O rosto de um selo inglês

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A Trindade dos imigrantes indianos é o centro de uma geografia que se expandiu com os estudos em Oxford e uma viagem de descoberta à Índia"Era a época das colheitas. Nos campos de cana-de-açúcar, (...) cortadores e carregadores andavam numa azáfama (...). Ao longo dos caminhos (...), búfalos de uma cor cinzento-escura, enlameados, puxavam languidamente carros com pilhas altas e eriçadas de cana-de-açúcar": é esta a Trindade de Mr. Biswas, personagem inaugural de Naipaul

V. S. Naipaul é a soma de todos os seus livros: um mapa que fala inglês e vai de Londres ao Paquistão, mas tem como centro uma pequena ilha no mar das Caraíbas. Foi lá que começou a viver entre dois mundos, dentro e fora do quintal da avó - faz hoje precisamente 80 anos.

V. S. Naipaul tinha 30 anos quando foi à Índia pela primeira vez. Andava pelo mundo com a "arrogância" de quem vinha do centro, Londres, depois de ter nascido e vivido até aos 18 anos na ilha de Trindade. Queria ser romancista, mas, escreve o seu biógrafo, Patrick French, faltava-lhe a imaginação. A memória e os factos - e os factos viciados pela memória - eram o universo que lhe restava. Nada pouco, à partida. Mas ele precisava de material literário. Fez-se viajante. Pagavam-lhe para escrever livros de viagens, impressões sobre os lugares por onde passava. Ele foi. Depois da universidade feita em Oxford, quis entender isso a que chamam ancestralidade e procurou-se no melting-pot que o formara. É verdade que o estrangeirismo está gasto, mas faz sentido usá-lo no caso de Naipaul.

Sentado agora numa poltrona da sua mansão em Wiltshire, Inglaterra, o escritor faz a viagem de regresso às origens através dos seus livros. Voltou à América Central, andou pela Argentina, foi a África, Oriental e Central, ao Irão, ao Paquistão, aos territórios do ex-império inglês. Chegou à Índia em 1962, passou lá um ano, e descobriu, na terra dos seus antepassados, um imenso "negrume". Dois anos depois registou a imagem, das mais negativas de um viajante acerca de um lugar visitado, em An Area of Darkness. O livro seria pouco recomendado ao jovem Aravind Adiga, quando este crescia, nos anos 80, numa cidade do Sul da Índia, Chennai. Ainda Nova Deli não se curvara a Naipaul.

Quem era aquele homem que ouvia o irmão mais velho citar a propósito de tudo e de nada sempre que se deparava com um hábito indiano que o irritava? Aravind não entendia. Nem o homem das citações nem a mudança operada no irmão, de férias em casa depois de um ano a estudar na Califórnia. Trazia da América um desprezo inédito pela sua terra. Ao que parece, o grande responsável era o tal senhor Naipaul, o mesmo nome que lhe diziam ser melhor não ler. Quando as férias chegaram ao fim, Aravind e a família respiraram de alívio. O irmão e o seu snobismo ficavam para trás das costas, mas Aravind quis perceber quem era e o que escrevia aquele homem nascido numa ilha do mar das Caraíbas, descendente de Indianos hindus, a quem a Índia inspirava tanto desprezo. Leu-lhe os textos de viagem, os trabalhos mais jornalísticos, os romances Uma Casa para Mr. Biswas, A Curva do Rio e Uma Vida pela Metade. Em 2001 ouviu a Academia Sueca anunciar Naipaul como vencedor do Nobel da Literatura desse ano, atentou nas justificações que destacavam a capacidade de antecipar a sempre latente e cada vez maior tensão entre o Ocidente e o Islão, uma tensão que teve a sua manifestação mais trágica a 11 de Setembro daquele ano. Um mês depois, V. S. Naipaul era apresentado ao mundo como uma espécie de profeta, um filósofo dos dois mundos, capaz, através da literatura, de dar a conhecer o planeta nas suas alas mais antagónicas. Para Aravind Adiga, jornalista, escritor, indiano natural de Chennai, onde nasceu em 1974 - 12 anos depois da primeira visita de Naipaul à Índia -, que em 2008 venceria o Man Booker Prize com O Trigre Branco, a Academia Sueca e o mundo tinham aplaudido o V. S. Naipaul errado.

É um indiano de nascença a olhar outro indiano de origem, o escritor da "esquizofrenia colonial". Para Aravind Adiga esse não era o V. S. Naipaul certo. O certo era o V.S. Naipaul que outro Nobel, J. M. Coetzee, considera um dos mais elegantes romancistas de língua inglesa. Coetzee, o sul-africano que ganhou o Nobel em 2003, dessa vez com o universo da literatura a aplaudir, unânime, a decisão da Academia, também escreve em língua inglesa e sabe do que fala quando afirma que "Naipaul é um mestre da prosa em inglês". Tudo podia ser uma comédia de série B, sublinha Coetzee numa crítica do romance Uma Vida Pela Metade, mas não quando os ingredientes são trabalhados por Naipaul. Uma prosa certeira, limpa e fria como uma faca afiada, com as personagens masculinas a deixarem o leitor gelado na humanidade dos seus defeitos. Nos seus percursos, mais do que descrever territórios, o romancista encontrou homens capazes de suplantarem a literatura e de entrarem pela realidade, perturbadores nas suas fraquezas, nas suas mentiras, nas emoções contraditórias. Através desses homens que vai espremendo literariamente, insiste ainda Coeztee, V.S. Naipaul "explora o seu lugar" no mundo. Um mundo onde o colono não passa de um mimo do colonizador e de si mesmo, repetindo gestos e rituais até eles perderem o sentido e ele perder o sentido no mundo.

A casa do pai

É preciso recuar, perceber que o lugar de Naipaul não estava naquela ilha, espécie de promontório apontado à Venezuela, território entre hemisférios, onde Mr. Biswas quis construir uma casa e fazer dela o seu universo. Estamos no primeiro grande romance de Naipaul, publicado ainda antes de o escritor completar 30 anos e inaugurar, com ele, uma carreira marcada pela autobiografia, ainda que essa marca, mais do que planeada, tenha sido intuitiva. Uma Casa para Mr. Biswas é a reconstituição literária do que foi o percurso do pai de Naipaul, e, mais ainda, do que foi a vida de uma família de imigrantes hindus numa ilha de uma tremenda complexidade étnica. Quase por colonizar até ao século XVIII, depois de ter sido descoberta por Colombo, que a baptizou em 1498, seria povoada por índios da América, escravos da África negra, indianos de castas inferiores, além de colonos portugueses, ingleses, franceses, espanhóis e holandeses. Todos os que ao longo daqueles séculos andavam pelos mares das Caraíbas com ou contra a sua vontade e que chegaram um dia a Port of Spain, a cidade que Mr. Biswas, a viver no interior da ilha, só viu já a sua vida ia longa, mas onde, "com uma breve interrupção, viria a passar o resto da sua vida".

Saiu a medo, fixando um ponto auxiliar no horizonte, como para não se perder nele. E o ponto que escolheu foi uma casa que viu na paisagem e o acompanhou no avançar da estrada. Ia para Sul de olhos postos na casa que mudava de perspectiva, de dimensão, até se diluir por completo na massa informe do que ficou para trás. O trajecto entre a velha e a nova vida foi feito de camioneta. "Era a época das colheitas. Nos campos de cana-de-açúcar, que em certos sítios se apresentavam já desbastados, cortadores e carregadores andavam numa azáfama com as pernas ocultas pelas canas cortadas até aos joelhos. Ao longo dos caminhos entre os campos, búfalos de uma cor cinzento-escura, enlameados, puxavam languidamente carros com pilhas altas e eriçadas de cana-de-açúcar. Mas depressa a terra mudava e o ar tornava-se menos húmido. A cana-de-açúcar dava lugar aos campos de arroz, a cor barrenta da sua água esbatida pela reflexão perfeita do céu azul; havia mais árvores e, em vez de casas de lama, viam-se casas de madeira, pequenas e velhas mas acabadas, pintadas, com gelosias, com ornamentos em relevo, em muitos casos já danificados, a longo dos beirais, por cima das portas e das janelas e à volta de varandas cobertas de fetos. A planície ficava para trás, as montanhas avizinhavam-se", escreve Naipaul sobre uma paisagem que conheceu de cor, para escrever que Biswas deixara de ver a tal casa-guia dessa viagem para sempre. Foi numa altura em que os campos lhe apareceram "protegidos por arame farpado, a estrada parecia importante; o autocarro dirigia-se para Oeste, e o barulho e o trânsito iam aumentando; passou por várias povoações, com as suas casas vermelhas e ocres, até que surgiram as montanhas à direita, e da esquerda veio um cheiro de terras alagadas e de mar, mar que já era visível, raso, cinzento, envolto em névoa. Estavam em Port of Spain: havia uma mistura do persistente cheiro a sal que vinha do mar e dos cheiros adocicados e penetrantes a cacau e açúcar que vinham dos armazéns."

Mr. Biswas sentia "a cidade como um todo; não isolava o particular, não via o homem atrás da secretária ou do balcão, através da carroça ou do volante do autocarro; via apenas a actividade, os seus sentidos captavam apenas os apelos da cidade. Sabia que por trás de tudo isso havia uma excitação, ainda oculta, à sua espera, à espera da sua participação." Aprendeu palavras, como "rezingona", que tinham a ver com novos comportamentos. Vinha de um meio onde era suposto os homens baterem nas mulheres, logo não percebia a razão de estas poderem ralhar e isso ser socialmente aceite. Aprendeu-o, como aprendeu o sabor da Coca-Cola, ou que os escritores famosos não eram necessariamente homens mortos.

O Ganges nas Caraíbas

Foi nesse mundo que Vidiadhar Surajprasad Naipaul nasceu a 17 de Agosto de 1932, faz hoje justamente 80 anos, descendente de hindus da fronteira entre a Índia e o Nepal que levaram as tradições do Ganges para o mar das Caraíbas e se foram deixando contaminar, liberalizando comportamentos. Biswas, a personagem, serve para perceber o homem dividido entre dois mundos que Naipal sempre diz ter-se sentido. Foi o nome que deu ao discurso diante da Academia Sueca. Dois Mundos. Ao contrário do pai e de Mr. Biswas, saiu da casa, dos quartos separados por corredores, varandas e escadas pouco seguras - tudo isso era demasiado pequeno. Mas ficaram marcas. "O ESCRITOR FAMOSO QUE DIZ QUE PORT OF SPAIN É A TERCEIRA CIDADE MAIS DESAGRADÁVEL DO MUNDO", título em caixa alta que espantou o ingénuo Mr. Biswas, podia ser Naipaul aos olhos de indianos como Aravind Adiga nas suas apreciações sobranceiras sobre a Índia. O homem que acha literariamente estranho que se ature a rezinguice das mulheres pode ser o mesmo que se considera acima de qualquer escritora, capaz de afirmar em entrevistas, para quem quiser ler, que a escrita no feminino é menor. É V. S. Naipaul a desafiar os leitores que lhe admiram a ficção, mas não têm fígado para as intempestivas tiradas do homem vaidoso.

Sim, com Naipaul põe-se a questão de separar o criador da obra. Era aí que Aravind Adiga queria chegar. E em Naipaul a grande obra é a ficção. A que se passa na sua Trindade natal, como em África, mesmo que tantas vezes só o continente seja nomeado e os países apareçam como um sem-nome disputado por homens de várias cores e culturas, umas sempre subjugando outras, mas onde o singular é mais rico do que o colectivo. Ou seja, a personagem em Naipaul sai a ganhar. Nela vive a humanidade em tudo o que tem de mais mesquinho ou grandioso. Em África, não importa o nome do país, ou em Londres, onde tudo parece ter um nome tantas vezes difícil de enquadrar por quem vem de outras latitudes. Que o diga Willy Somerset Chandran, o protagonista de Uma Vida pela Metade, romance de 2001 anunciado como o último pelo próprio Naipaul, que no entanto viria a pegar nessa vida deixada a meio e escrever a outra metade em Num País Livre, em 2005.

Willy Somerset Chandran nasceu da revolta do pai contra o sistema de castas, na Índia. O pai que admirava Gandhi, que casou com uma mulher de condição inferior e beleza abaixo de todos os padrões, que fez um voto de silêncio e outro de castidade que não conseguiu cumprir. Willy foi o castigo dessa fraqueza. Deu-lhe, mesmo assim, o nome de um grande escritor inglês que conheceu, e com esse legado o enviou a Londres, para estudar e fugir à vergonha do seu nascimento. Tinha 20 anos quando entrou no barco. E tudo naquela viagem o assustou tanto - a dimensão do seu próprio país, as multidões no porto, a quantidade de navios, a confiança das pessoas no navio - que descobriu que não lhe apetecia falar.

Sabia do silêncio, tinha aprendido com o pai, que também lhe ensinara a não reparar nas coisas. Daí o espanto ao chegar a Londres. "A ideia que tinha de uma grande cidade era a de uma terra de contos de fadas, esplendorosa e deslumbrante". Mas houve um mas. A desilusão "ao calcorrear" as ruas. "Não sabia o que estava a ver. Os folhetos e desdobráveis que havia encontrado ou comprado nas estações de metropolitano não ajudavam muito; partiam do princípio de que os locais mencionados eram famosos e bem conhecidos e, de facto, de Londres, Willie pouco mais conhecia que o nome." Ouvira falar de Buckingham e do Speaker"s Corner. "Ficou desapontado com o Palácio de Buckingham. Achou que o palácio do marajá era muito mais grandioso, parecia mais um palácio e, lá no fundo, isso fez com que sentisse que os reis e as rainhas de Inglaterra eram uns impostores e o país um pouco uma imitação. Esse desapontamento tornou-se numa espécie de vergonha - de si próprio, pela sua credulidade - quando foi até Speakers" Corner. Ouvira falar nesse local na aula de cultura geral na escola da missão e tinha mesmo escrito, seriamente, sobre o assunto em mais de um dos testes de fim de período. Estava à espera de ver grandes multidões radicais, aos gritos, como as que o tio da sua mãe, o agitador dos inferiores, costumava liderar. Não esperava encontrar um grupo de oradores, com os grandes autocarros e carros constantemente a passarem por ali, indiferentes."

Afastou-se. Andou por Notting Hill. Conheceu por ali o sexo. Andou pelos bares do Soho, descobriu os jornais de Fleet Street para onde começou a escrever. Ser estrangeiro ajudou ao sucesso. E ser estrangeiro foi sempre a condição. Casou com uma africana, de uma colónia portuguesa. Não há nome, mas fica no Índico. Willie deixa Londres por Moçambique. De novo o mar. Outra vez o Sul. Com uma diferença: uma língua nova. "Gostava de reter na memória a paisagem, mas a sua preocupação com o facto de estar a perder a sua língua não o deixava concentrar-se. Foi com essa mesma disposição que viu a costa de África: Port Sudan bordejando uma imensa desolação; Djibuti; e depois, passando o Corno de África, Mombaça, Dar-es-Salem e, finalmente, o porto do país de Ana." Novamente, como na viagem para Londres, refugiou-se num território de silêncio. Reparou na cidade, "grande e esplêndida, nada que ele associasse a África". A descolonização ainda não tinha lá chegado. O desconhecimento da língua, a tal outra pátria, aliado à dimensão do local assustou-o. Quis sair dali. Ficou 18 anos. Até tudo mudar. Até voltar à Europa e, dessa feita, a Berlim.

A soma das geografias

Naipaul anda sempre entre estes dois mundos. O interior, que aprendeu em casa da avó, em Chaguanas, Trindade, com a Índia dentro. Cá fora o outro, o do atlas inteiro onde ele tenta situar-se entre culturas, religiões, continentes. Foi-se somando a essas geografias. O Naipaul de Uma Casa para Mr. Biswas não é o mesmo de Uma Vida pela Metade, ou do até agora derradeiro romance com o mesmo protagonista, Num País Livre. "Eu sou a soma dos meus livros", foi repetindo no discurso de atribuição do Nobel. Disse ainda, recorrendo a Proust, que o escritor não deve ser confundido com o homem social. Ele sabe qual o Naipaul certo, o da literatura, o que Adiga e Coetzee consideram de excelência. O que escreveu A Curva do Rio, em 1979. Aí, o continente é o africano. O país, os países, não têm nome. Os homens - um homem - andam mais ou menos perdidos.

Agora o homem chama-se Salim. É o protagonista e o narrador do romance. Aquele que resume o mundo de Naipaul a uma espécie de fatalidade logo no arranque, marcante: "O mundo é o que é; os homens que não são nada, que se permitem tornar-se nada, não têm lugar nele." Salim tenta ser alguém fora do seu mundo. É o filho de comerciantes hindus a viver na costa oriental de África. "África era a minha terra, fora a terra da minha família durante séculos. Mas nós éramos da costa Leste, e isso fazia a diferença. A costa não era verdadeiramente africana, ela era simultaneamente árabe, indiana, persa, portuguesa, e nós, que vivíamos na costa, éramos na realidade gente do Oceano Índico. Atrás de nós ficava a verdadeira África. Muitos quilómetros de savana ou deserto separavam-nos da gente do interior; estávamos virados para o Leste, para as terras com que negociávamos - Arábia, Índia, Pérsia. Essas eram também as terras dos nossos antepassados. Mas já não podíamos dizer que éramos árabes, indianos ou persas; quando nos comparávamos com esses povos, sentíamos que éramos gente de África."

Isso apesar de, no que toca a hábitos, a proximidade ser maior com os hindus do Noroeste da Índia, de por vezes se sentirem numa história das mil e uma noites para acordarem logo a seguir nesse mundo que é o que é, com os costumes a poderem desfazer-se em pó e o sangue a juntar-se com sangue diferente, e a terra a perder a crença, a ganhar o pessimismo dos sem fé - e essa passar a ser a única força criativa.

The World Is What It Is é o título da biografia de Naipaul escrita por Patrick French. Nela estão "o certo e o errado", com autorização do próprio. É ele que diz que às vezes basta uma imagem que traz uma ideia que muda uma crença que é capaz de fazer olhar o mundo de uma forma diferente. Para sempre.

No caso de Salim, foram as imagens dos selos do correio do império britânico.

Na próxima semana, o mapa da escrita de Claudio Magris

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