Podia ser apenas isto: um gajo com estilo, misterioso, daqueles que se invejam à distância e nunca mais se sabe para onde foram, imaginando que se passearam pela vida a provocar doses equivalentes de inveja até se finarem com a maior das classes - com uma morte daquelas de gerar suspiros sintonizados em "era assim que eu gostava de ir". Mas Graham Coxon, "o mais cool a cursar Artes", "[flutuando] pela faculdade", lembra Alex James no livro Bit of a Blur, não era um gajo desses, inacessíveis e que se esfumam sem se saber para onde.
"Estávamos interessados nas colecções de discos um do outro e ambos tínhamos guitarras; ligámo-nos através da música, mas era mais do que isso. Sentíamo-nos felizes na companhia um do outro esperando simplesmente pelo autocarro ou partilhando um maço de tabaco e inventando palavras. Gostava dele porque era artística e instantaneamente brilhante, mas vulnerável; espantosamente estiloso, mas muito estranhamente tímido. Porque gostava de mim, não sei. Talvez fosse sobretudo porque eu gostava dele". A cândida descrição do início da amizade de James com Coxon, tempos de universidade ainda, funcionaria inadvertidamente como desbloqueador para o reaparecimento dos Blur. Se não tivesse havido Bit of a Blur, talvez nunca mais tivesse havido Blur.
Coxon deixara o grupo em 2003, em plenas gravações de Think Tank, disco para o qual contribuiu apenas na magnífica Battery in your leg - 21, a caixa que nos dá a discografia dos Blur com todos os extras com que alguma vez sonhámos, recupera as outras faixas em que chegou a participar e que acabaram em lados B. Damon Albarn assumiria as restantes guitarras, informadas pela sua recente descoberta da música africana. O clima era turbulento e a relação entre Coxon e Albarn foi-se deteriorando até a um fatídico ponto de ruptura, quando o guitarrista deixou simplesmente de aparecer. Para o seu lugar em palco entraria um insípido Simon Tong, enquanto Coxon optava por engordar brilhantemente a sua discografia a solo, variando consecutivamente entre noise pop lo-fi pedida de empréstimo ao meio alternativo norte-americano, psicadelismo rude, punk desembestado e delicadezas folk gamadas a Nick Drake. O grupo desfez-se depois. Albarn, agastado por ter entrado em Think Tank apenas por um "compromisso de irmãos" desrespeitado por Coxon, voltou-se para os Gorillaz, James dedicou-se a produzir queijo, Rowntree falhou completamente a carreira política.
Albarn e Coxon encontraram-se na rua anos mais tarde, conforme lembram no tocante documentário No Distance Left to Run: a conversa foi breve, os problemas ultrapassaram-se, as saudades impuseram-se e foi marcado o concerto de celebração do regresso dos Blur. A actuação em Glastonbury, felicidade nas caras alternada com o choro trémulo de Albarn, e o filme em questão pareciam a decisão madura relativa a um mal resolvido amor adolescente. Uma forma de fazer as pazes e uma ocasião para terminar tudo como devia ter sido, sem rancores, sem azedumes. Era a isso que soava: a um desfecho limpo e digno. Mas foi um "final" demasiado bom para ser definitivo. E a experiência conduziu apenas ao refreamento. Agora, os Blur já não se deixam enganar pela História. Aprenderam que a sua sobrevivência depende de não fazerem da banda a coisa mais importante do mundo. Tratam-na com o respeito que merece. Tornaram-se amantes ocasionais, vão para a cama quando lhes apetece, dão umas quecas às escondidas, já não querem o casamento.
WestwayUnder the Westway, um dos dois temas novos dos Blur - o outro chama-se The puritan - vai buscar o seu título à autoestrada que atravessa a zona onde Damon Albarn tem o seu estúdio e onde foi vendo crescer um edifício de 32 andares, o céu a desaparecer atrás do betão. É como um lamento pessoal, uma canção egoísta de quem se queixa daquilo que vê à janela, mas vai bater noutro dos alvos recorrentes de Albarn - o mesmo Albarn que recusou uma visita a Downing Street com um bilhete em que dizia ter deixado de ser trabalhista e ter-se convertido ao comunismo. Em versos como "where the money always comes first" já não é só de um prédio descomunal na zona Oeste de Londres que se fala. O modelo capitalista sob ataque corre por baixo, mas a uma altitude ainda reconhecível no radar.
Antes destes recentes sinais de vida criativa tinha havido apenas Fools day, single de edição limitada gravado para o Record Store Day de 2010, e uma colaboração com o poeta beat Michael Horovitz destinada a ajudar a salvar o Carnaval de Notthing Hill e cujo prazo de validade, dizia Albarn na altura, se esgotara ao fim de 12 horas - com as autoridades a decidirem manter a festividade, o tema tornou-se precocemente obsoleto.
Under the Westway e The puritan podem cumprir, afinal, o propósito de afastar de vez a ideia de haver um novo álbum em preparação. Em Fevereiro de 2011, Coxon revelava ao New Musical Express que o grupo estava a gravar música nova mas apenas pelo gozo, sem previsão alguma de lançamentos. "Talvez possa transformar-se num LP daqui por uns seis anos...", deixava no ar, como que a largar pistas falsas alimentando a esperança num disco novo, ao mesmo tempo que o reduzia a uma probabilidade escassa.
21Chegado o 21.º aniversário, os Blur decidiram celebrar a sua carreira não só com com a edição de Under the Westway, mas mais ainda com a caixa 21 - que traz tudo e mais alguma coisa. Do single que recupera um tema raro dos Seymour (Superman, ao vivo, entre o punk ditado pela adolescência, a urgência dançante que sempre moveu a guitarra de Coxon e a clara aptidão melódica de Albarn, numa voz, ainda assim, irreconhecível e sob o efeito do acne) a cada um dos álbuns aumentados de lados-b, versões alternativas e gravações ao vivo, três DVD com dois concertos e actuações avulsas raras vezes vistas e quatro CD de inéditos e raridades, mais um livro que conta toda a história do grupo, baseando-se em novas entrevistas. Um verdadeiro festim.
Olhada de novo, nesta perspectiva ampla, mais a história dos Blur parece ser a única a dignificar uma pop inglesa que mereça descender dos Beatles. Possivelmente, nenhum outro grupo depois dos Fab Four conseguiu conciliar de forma tão eficaz uma insatisfação permanente e com tendências experimentais e conjuntos de canções absolutamente certeiros. Em termos de espírito, porque musicalmente falando os Blur sempre foram foram mais próximos de descender dos Kinks - mais ainda se pensarmos nas crónicas inglesas e especificamente londrinas de Albarn, por vezes quase legendas para as fotografias de Martin Parr. Há toda uma galeria de personagens desfilando por parte da discografia do grupo que vai atrás de Ray Davies e, ao mesmo tempo, evoca imagens entre o retrato fiel e a caricatura de cores rebentadas.
A arte, de resto, estivera sempre na vizinhança. Damien Hirst foi um dos amigos próximos de Coxon e James no Goldsmiths Art College, o sítio onde Alex viu Graham chegar com os pais no primeiro dia, de guitarra na mão, e percebeu instantaneamente que aquela pessoa havia de assumir um papel fulcral na sua vida. Coxon, por seu lado, desfazia a mala levando consigo um pacto firmado com Albarn depois de uma primeira experiência musical: se algum dos dois formasse uma banda, o outro teria de entrar também. Cumpriram o acordo e, por isso, sempre que o tipo que sabia tocar canções dos Smiths (um feito em qualquer camarata universitária) desaparecia para o estúdio, Alex James chispava de ciúmes. Mas Graham acabou por levá-lo a conhecer Damon e a ouvir as canções do seu grupo. Alex disse que precisavam de levar uma volta, de ser mais escola de artes do que escola de teatro - de onde Damon vinha. Foi uma espécie de audição. Passadas duas semanas, a insolência garantia-lhe o lugar de baixista e conhecia "Dave, o baterista" Rowntree.
Segundo conta Alex James em Bit of a Blur, os Seymour - nome que vinha da personagem de À Espera no Centeio, de Salinger - caíram por pedido expresso da editora Food, num tempo em que os contratos se assinavam em pubs. Leisure, lançado pouco depois, mostrava já uma banda capaz de grandes rasgos - She's so high, There's no other way ou a estelar Sing -, mas ainda a desviar-se dos detritos dos Jesus Jones e dos Inspiral Carpets. Stephen Street, produtor dos Smiths, tinha no entanto intuído haver ali qualquer coisa e ligou-lhes, tornando-se o primeiro produtor da banda.
A revolução na sonoridade dos Blur chegaria logo em seguida com o brilhante Modern Life Is Rubbish, de 1993 - magnum opus do grupo, na opinião de James. A clara afirmação do grunge do outro lado do Atlântico teria duas consequências directas na carreira dos Blur. A primeira tornaria a banda mais arreigadamente inglesa, como reacção não tanto aos Nirvana mas a todos os dejectos que se seguiriam - atitude que estaria na génese da chamada britpop. A segunda implicação alimentava a primeira: com o mercado norte-americano pela primeira vez em muitos anos a ter uma música de guitarras decente a que se agarrar, as portas não se fechavam mas mostravam claramente aos Blur que o sucesso teria de acontecer num plano doméstico. O dia, aliás, em que os Blur aterraram nos EUA para uma digressão de recolha de fundos para pagar uma dívida às finanças seria o histórico 24 de Setembro de 1991 em que Nevermind aterrou nas lojas. Mais tarde, ao ouvirem Star shaped em estúdio, os homens da Food chegaram a propor que a banda regravasse todo o disco com Butch Vig aos comandos. Modern Life, acharam, soava demasiado inglês. Felizmente, Damon ganhou o braço-de-ferro.
A epidemia do rock americano alastrara também à própria produção britânica: mesmo a nível local, a resposta a Modern Life foi lenta. Mas o rastilho acabou por pegar, graças a algumas das melhores criações do grupo: For tomorrow, Advert, Chemical world ou Sunday sunday. Parklife e The Great Escape, os álbuns seguintes, lançados com periodicidade anual, fechariam uma trilogia claramente inglesa. O sucesso desmesurado, a histeria adolescente à volta, as agendas atafulhadas de compromissos mediáticos, as garrafas esvaziadas umas a seguir às outras, a batalha encenada entre os representantes da working class do Norte que eram os Oasis e os miúdos de classe média e arty do Sul que eram os Blur resultaram, em seguida, num disco de regurgitação. Graham foi o primeiro a acusar o toque e quis atirar-se de uma janela para lembrar que havia seres humanos envolvidos nas vendas de discos. Coube-lhe tentar evadir os Blur do circo pop. Blur, de 1997, apontava ao rock norte-americano: era um vómito de Graham dirigido à pop.
13, último disco de Coxon enquanto membro a tempo inteiro, seria, por sua vez, o disco da ressaca amorosa de Damon Albarn, depois de separar-se da ex-Elastica Justine Frischmann. Essa humanização no meio da montanha russa da indústria musical em que se encontravam seria o necessitado balão de oxigénio para o guitarrista aguentar mais um álbum e uma digressão. Depois, rebentou e saiu de cena. Durante muito tempo ninguém o viu. Até ao dia, algures em 2007, em que pegou na nova guitarra e foi visitar Alex na sua remota casa de campo. Enquanto tocava, Alex preparava o almoço e, sem os olhos postos nele e a pressão que os anos tinham varrido para longe, mandou para o ar: "Acho que estou preparado para voltar a tocar com os outros".
Os Blur tocam domingo, em Londres, na cerimónia de encerramento dos Jogos Olímpicos. Depois disso, não se sabe. Nunca se sabe.