“A vontade que as pessoas têm de voltar a ver os Ornatos é tocante”

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Os Ornatos Violeta responderam via Skype às perguntas dos leitores do PÚBLICO Nelson Garrido

Os Ornatos Violeta precisaram apenas de dois álbuns para marcar profundamente a música portuguesa. Logo depois, reformaram-se. Mas os fãs não pararam de se multiplicar e, passada uma década, regressam aos palcos – já nesta sexta-feira, em Paredes de Coura, e em Outubro nos coliseus (quatro concertos esgotados). O PÚBLICO convidou os leitores a entrevistar a banda. E estiveram os cinco a responder, ainda que, aqui, Nuno Prata fosse feito de cartão.

Depois do fim, sempre quiseram que um dia, nem que fosse por um dia, o “punk moda funk” voltasse?

Manel Cruz: Essa em concreto, se calhar não, mas o espírito dele sim.


Por que motivo Punk moda funk é uma música que o Manel Cruz se arrepende de ter trazido a público?

Manel Cruz: Eu não me arrependo de ter trazido a público, apenas a encerro num capítulo. Há músicas que depois não apetece tocar outra vez, porque se calhar na altura aquilo fazia um sentido e era mais ousado e teve esse mérito de ter arriscado mais um bocado e tal, mas depois cansas-te e não te apetece tocá-las. Quando tens uma banda tens sempre aquela coisa de perceberes o que as pessoas querem ouvir e aí tens esse dilema.


Porque é que optaram por tocar O Monstro Precisa de Amigos na íntegra em Paredes de Coura?

Peixe: A ideia inicial era apenas


tocar

um coliseu, como foi anunciado. Mas depois recebemos o convite para Paredes de Coura e por isso pensámos em fazer qualquer coisa diferente. Há uns tempos vi em Paredes de Coura o Peter Hook dos Joy Division tocar o

Unknown Pleasures

na íntegra e gostei muito. Normalmente, as bandas não fazem isso. E

O Monstro

é um disco que marcou uma época, é um disco que aparece sempre, e que merecia ser passado para o palco.Elísio Donas: Para além de ter um ou dois temas que quase nunca tocámos ao vivo, porque não era coerente ou não fazia sentido. Aqui ganha outra dimensão.


Podemos esperar surpresas?

Peixe: O


encore

será a surpresa. E eventualmente a maneira como tocamos agora as coisas, a forma, um ou outro arranjo que poderá estar diferente. Mas não há propriamente surpresas.Elísio Donas: Andámos à procura de uma maneira de reinterpretar as canções porque, passados estes anos sobre as músicas e as nossas vidas, estamos realmente a interpretá-las de maneira diferente, como outra calma. Para o público também será diferente. E depois o concerto terá para além do disco, que é o espectáculo em si, os


encores

com coisas que não foram tocadas ao vivo e aí, se calhar, haverá novidade ou estreias.

Durante o tempo em que estiveram separados, algum membro da banda mostrou vontade de se voltarem a reunir?

Peixe: Acho que sim. Sempre que havia um encontro casual entre dois ou três – sempre, não, às vezes – o pessoal falava nisso. Mas nunca foi uma questão unânime. Volta e meia, já tinha sentido alguma nostalgia e que podia ser uma coisa fixe. Mas sempre no plano das hipóteses. Acho que nunca acreditámos que fosse acontecer. Só há pouco tempo é que percebemos que era real.


Elísio Donas: Quando nos encontrávamos, havia mais necessidade e saudade de estarmos juntos, os cinco a conviver, do que os cinco em palco ou a ensaiar. Nostalgia das pessoas, antes da nostalgia da música.


Manel Cruz: Costumávamos encontrar-nos. Com os projectos de cada um começou a ser mais raro, mas continuamos a ser – e somos – amigos.


Sendo uma banda que "marcou uma geração" e que, durante e após a vossa existência, angariou inúmeros fãs, se continuassem teriam sucesso quase garantido. Quem fala de sucesso fala também de dinheiro. A opção de não levarem os Ornatos para a frente deve-se realmente às razões que têm sido apresentadas: por um lado, não deteriorar a obra criada; e, por outro, poderem dedicar-se a projectos individuais com outras estéticas?

Manel Cruz: A banda acabou e imediatamente depois a ideia de cada um é reagir, perceber como vai reagir, como vai fazer a sua vida. E não era só a questão da banda mas da independência, de viver sozinho, houve filhos pelo meio, o crescimento normal e muitas questões para além da banda. Depois aconteceram outros projectos, cada um começou a ter a sua vida. Para reunir os Ornatos era preciso querer muito e criar a logística. Já não era uma coisa natural. Natural foi isto acabar e esmorecer. [O regresso] foi muito da vontade das pessoas, que é tocante. Nós começámos a banda e tudo o que mais queríamos era que, um dia, isto acontecesse. Claro que as coisas mudam, mas somos sensíveis a isso.


Elísio Donas: Há ainda a coincidência da reedição dos álbuns e dos inéditos e isso pôs-nos em contacto. Inicialmente, um contacto semanal. Depois, diário… e de repente estamos a ouvir música, a marcar jantares e a perceber que temos saudades uns dos outros.


Os Ornatos Violeta marcaram muita gente mas, acima de tudo, aqueles que frequentaram a Soares dos Reis. Por que não um espectáculo simbólico de desfecho nesse espaço? Afinal, acabamos todos por conhecer os Suores dos Reis...

Kinorm: A escola Soares dos Reis já não existe como era, já não é no mesmo sítio onde era.


Elísio Donas: Era mais mítico o Cinato. Foi lá o nosso primeiro concerto, a fazer um concerto simbólico seria aí.


Peixe: Acho que estes concertos que vamos fazer agora já são suficientemente simbólicos e nostálgicos o suficiente. Mais era exagerar na nostalgia. Mas acho engraçado que alguém se lembre dos Suores dos Reis, que era a banda que tínhamos antes dos Ornatos.


Manel Cruz: Organizar um concerto desses requer uma logística muito grande.


Disseram numa entrevista recente que, na altura dos Ornatos, achavam que não eram "grandes músicos". O que é ser um grande músico e porque não se consideraram assim?

Peixe: Isto tem a ver com a primeira fase dos Ornatos, uma fase mais embrionária. Fomos todos autodidactas e o nosso processo de aprendizagem era o próprio processo da banda. Íamos fazendo as coisas à medida que éramos capazes de fazer e não éramos grandes músicos de todo. Aliás, o nosso primeiro concerto é das piores coisas que já vi na vida. E foi essa limitação que nos fez ultrapassar esse problema nessa fase embrionária. A tentar fazer coisas para ser simples, a funcionar sem uma dependência de uma grande execução. Antes do


Cão

, começámos a trabalhar mais e a ultrapassar essa barreira.Manel Cruz: Grande músico não é só a questão da técnica, mas sim conseguir pôr as coisas a soar. E é também pôr a banda a funcionar, coesa. No


Cão

fizemos logo isso, a ensaiar todos os dias.Elísio Donas: Um grande músico é o que consegue pôr em prática o que quer – e nós não conseguíamos.


Peixe: Na altura, para mim, era um gajo que era capaz de tocar rápido. À medida que vamos amadurecendo, também passamos a ter uma ideia completamente diferente do que é ser um grande músico.


Kinorm: Tem a ver com algumas características reconhecíveis e com aquilo que nós, público, conseguimos recolher dele. O baterista de Black Keys parece ter uma forma de tocar e conceber as baterias muito diferente da que sempre ouvi nos bateristas. Para mim é um grande músico e um grande baterista.


Elísio Donas: Eu acho o teclista dos Keane um grande músico – o que não quer dizer que goste dos Keane. É um conceito muito individual. Já vi músicos na rua que me tocaram mais do que grandes concertos que vi.


Imaginemos que os Ornatos começariam agora. Iria soar da mesma maneira, as influências que tinham na altura iriam ser as mesmas?

Elísio Donas: Nunca seria igual. As pessoas são as mesmas, mas mudaram muito.


Manel Cruz: Isto também é muito uma coisa do acaso. Imagina que estás a tocar um


riff

e alguém toca à porta e olha não-sei-quê, e começamos a falar e depois quando voltas à música se calhar já não tocas aquela. Podia ter acontecido outra coisa qualquer. É engraçado como as coisas aconteceram, mas foram muito fruto do acaso. Elísio Donas: O


Capitão Romance

, que acaba por ser uma canção importantíssima, é uma canção que nem era para sair sequer. Tivemos para aí três meses à volta daquilo e já ninguém aguentava. E de repente há um fim-de-semana em que é tudo feito sem ensaio. Aquilo nunca foi ensaiado, foi tudo feito em estúdio. Nem sequer estávamos quando o arranjo final foi feito. Nem íamos tocá-la ao vivo. Mas são coincidências, é tudo acaso.

O Manel Cruz afirmou, numa entrevista, que se os Ornatos Violeta voltassem teriam de fazer alterações à forma como as músicas eram tocadas. Essas alterações vão acontecer neste regresso?

Manel Cruz: Disse numa altura em que não pensava voltar e também não fazia ideia do que era preciso mudar. Se calhar achava que tinham de mudar mais coisas do que mudaram. Também me surpreendi com algumas mudanças, que nem sempre são perceptíveis. Não era tanto as coisas que mudavam, mas a forma. Eu não estou tentar a imitar-me há uns tempos. E houve um bocado esse dilema, porque é como se as pessoas estivessem à espera disso. Com os ensaios, as coisas acabaram por me surpreender bastante e até é fixe tocar algumas músicas de uma maneira que gosto e retirar um pouco do peso daquele registo que não gostava. A


Ouvi dizer

, por exemplo, era uma música de que não gostava muito, não pela música mas pelo

take

que aconteceu naquele dia. Quando estás convencido de que aquilo vai ser de uma maneira e depois quando estás a ouvir sai de outra, mas depois mudas qualquer coisa e achas que é daquilo – e não é. E acho que é uma questão de música: não gostava de me ouvir e agora estou a cantar de uma forma mais natural, e tem-me dado prazer. Se não fosse assim acho que entrava em depressão.

De todas as músicas que fizeram, tanto do Monstro como do Cão e dos inéditos, qual é a de que mais gostam e aquela que mais prazer vos dá tocar ao vivo?

Peixe: No outro dia disse que era a


Coisas

, mas acho que é a

Há-de encarnar

, que é dos inéditos.Manel Cruz: Eu é a


Pára-me agora

.Elísio Donas: Eu ando nos dias da


Coisas

.

Qual é (era?) o vosso processo de composição dos temas, sendo que as letras são do Manel Cruz, e se essa química surgiu naturalmente neste último período de preparação dos próximos concertos?

Peixe: O processo de composição varia de tema para tema, no


Monstro

e no

Cão

também. No geral, as canções são do Manel, passamos para a sala de ensaios e fazemos os arranjos. Cada um vai tentar procurar uma linha e vai-se estruturando. Elísio Donas: Mas depende das músicas, às vezes nasce nas salas de ensaio. A


Coisas

foi o Kinorm que fez, por exemplo. Veio de uma sequência de teclado, numa brincadeira. A

Chaga

surgiu num

soundcheck

. Hoje sinto uma química que não existia há muitos anos.

Quais foram os maiores obstáculos/frustrações na composição das músicas, que factores costumavam ser decisivos na exclusão de algumas para os álbuns, como algumas vezes referiam nas actuações ao vivo?

Manel Cruz: Nunca gostámos muito de excluir músicas e, quando havia algum que não gostava tanto e que não queria que a música entrasse num álbum, tentávamos sempre convencê-lo.


Elísio Donas: [Se acontecia] ficávamos sempre desiludidos, mas respeitávamos. Tinha de ser unânime.


Kinorm: Fazer música não é o mesmo que fazer um álbum, não é compor. Quando pensamos num álbum temos de pensar no alinhamento, tentamos pensar como o álbum vai soar.


Peixe: No caso do


Monstro

, por exemplo, a

Como afundar

e a

Há-de encarnar

ficaram de fora, não por serem pior do que as outras – até acho que são melhores –, mas por alguma razão não pertenciam ao alinhamento. Mas as exclusões não se devem à música, porque se a canção não é fixe já nem chega a esta discussão.

Porque é que acham que se tornaram numa banda de culto, com tão pouco tempo de existência?

Peixe: É sobretudo graças a mim [gargalhada geral]. Não é que eles não tenham tido a sua cota de responsabilidade, que tiveram cerca de 5%.


Manel Cruz: Eu acho que o Peixe tem razão.


Elísio Donas: É tudo uma questão de coincidências. As pessoas vão gostando e tudo isso ajuda. A mim aparece-me gente que passou os discos já aos filhos e isso é impressionante.


Peixe: Há duas razões: uma é a música e a outra tem a ver com o facto de nos termos separado. Tudo aquilo que acaba ou morre tem tendência a ser mitificado. Eu costumo dizer que, se o Jimi Hendrix não tivesse morrido, hoje as pessoas diriam, “fogo o Hendrix é cá um azeiteiro” [risos].


Elísio Donas: Acho que é também por as letras do Manel serem intemporais, muito abrangentes e tocantes. Não falam sobre eventos específicos, falam de sentimentos.



Aconteceu-vos muitas vezes estarem a dar concertos de outros projectos (Pluto, Foge Foge Bandido, Supernada...) e pedirem para tocar músicas dos Ornatos? Incomodava-vos esse pedido?

Peixe: Não. Há uma cultura mínima de música. As pessoas sabem que um projecto é um projecto e os Ornatos é outra coisa. Foi muito raro.


Algumas músicas dos Ornatos Violeta fazem parte da banda sonora do filme Rasganço, de Raquel Freire. É verdade que tal sucede porque também os Ornatos partilham de uma visão contra a tradição académica?

Peixe: Não, é falso. É verdade que não temos grande simpatia pela tradição académica, mas isso foi a Raquel que nos perguntou se podia usar as músicas. Nós nem sabíamos muito do projecto.


Manel Cruz: Embora eu não ache os trajes académicos muito sexies.


Como é que vêem o facto de já não existir no nosso país um Ministério da Cultura?Manel Cruz: É um seguimento lógico.
Peixe: São nomes. Prefiro ter uma Secretaria de Estado da Cultura que faz muita coisa do que um Ministério que não faz nada. Mas claro que isto é um indicador de que a Cultura não é uma prioridade deste governo e acho isto triste. E não digo isto por ser artista, pensaria da mesma maneira se não fosse. A Cultura não é menos importante do que qualquer outra área. A Cultura é a identidade das pessoas.
Manel Cruz: É muito triste. Lembro-me da questão da Fontinha. Temos jovens que se juntam por uma boa causa e estamos preocupados com a burocracia a dizer que não, que não podem estar ali. Temos pais que estavam contentes e seguros, que tinham ali os filhos que estavam a fazer coisas fixes e não outras coisas na rua, não estão abandonados, no fundo, e depois tem-se uma atitude tão violenta e tão estúpida como teve esta Câmara. É muito triste.

No fundo, e pegando num qualquer provérbio que de vez em quando me diz "Nunca voltes à casa onde já foste Feliz", não existe o receio de, com este regresso à estrada, poderem “perturbar” a tão boa memória que todos temos dos Ornatos?

Peixe: Os provérbios são antagónicos. Por exemplo: “não deixes para amanhã o que podes fazer hoje”, ou “devagar se vai ao longe”. Há sempre provérbios para tudo. Pessoalmente, gosto sempre de voltar aos sítios onde fui feliz, muito mais do que aos sítios em que fui infeliz.


Elísio Donas: Isto não é um regressar à mesma casa, é regressar a uma casa remodelada, é uma casa nova, dez anos depois.


Um novo álbum dos Ornatos Violeta é uma possibilidade?

Manel Cruz: Acho impossível.


Elísio Donas: Não se pode dizer que é impossível porque há um ano dizíamos que era impossível voltar a fazer espectáculos.


Manel Cruz: O problema é que nunca se pode prever o futuro. Na minha cabeça é impossível, mas não digo que não seja possível porque continuamos a tocar uns com os outros e isso vai continuar a acontecer de certeza. E está a ser um prazer muito grande voltar a tocarmos juntos e a reviver tudo. Agora, músicas novas não faríamos com Ornatos, o conceito seria tão diferente que já não seriam os Ornatos.


Kinorm: Nós temos álbuns novos e projectos novos, mas não como Ornatos.


Elísio Donas: Todos temos planos, mas sei que os planos que tínhamos no ano passado não tinham nada a ver com isto. Sabemos que podem mudar e ainda bem.


Manel Cruz: Para já, a resposta é sim e não.


No fim destes concertos como Ornatos Violeta vão continuar a pensar da mesma forma, ou seja, recusam-se a continuar com os Ornatos?

Elísio Donas: Já tanta coisa mudou desde Janeiro, Fevereiro, Março, Abril… desde a semana passada.


Peixe: Não é “recusam-se”. Nós estamos a fazer um regresso que não é bem um regresso, é uma celebração. Vai ser um momento muito bom, mas não muda nada. O objectivo não é fazermos isto para voltarmos à estrada e aos discos.


Elísio Donas: O essencial é a música. O resto, se tiver de vir, vem.


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