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Estatutos em residência universitária de Lisboa devem deixar cair praxes

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As praxes são habituais nas universidades (foto), mas em algumas residências também são feitas clÁudia andrade

Um aluno está contra as praxes. E fala de bullying. Outros acusam-no de ser ele quem perturba. Administradora da Acção Social vai "sugerir" que praxes deixem de estar nos estatutos

Como se gerem os conflitos numa casa onde vivem dezenas de estudantes? Devem ser permitidas praxes? Que avaliação é feita do que se passa no dia-a-dia de uma instituição destas? São algumas questões levantadas por um caso relatado no PÚBLICO há menos de um mês. Rui, nome fictício, contou que, na residência António Aleixo, da Universidade de Lisboa, se fazem todos os anos praxes que considera humilhantes - envolvem um grande falo das Caldas e simulação de sexo oral.

Quem não quer ser praxado é prejudicado, diz, e por lutar contra isso conta que se tornou um alvo. Os colegas da comissão de residentes recusam a acusação. E dizem que nenhum aluno "se mostrou indignado" com a praxe, para além de Rui. Numa carta ao PÚBLICO, na qual, segundo a comissão, participaram "13 ou 14 alunos", numa casa com lugar para cerca de 30, alegam que o aluno tem um historial de problemas psicológicos que o devia impedir de estar numa residência. Acusam-no de "não saber viver em comunidade", de ser agressivo e velho de mais para aceitar os colegas mais jovens.

Como lida a universidade com isto? "Neste momento, os serviços estão confrontados com uma posição da comissão que diz representar metade da casa: a maioria dos residentes não entrará na residência se este aluno lá estiver", quando, em Setembro, após as férias, a residência reabrir, afirma Deolinda Saraiva, a técnica dos Serviços de Acção Social (SASUL) que durante anos foi responsável pelo acompanhamento ao aluno. A exigência foi manifestada pela comissão depois do artigo do PÚBLICO de 29 de Julho. Valentina Matoso, a administradora para a acção social, diz que tudo fará para "salvaguardar a estabilidade da residência". Como? Propondo a Rui que escolha outra residência da universidade. "Se ele regressar, o ambiente vai ser bem pior."

De qualquer forma, nota, será uma solução para apenas um mês: no início do ano lectivo passado, Rui foi informado que deixará de receber apoio no final de Setembro e terá que procurar local para viver.

Rui, que enquanto a António Aleixo está fechada para férias se encontra noutra residência, diz que até agora ninguém lhe comunicou a proposta de não voltar em Setembro. Mas sublinha: "Exigir a um aluno que se mude na semana em que realiza todas as avaliações finais do ano lectivo não é mais do que outra tentativa feia e mal disfarçada de o repreender".

A administradora, que acha que a presença de Rui na residência "não é benéfica para o conjunto dos residentes" - tem variações de humor, por vezes "instiga" os conflitos -, diz, contudo, que pelo menos uma das queixas de Rui pode ter fundamento: "Se calhar, não faz sentido as praxes constarem de um documento oficial", como acontece hoje.

Política é de não proibir

Os estatutos da António Aleixo prevêem que haja praxes na residência ("durante a praxe, nenhum residente poderá ser obrigado a realizar algo que não queira, devendo este, ainda assim, não prejudicar a festa", pode ler-se). Este documento, proposto pelos alunos e aprovado pelos SASUL, diz ainda que ser ou não "praxado" é um dos critérios de desempate na escolha de quartos e armários - a praxe pode dar prioridade.

Valentina Matoso sustenta que, na prática, nunca ninguém foi penalizado (Rui diz que foi) e diz ainda que, depois das queixas do aluno, todos os residentes foram contactados individualmente. "Foram da opinião unânime de que a praxe é uma brincadeira normalíssima." Deolinda Saraiva pediu mesmo para ver o objecto usado: "É um objecto fálico das Caldas e eles brincam com aquilo durante uma noite."

A comissão de residentes acrescenta: a praxe "é um mero critério de desempate [para escolha dos quartos], sendo que nunca esse critério foi contestado - com a excepção do aluno em causa".

A referência das praxes nos estatutos não é, de resto, uma originalidade da António Aleixo. Haverá "mais uma ou duas que têm alusão a isso", segundo os SASUL. É suposto?

"Sempre foi posição dos serviços que quando os alunos propõem regulamentar algo relativamente às praxes, é preferível estar regulamentado do que cada um fazer o que quer", diz Matoso. Ainda assim, os próximos estatutos poderão deixar de mencionar a praxe, "ou, pelo menos, minimizar o impacto que ela tem". Os SASUL vão "sugerir" isso aos estudantes. Rui diz que não entende por que os SASUL vão "sugerir" - "têm que proibir."

Ânimos exacerbados

Rui tem 38 anos. Começou a estudar tarde, por razões económicas; em 2003/04, chegou aos SASUL, como aluno do 3.º ano na Faculdade de Belas-Artes, e candidatou-se a uma bolsa. Vinha "referenciado por uma instituição" e estava a ter acompanhamento psicológico, que mantém até hoje. Em 2006, deu entrada na António Aleixo. Valentina Matoso diz que os serviços estavam atentos à necessidade de acompanhá-lo. Em 2008/09, quando já estava no 5.º ano, mudou de curso. No último ano, foi-lhe dito que o apoio terminaria em Setembro de 2012.

A "integração" que os SASUL dizem que se pretendia não aconteceu. Rui fala de bullying (diz que se riem se entra numa sala, que lhe arrombam o móvel da cozinha, são apenas exemplos...). Valentina Matoso diz que ele sempre recebeu a "condescendência" dos residentes; que recebeu várias advertências (por desarrumação, conflitos) e que "o bullying de que fala não se consegue comprovar". A comissão diz que várias vezes alertou os SASUL para este aluno, que usa os espaços da casa "como se lhe estivessem exclusivamente afectos". As versões parecem inconciliáveis.

Valentina Matoso diz que os ânimos estão exacerbados por causa da reportagem do PÚBLICO, mas que o ambiente que se viveu nos últimos anos na residência está longe de ser tão caótico como parece. E rejeita as críticas de que não têm actuado.

Deolinda Saraiva dá um exemplo: há uns anos, um aluno foi castigado e transferido por ter entrado em conflito com Rui. Outro episódio assumiu maiores proporções: dois residentes planearam colocar drogas na comida de Rui. "Um era um aluno muito perturbado, que concebeu um plano" para levar Rui ao suicídio, conta. A comissão de residentes denunciou o caso mal soube e os SASUL decidiram expulsar esse aluno, tendo ele acabado por sair pelo seu pé. O outro, que "estava a par do plano", foi objecto de uma repreensão, mas ficou na residência. "A mudança de residência é uma sanção de que eles não gostam nem um bocadinho e entendemos que ele não oferecia perigo", diz. "O resultado prático é que ele próprio se automarginalizou", "não causa problemas".

É Rui, então, que atrai problemas? "Não sei se a culpa é dele ou de outros colegas", responde Valentina Matoso. "O que é certo é que entram em conflito uns com os outros. Tentamos minimizar, deslocando residentes, por exemplo. Também lhe sugerimos isso a ele, várias vezes. A reacção era: "Se sou vítima, os culpados é que têm que sair, não sou eu". Por uma certa condescendência nossa, nunca houve uma atitude mais rígida." Rui diz que, seja como for, nunca ninguém lhe propôs formalmente essa solução.

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