Quando 1500 anos de história se contam debaixo dos pés

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Imagem de uma das descobertas da equipa de arqueólogos de António Valera Fotografia cedida pela ERA

De joelhos no chão e mãos cravadas na terra, escava-se o solo minuciosamente à procura de mais um pedaço de história. Em Reguengos de Monsaraz, António Valera dissolve o calor com a paixão pela arqueologia e à falta de vento responde com o entusiasmo de novas descobertas.

Aos 50 anos, António dirige a equipa de arqueólogos da ERA, a empresa que todos os Verões tem desvendado os segredos que se escondem debaixo da superfície da Herdade dos Perdigões, no Vale do Álamo, Alentejo Central.

Desde 1997 que o complexo arqueológico dos Perdigões concentra a sua actividade nos rituais fúnebres das primeiras sociedades de pastores e agricultores que habitaram o Alentejo pré-histórico há cerca de 5500 anos. Olhando para formas de morte, adivinham-se os modos de vida ao longo de 1500 anos (entre 1500 e 300 a.C). “[As povoações] encontraram aqui um sítio com importância que deveria ter a ver com a forma como geriam a sua percepção do mundo, sobretudo em relação à morte. Aqui há uma espécie de concentrado do que é possível encontrar em relação a práticas fúnebres”, diz Lucy Evangelista, arqueóloga da ERA, a empresa que há 15 anos trabalha na herdade da Esporão SA. Sorridente, fala com entusiasmo sobre a povoação. Alta, com sardas e olhos claros, não faz lembrar os arqueólogos dos filmes, habitualmente cobertos de terra.

No terreno de 16 hectares (cerca de 20 campos de futebol), o verde da vegetação que se funde com o castanho do solo, não deixa adivinhar os 12 fossos genericamente circulares e concêntricos, descobertos pelos arqueólogos através de uma prospecção geofísica, uma espécie de radiografia aérea que revela as estruturas enterradas. O maior fosso identificado tem 500 metros de diâmetro, nove metros de largura e seis de profundidade.

Uma pequena grande descoberta

Se António aparecesse num filme a situação não causava tanta estranheza. Com a barba desalinhada, o pólo e as calças de ganga manchados de terra, exerce a profissão há 27 anos. Ao longo do tempo, muitas descobertas especiais ficaram na sua memória, como a do Verão do ano passado.


Dentro de um fosso onde, depois de cremados, foram depositados vários corpos, a sua equipa descobriu algo único em Portugal. Por entre a terra surgiram as cicatrizes do rosto, os buracos redondos dos olhos que poderiam ter incrustações e os longos cabelos de figuras antropomórficas. Com o corpo esguio, as nádegas e o tronco bem delineados, nariz e orelhas bem definidas, seguram o que parece ser um bastão entre as mãos fechadas sobre o ventre. Ao todo são 20, nove das quais muito realistas. Estatuetas semelhantes são frequentes na Andaluzia, região com a qual o Sul do país forma uma unidade territorial na Pré-História, mas esta é a primeira vez em Portugal.

Com uma altura de cerca de 15 a 20 centímetros, cabem na palma de uma mão, mas nem por isso deixam de ser uma grande descoberta. “É uma felicidade muito grande, o entusiasmo que se sente faz com que recarreguemos baterias. O cansaço desparece e temos logo imensa vontade de conhecer o sitio.”, descreve António no interior do fosso.

Conhecer o sítio implicou também descobrir que o marfim dos únicos 15 fragmentos estudados, entre os 500 encontrados, é proveniente do Norte de áfrica, de elefante africano, o que prova as ligações que o povoado mantinha com regiões distantes. No entanto, próximos estudos podem revelar elefante asiático, marfim fóssil ou ossos de outros animais.

Estão carregadas de simbolismo, que fazem dos Perdigões uma sociedade complexa, mas, segundo António, qualquer resposta concreta, principalmente sobre a Pré-História, não passaria de uma mera especulação: “Para muitos autores podem representar divindades, ou pessoas concretas ou ainda estatutos específicos, mas é muito difícil chegar a uma conclusão inabalável”, explica.

Em campanhas em anos anteriores, apareceram também representações minúsculas de animais. Coelhos e veados de um naturalismo que impressiona. “Também é uma linha de estudo interessante perceber porque apareceram representações naturalistas numa altura em que a arte é predominantemente estilizada”, refere o arqueólogo.

O resto eram ossos e objectos decorativos, como vasos, pontas de flechas, facas em sílex e contas de colares, que, mais uma vez, expressam materialmente a interacção destas sociedades com outras regiões da Península Ibérica ou da costa africana.

Os ossos não se sabe se pertencem a pessoas dos Perdigões ou a outras povoações, pois o povoado era, possivelmente, um local de encontro de comunidades, de festas cerimoniais e rituais associados ao culto dos mortos. Pode não se saber a que comunidade pertenciam os ossos, mas contaram-se, até ao momento, 85 exemplares do osso do ouvido direito – um dos ossos mais resistentes do corpo humano - , o que indica que foram depositadas naquele sepulcro pelo menos 85 pessoas. “Contámos pelo osso do ouvido direito e até agora apareceram 85, desde pequenas crianças a adultos”, explica António Valera.

A poucos metros dali, no cimo da paisagem que se estende formando um anfiteatro aberto para Este, na direcção do nascer do sol, a equipa da Universidade de Málaga também está participar no projecto, mas já quase todos regressaram a Espanha. Sobrou José Marquéz Romero, professor de História naquela instituição, no limite das estruturas circulares e concêntricas, onde nem uma árvore o protege do sol. Mas, para José, os 33,5ºC que às 11 horas da manhã se fazem sentir não são um entrave à possibilidade de participar nas escavações arqueológicas de um complexo tao vasto, onde, logo após 50 ou 60 centímetros escavados, a arqueologia começou a ter necessidade de falar. “Por ser tão grande, é normal construírem-se aldeias ou fábricas, mas nos Perdigões não. É um autêntico laboratório para podermos estudar”, afirma o arqueólogo espanhol.

Este é o quinto ano consecutivo que ruma ao Alentejo para um mês dedicado aos Perdigões, para estudar essencialmente os fossos, valas e fossas do complexo arqueológico. “[A função destes fossos] pode ser defensiva, monumental ou simbólica. Pensamos que eram locais de encontro, mas é um tema ainda em discussão em Portugal, no resto da Península Ibérica e na Europa.”, afirma. No próximo ano vai voltar outra vez com o chapéu na cabeça e disposto a sujar as mãos.

Dos 12 fossos, os arqueólogos apenas fizeram sondagens em quatro, dos quais estimam terem sido retiradas 60.000 toneladas de rocha. Ainda há um longo trabalho pela frente e as prioridades são conseguir determinar a idade dos fossos e continuar a escavar. “Queremos concluir as escavações nos sepulcros [até ao final da campanha, neste sábado], mas talvez não seja possível porque isto está a ficar complexo”, diz, António Valera olhando para o vale. “Depois é continuar a escavar para perceber qual a dinâmica evolutiva do sítio”, acrescenta.

Enquanto puder, António vai continuar a escavar a Pré-História dos Perdigões, onde, um dia, não se importava de se reformar. “O que mais me fascina é tentar compreender os outros através das materialidades que ficam. [Os arqueólogos] têm a capacidade de atravessar o tempo e ‘dialogarem’ com pessoas que estão para trás na História, mas nos ajudam a compreender o que somos hoje”. Por uma garrafa de plástico, bebe demoradamente um trago de água para atenuar o calor.

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