Quase tudo sobre maus rapazes

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Robert Wilson na Serra da Ossa (Alentejo) onde escreve todos os seus livros António Carrapato

Londres é o teatro de um rapto que serve a Robert Wilson para provocar o leitor. O escritor usa o crime, mais uma vez, para escrever sobre a condição humana. Conversa a propósito de "Pena Capital", livro de viragem em que um novo detective, Charles Boxer, se apresenta ao serviço

O pai pergunta ao filho de sete anos qual é para ele a melhor coisa do mundo. Faz-se silêncio. O rapaz pensa. O pai espera e, no tempo que demora a resposta, vai arriscando o óbvio. Gelados, coca-cola... Até à frase da criança: "Bad guys". O melhor do mundo são bad guys. O pai partilha a perplexidade com um amigo que acontece ser escritor e querer tratar o tema, a atracção pelo mal, mesmo por parte dos bons rapazes. Pena Capital, o último romance do britânico Robert Wilson, é uma história que parte dessa exclamação.

Escrito no isolamento da Serra da Ossa, no interior do Alentejo, este romance é um permanente interpelar do leitor, colocado em situações em que é obrigado a pensar na sua própria moral. "Não passa por ajuizar os outros, mas, perante o comportamento tantas vezes ambíguo das personagens, por interrogar-se sobre si próprio", sublinha Robert Wilson antes da apresentação formal do seu último romance, numa livraria de Lisboa. Num sotaque cerrado de Londres, Wilson insiste: "O leitor costuma ter uma posição muito mais confortável do que as personagens, mas aqui forço o incómodo. De onde vêm os nossos juízos morais? Dos nossos pais, dos nossos amigos, mas tudo muda à medida que crescemos e envelhecemos. Tudo pode mudar, até mesmo as nossas convicções morais, quando, por exemplo, nos apaixonamos por alguém. Tantas vezes nos vemos a acertar passo com o comportamento do outro, a aceitá-lo, ainda que nos víssemos a condená-lo se o nosso olhar não estivesse condicionado pelo filtro da paixão. Isso não significa que não tenhamos espinha dorsal, que sejamos amebas. Acontece."

Nessa perspectiva, a do confronto incómodo do leitor consigo mesmo, Pena Capital é o livro mais ambicioso de Robert Wilson. Filho de um militar da força aérea britânica, Wilson habituou-se a não ter terra. Durante dez anos, viveu e trabalhou em Londres, estudou Literatura em Oxford, tornou-se admirador da escrita de Raymond Chandler. Soube desde muito novo que queria ser escritor, mas não queria ter nada a ver com a academia. Foi viajar. Andou por África, que o inspirou na criação de Bruce Medway, o detective da primeira série dos seus romances, centrada no continente africano - Instruments of Darkness (1995); The Big Kiling (1996); Blood is Dirt (1997) e A Darkning Stain (1998) -, foi para a América, para a Índia e, aos 27 anos, chegou à Península Ibérica de bicicleta com um grupo de amigos. Aprendeu espanhol e não demorou até se instalar em Sintra, mas preferiu a solidão do Alentejo onde vive com a mulher, Jane, e onde escreve todos os seus livros. Policiais ou thrillers, o género que lhe permitiu viver da escrita livremente.

Portugal descobriu-o em 1999, ano da publicação de O Último Acto de Lisboa, livro que a crítica internacional considerou um dos melhores policiais do ano e que lhe valeu o Gold Dagger da Crime Writers Association. Foi também um acto de sedução para os leitores portugueses o facto de o saberem a escrever no Alentejo, onde não é raro encontrá-lo a beber um copo numa taberna da Aldeia da Serra, em conversa com os locais. Prefere isso a uma entrevista, assegura, quando a palavra "saudade" deixou de lhe ser há muito estranha. Já vai sentindo saudades de Javier Falcón, o detective de homicídios andaluz que criou e o acompanhou ao longo de quatro romances - os do chamado quarteto de Sevilha, que começou justamente com O Cego de Sevilha, em 2003, e seguiria com As Mãos Desaparecidas, Assassinos Escondidos e As Mãos de Sangue.

As várias Londres

A mudança de ambiente e o tema tornaram inevitável o encontro com um novo protagonista, Charles Boxer, ex-militar, ex-polícia, consultor privado, especialista em resolver raptos e resgates. Vamos encontrá-lo em Londres, o centro deste Pena Capital, escrito originalmente em inglês por um escritor britânico, mas publicado primeiro na Noruega e em Portugal. Porquê? "Razões editoriais que eu não estou muito interessado em perceber", responde o escritor.

Ele quer saber da escrita. De como chegou a Boxer. "Tal como Javier Falcón e como eu próprio, é uma figura marcada pela ausência do pai. Transporto essa falta que levo comigo para as minhas personagens de uma forma não muito consciente. Mas ela esta cá. O meu pai morreu quando eu tinha 23 anos, numa altura em que o estava a conhecer como um igual, a ter com ele conversas diferentes das que um filho tem com um pai. Eram conversas entre dois homens. A morte dele afectou-me e deixou um vazio imenso. Para Falcón, como para Boxer, essa falta ainda é mais difícil de lidar. O pai de Boxer desapareceu quando ele era criança. O desaparecimento, o não saber onde está alguém, é ainda mais complicado do que a morte. Para isso há uma explicação, por mais dura que seja".

Robert Wilson fala de Boxer como de alguém que existe fora da narrativa, numa Londres que ele, Wilson, teve de voltar a conhecer de uma forma que um londrino dificilmente conhecerá. "Ao contrário de Lisboa ou de Sevilha, cidades que têm um centro definido, reconhecível por quem vive lá ou por lá passa enquanto turista, Londres tem muitos centros. As pessoas vivem e trabalham em linhas muito bem definidas e não se movem muito dessas linhas. Quando saem do trabalho vão ao pub e daí para casa. A percepção que cada londrino tem da sua cidade pode ser muito diferente das dos outros habitantes de Londres. Cada um tem a sua cidade. Há quem nunca tenha ido à City. É um centro financeiro e é preciso lá ir de propósito." Isto para justificar a "imensa" dificuldade de escrever sobre Londres, um dos desafios a que se propôs: "Encontrar uma maneira de escrever sobre a cidade".

Fez as malas, fechou a casa no Alentejo, e alugou apartamentos em vários bairros da cidade de Londres, onde já vivera durante uma década, nos anos 80. Em cada bairro teve uma percepção diferente do que era ser londrino. "Há uma aceitação muito maior da diferença. No percurso de metro entre Heathrow e Piccadilly, por exemplo, há africanos, eslavos, asiáticos, as pessoas misturam-se nas ruas, nos bairros. Ouvem-se todas as línguas. É uma cidade muito mais cosmopolita. Continua a existir o medo, mas ele está guardado bem atrás, num lugar que permite fazer uma vida normal. Se antes era o medo do IRA, agora é de um terrorismo diferente, global." O que é então Londres? A resposta não é tão imediata nem conclusiva quanto a do rapaz de sete anos, questionado pelo pai sobre o que era a melhor coisa do mundo. "Acho que o que faz Londres, a sua essência, é essa diferença num único sítio."

E o mal de que fala Wilson e de que falou o rapaz de sete anos é o tal mal maior, sem rosto, mas tantas vezes personalizado, ainda que global. Começa com um rapto. O de Alyshia D'Cruz, uma rapariga de 20 e poucos anos, criada entre Londres e Mumbai, filha do milionário indiano Francisco, ou Frank, D'Cruz. Sedutor, ele tem nas mãos Isabel Marks, uma editora que não consegue deixar de se sentir atraída por um homem que sabe ter mais defeitos do que qualidades, pelo menos as qualidades que ela procura para si. Isabel vai jogar próximo de Boxer, o homem contratado por D'Cruz para resolver um rapto onde o resgate está longe de ser uma questão meramente de dinheiro.

Boxer, o novo heroi

É este o centro de uma trama que se desenrola ao longo de 500 páginas e que serve a Wilson para servir as fragilidades humanas ao lado de um arroz de pato regado a Cortes de Cima. Nada é simples. Não é simples a razão pela qual Isabel, uma mulher inteligente, tenta responder à questão de Boxer sobre o seu interesse por D'Cruz. "Eu gosto dele. Admiro-o. Até ainda o amo... ainda, o que é uma loucura, bem sei, tendo em conta que ele me destruiu com as suas traições constantes, e não apenas traições sexuais. Eu pensava que ele era um homem de grandes qualidades, um homem em quem se podia confiar, um homem em quem valia a pena acreditar. Mas esqueci a coisa mais importante sobre ele. Ele é um actor. Pode fingir ser qualquer coisa. Pode fazer as mulheres acreditarem que as ama. Pode fazer os funcionários confiarem nele. Pode fazer os polícias lamberem-lhe os dedos."

Robert Wilson também percebeu cedo que os bad guys podem ser muito atractivos. Tinha 16 anos quando a namorada, um ano mais velha, o deixou. A razão apontada foi: "you're a nice guy". Conta isto e ri para dizer ainda que muitas mulheres, muitos homens, gostam de ter as boas pessoas como amigas, mas não lhes interessa sequer beijá-las. "É quase como beijar um morto", caricatura.

E a atracção pelo mal lá está, inexplicável, como um abismo. Daí a dificuldade do leitor em tomar partido, sentindo-se paradoxalmente ao lado do herói do livro, Charles Boxer. "Ele faz coisas eticamente reprováveis, socialmente condenáveis, como matar pessoas. Mas que tipo de pessoas mata?", interpela-nos mais uma vez Wilson, que quis fazer deste homem a viver um enorme conflito interno o herói de um livro que se adivinha ser outra série. Boxer não é uma personagem para usar e ficar só por um romance. Não é à toa que, depois de ter estado na Primeira Guerra do Golfo de ter sido detective na política, ele tenha optado por se especializar em raptos. Wilson explica: "Resolver um assassínio é ter de ir ao passado, à História, e, para quem tem o passado dele, isso é demasiado doloroso. Ele resolve raptos porque isso tem a ver com o imediato, o presente. É a maneira dele de fugir." O paradoxo, há sempre um, é que tal como ele teve um pai ausente, também ele é um pai ausente para a filha, Amy. E esse é outro conflito. "Ele ajuda a resolver o desaparecimento da filha de um homem quando não consegue encontrar-se com a própria filha."

Robert Wilson, já se disse, não gosta de entrevistas. Mas dêem-lhe um livro para falar. Pode ser um livro dele, que ele perde-se na conversa. Só não lhe façam muitas perguntas. "Sou melhor a ouvir", insiste. E quando a conversa ja vai no fim, quando o esperam para entrar em cena para falar de Pena Capital, provoca: "E você, gosta de Boxer?"

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