Coura nunca perde o nome de família

É difícil escrever sobre Coura sem escrever afectivamente. Aliás, é dos poucos festivais em que a palavra “festival” cai por terra quando se pergunta: “Este ano, vais a Coura?”

The National em Paredes de Coura em 2005 Paulo Pimenta
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The National em Paredes de Coura em 2005 Paulo Pimenta
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Na minha primeira vez em Coura, na terceira edição do festival em 95, fui logo atirado para o palco principal. Foi o último ano em que o cartaz só teve bandas portuguesas, julgo. Voltaríamos depois em 98 com Zen, Clã, Red House Painters e já com o palco no seu actual local de eleição, coordenadas revolvidas, árvores imensas e intensamente iluminadas como pano de fundo do palco. Lindíssimo para quem, como eu, adora ver árvores iluminadas à noite, como espectros. Entretanto, nesses poucos anos, já me tinha convertido a espectador e é verdade que foi em Coura que assisti a alguns dos melhores concertos e vivi alguns dos felizes momentos da minha vida. Porque, por si só, Coura é uma experiência única.

Quando tocámos no Festival em 98, entrámos para o palco ao som de “Blue Velvet”, cantada por Isabella Rossellini, canção da banda sonora do filme de David Lynch com o mesmo nome. Não era a primeira vez que o fazíamos nem seria a última. É um daqueles a que chamamos “filmes da minha vida”. Mas foi a primeira e a única vez que, num texto de jornal do dia seguinte , eu lia algo como: “e quem teve a maravilhosa ideia de pôr a tocar o 'Blue Velvet' na voz de Isabella Rossellini antes da entrada em palco dos Blind Zero?”. A verdade é que só em Coura alguém reparou na beleza, subtileza e acerto da escolha. Porque também eu, quando me preparava para subir ao palco, senti como aquela canção pela voz quebrada, sensual e imperfeita de Isabella Rossellini se colava a Coura, naquele momento, como uma segunda pele.

É difícil escrever sobre Coura sem escrever afectivamente. Aliás, é dos poucos festivais em que a palavra “festival” cai por terra quando se pergunta: “Este ano, vais a Coura?”. O Festival de Paredes de Coura é, portanto, aquele Festival que deixámos de tratar pelo nome completo, em parte porque é parte de nós há demasiados anos. Há demasiados anos com boa música e boas escolhas com critério. Há anos melhores e anos piores, claro. Mas Coura já é nome de família.

Os concertos que vi foram, mesmo para mim, tão ou mais importantes do que aqueles que lá toquei. Arcade Fire, Sonic Youth, Nick Cave, Red House Painters, Gomez, P. J. Harvey, Deus, Suede, Flaming Lips, Queens of the Stone Age, Morrissey, entre tantos outros. Às vezes em dose dupla ou tripla. Os que não vi também me marcaram: como gostava de ter visto os The National em 2005... 

Após 20 anos, não se volta a Coura como da primeira vez. Mas há sempre primeiras razões para voltar: este ano, por exemplo, como escapar aos Midlake e a Anna Calvi? E às subidas e descidas da rua principal? E à pergunta “onde deixar o carro”? E acampar? Bom, calma. Não, após 20 anos, Coura não é como a primeira vez. Foi nos parques de campismo que distribuí em mãos o número 0 da revista “Canhâmo” num projecto editorial que me deu (a mim e ao Ricardo e ao Nelson, entre poucos outros) um gozo e um desafio dos diabos. Já não dá para repetir. Mas Coura é algo que se cola directamente ao coração e algo pelo que se espera todos os anos, com aquele sentimento de que se calhar “aquela banda que eu descobri este ano vai a Coura!”. Actualidade e critério, aí está uma qualidade que raramente falta a Coura. Às vezes não podemos esperar nem confiar tanto das pessoas que nos são próximas. É que mesmo quando te desilude, Coura nunca perde o nome de família.

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