, onde ainda se morre e mata por amor". Além disso, lembra o jornalista Ruy Castro, aclamado autor da sua biografia, O Anjo Pornográfico, Nelson passou à época por várias complicações respiratórias e cardíacas que o internaram em coma e quase lhe tiraram a vida. Um jornal chegou mesmo a precipitar-se e a publicar o seu obituário.

Apesar disso, ele resolveu ir. Percorreu os mais de mil quilómetros de carro. A viagem durou um dia inteiro, ou mais, com várias paragens. Chegado a Florianópolis, Nelson apresentou-se na livraria, com caneta e livros para autografar. Conta novamente Ruy Castro que Nelson Rodrigues esperou duas horas na livraria e ninguém apareceu. Nenhum leitor, nenhum devoto, nenhum curioso. No dia seguinte, Nelson regressou ao Rio no mesmo bólide, pelo mesmo trajecto, sob o estigma da pior rejeição.

Estávamos em 1977, mais coisa menos coisa. Nos seus anos finais, Nelson Rodrigues andou por baixo. Toda a vida conhecera a tragédia, a polémica, a violência real ou imaginada. Vivera, como as suas personagens teatrais, "de paroxismo em paroxismo", de velório em velório. Mas naquele tempo, além das mazelas de saúde, o legado da tuberculose inextirpável que o atacou em jovem, Nelson parecia uma voz do jornalismo e das letras brasileiras cada vez mais isolada, mais mumificada. Depois de uma década publicando centenas de crónicas diárias, começou a escrever menos: as suas famosas Confissões não saíam na imprensa desde 1975. Numa conhecida entrevista que deu ao seu amigo Otto Lara Resende, exibida pela TV Globo na mesma altura, Nelson proclamava-se uma "múmia, com todos os achaques da múmia". Tinha ganho fama de "reaccionário" pelas polémicas com as esquerdas, embora o "reaccionarismo" fosse nele mais uma atitude de resistência do que outra coisa ("O que eu sou, profundamente, é um libertário"). A prisão do filho Nelsinho, em 1972, às ordens da ditadura militar, também o feriu e fragilizou. Em 1979, publicou a célebre carta pela amnista, apelando ao regime que libertasse o filho e todos os outros presos políticos. Este já era um Nelson Rodrigues pálido, em fim de cena e sem o vigor de outros tempos. Em Dezembro de 1980, morreu.

E então tudo se desmoronou

Nelson Rodrigues nasceu a 23 de Agosto de 1912 no Recife, Pernambuco. Sempre se via como uma "alma da belle époque", ainda que idealizasse essa belle époque ("em 1915 as mulheres tinham um repertório de gritos que as novas gerações não usam, nem conhecem"). Se há escritores com olhos postos no futuro, que vibram com o tempo regenerador e salvífico, Nelson enaltecia liricamente o passado. O que ele mais queria era resgatar o passado. "Está morrendo o nosso passado e insisto: um dia acordaremos sem passado." Mas não era nenhuma época ou herança precisa que queria preservar. Nelson, na verdade, tinha todas as razões para esquecer o passado. Conheceu primeiro o sucesso do pai, Mário Rodrigues, um dos jornalistas mais conhecidos do seu tempo, um jornalista de "fúrias tremendas". Aos 13 anos, em 1925, começou a trabalhar no jornal propriedade de Mário Rodrigues, ocupando-se da secção de polícia. Era Nelson, muito jovem, que fazia o périplo das esquadras à cata de notícias (os pactos de morte entre jovens namorados prendiam a sua atenção). Aprendeu muito nesse tempo. Ganhou o gosto pelo folhetim e pela crónica, compreendeu a vida como ela é, contactou pela primeira vez com as mesmas personagens que povoaram os seus livros: os suicidas, os passionais, os obsessivos.

Mas, de repente, tudo se desmoronou. Em 1929, uma mulher loira ("estou ouvindo a voz e, pior, lembro-me até do perfume") entrou na redacção do jornal para matar Mário Rodrigues e, com frieza, acabou a disparar sobre o irmão de Nelson, o pintor Roberto Rodrigues. "Vinte e seis de Dezembro de 1929, nunca mais me libertei do seu grito", escreveu Nelson. O assassinato de Roberto fez de Nelson um eterno enlutado. Tinha dezasseis anos e escreveu muitas vezes sobre esse dia. A morte de Roberto abriu para a família Rodrigues um rol de desgraças. Dois meses depois, Mário Rodrigues sofreu uma trombose cerebral e caiu no chão, deixando Nelson e os irmãos sem a direcção e o sustento do pai. Os Rodrigues passam um mau bocado. O jornal entra em queda. A seguir, pobreza e fome. Em 1934, a tuberculose atacou Nelson, com sequelas que durariam uma vida, em especial uma "úlcera sempre em vigília" e os pulmões esmaecidos. Em 1936, outro irmão de Nelson, Joffre, é morto também pela tuberculose. Nelson entrou em choque.

A sua vida foi atingida por esta sucessão de martírios, humilhações, velórios. Ele não fez mais do que transportar esse imenso "esforço braçal" para a sua obra. "O ser humano já fracassou", sentenciava. E, como "o ser humano, tal como o imaginamos, não existe", o escritor passou a ver-nos sem máscaras, sem maquilhagem, sem embelezamentos. Tudo o que era anómalo, desviante, brutal, exacerbava tanto a sua imaginação de ficcionista como o seu olhar nos jornais. As pessoas escondem coisas, mas Nelson Rodrigues não escondia nada. No teatro, que começou a escrever no princípio dos anos 40 com Vestido de Noiva, abundam as personagens macabras e falsificadas, personagens com segundos e terceiros gestos, maridos desconfiados, mulheres infiéis, histéricos, incestos, suicidas, alucinações, mortes, taras.

As consequências não demoraram. Nelson Rodrigues foi censurado sete vezes e sem grande protesto da chamada "classe teatral" brasileira. Foi declarado um "tarado nacional", um "perigo para a família e moral brasileira", um imoral e escandaloso. Ao mesmo tempo, permanecia um tímido obsessivo e espantado. Não queria escandalizar; queria purificar. Definia-se como uma dedicada e caprichosa "flor de obsessão". Era um provocador lírico, o que é bem diferente de ser um provocador intelectual e, de certo modo, não houve escritor menos intelectual e académico do que ele. Reclamava por um mundo onde ainda coubesse pureza, mesmo sendo ele o primeiro a subverter essa pureza. "Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha óptica ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico." Nelson fervilhava por isso em contradições. Dizia que a "ficção, para ser purificadora, precisa de ser atroz". E não hesitava em ser "desagradável" porque "é preciso ir ao fundo do ser humano. Ele tem uma face linda e outra hedionda. O ser humano só se salvará se, ao passar a mão no rosto, reconhecer a própria hediondez".

A nossa era é filha da psicologia. Se alguma moral existe na psicologia não é apenas a moral da verdade consigo mesmo; é a moral da aceitação. Aceitamos as nossas fraquezas, canalhices, pecados, enxotando o lixo para debaixo da mesa. Não pensamos duas vezes naquilo que nos incomoda. O que certamente perturbava Nelson é que a moral da aceitação não era moral nenhuma. Era a recusa de qualquer julgamento, era uma liberdade e coerência falsas. A verdadeira coerência tinha que ser incoerente. A verdadeira liberdade tinha que transparecer todas as amarras. "Nos meus textos, o desejo é triste, a volúpia é trágica e o crime é o próprio inferno. Numa época em que a maioria se comporta sexualmente como vira-latas, eu transformo um simples beijo numa abjecção eterna". As audiências gostavam e não gostavam, vibravam e protestavam. Mas ficavam sempre perplexas com um homem que se atrevia a ir onde ninguém tinha ido, que pelo meio largava frases como estas: "No fim de certo tempo, a relação erótica entre marido e mulher soa quase como um incerto. É um escândalo que um homem deseje a mãe dos seus próprios filhos"; "Certas esposas precisam trair para não apodrecer"; "Geralmente, o puxa-saco dá um marido e tanto". O choque era simultaneamente uma libertação.

Politicamente, isto aumentou o tom polémico das crónicas de Nelson Rodrigues. Imaginemos o Brasil do fim dos anos 60, uma década afirmativa, rebelde, permissiva, arrogante. De um lado, uma política repressora; do outro, uma juventude inquieta, inclinada para as esquerdas. E depois Nelson Rodrigues, sozinho, mais antigo do que de facto era e contra toda a unanimidade. Nelson pode ter-se aproximado da direita nessa fase da vida em que já tinha mais de 50 anos. Na realidade, direita foi uma expressão que ele sempre recusou. Foi, isso sim, anticomunista e anti-ideológico, posições que lhe valeram o repúdio das esquerdas, da comunista à católica, e por isso ele respondia: "No Brasil, só se é intelectual, artista, cineasta, arquitecto, ciclista ou mata-mosquito com a aquiescência, com o aval das esquerdas." O Óbvio Ululante e A Cabra Vadia, duas das melhores colecções de crónicas, são o seu testemunho do que foram esses anos. Com o seu talento para a construção de personagens, Nelson inventou "o revolucionário de festival", "o padre de passeata", "o idiota da objectividade". Não poupou ninguém, nem a ele mesmo.

É irresistível pensar, no centenário do seu nascimento, que o Brasil não esteve sempre em paz com Nelson Rodrigues. Amou-o e odiou-o; aplaudiu o seu teatro, leu as suas crónicas e memórias, mas também censurou, vilipendiou e rejeitou activamente o que ele escreveu. E, no entanto, Nelson esteve sempre em paz com o Brasil. Profetizava: "No ano 2010, o Brasil é que dirá a grande Palavra Nova." Não sei, apesar de tudo, se ele apreciaria o Brasil deste tempo. Afligia-o qualquer país em que a opinião dependesse "de frases feitas, de sentimentos feitos, de ódios feitos". Como prosador, Nelson Rodrigues não tem par. Usava com vigor o adjectivo e a sua prosa era sempre de uma beleza trágica e definitiva. Foi um grande escritor, um visionário, um homem que merece ser lido como um provérbio.

As frases citadas no texto são de Flor de Obsessão - As 1000 Melhores Frases de Nelson Rodrigues (selecção de Ruy Castro), Companhia das Letras, 2002, e A Menina sem Estrela (organização de Ruy Castro), Companhia das Letras, 1999

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