"A Câmara da Amadora trata-nos como se fôssemos cães vadios"

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Segundo a PSP, cerca de 18 casas vão ser demolidas Foto: Carla Rosado

Eram 8h da manhã de ontem quando o Bairro de Santa Filomena, na Amadora, ficou cercado de polícias. Quando chegaram, desligaram a água e a luz numa tentativa de fazer com que as pessoas saíssem de casa. Os habitantes pressentiram o que vinha aí. "Percebi logo que eles iam demolir as nossas casas", disse um morador. Mas pouco quis falar. "Estou demasiado cansado", comentou.

Cansaço. Essa é a condição deste e de outros. Os habitantes tinham a indicação de que se saíssem do bairro não podiam voltar e, por isso, permaneceram junto às suas casas. "Este é um cenário de guerra", afirmou um morador, entre lágrimas. Desde entulhos a móveis partidos, ao pó que pairava no ar, o Bairro de Santa Filomena está a ficar reduzido "a lixo", dizem os habitantes.

O problema da maioria das pessoas é que vive no bairro há pouco tempo, ou pelo menos, depois de 1993, altura em que foi feito um recenseamento nos vários bairros da Amadora. Segundo esse levantamento, 562 agregados familiares, residentes em 442 habitações precárias, iriam necessitar de realojamento. No total, seriam 1945 pessoas que teriam de sair. Mas o recenseamento que serve de base ao Programa Especial de Realojamento (PER) foi feito há 20 anos e muitas das pessoas que agora vivem em Santa Filomena ainda não residiam no bairro em 1993. Por não estarem incluídas nesse levantamento, agora não têm direito a ser realojadas ao abrigo daquele programa.

"Como não tenho direito ao PER, tenho que procurar casa por minha conta", afirma José Fernandes, residente no bairro desde 1995. Desempregado e a receber um subsídio de invalidez de 74,99 euros, admite que nem o dinheiro que a mulher ganha, cerca de 200 euros por mês, dá para arrendar uma casa. Não sabe o que vai fazer, mas tudo o que exige é respeito. "Esta situação é desumana. Já sabemos que não vamos morar de graça, mas queremos que a câmara nos arranje uma casa que possamos pagar consoante o nosso rendimento", continua. Atrás de José Fernandes erguia-se uma faixa onde se podia ler: "Todos têm direito a habitação adequada de acordo com o rendimento".

Outra solução proposta pela autarquia passa por dar dinheiro aos moradores para voltarem para os países onde nasceram. "Nós vamos voltar quando quisermos. Estamos aqui há muitos anos e temos documentos, não somos clandestinos", diz Teófilo, morador no Bairro de Santa Filomena há 15 anos. "A Câmara da Amadora trata-nos como se fôssemos cães vadios", protesta.

Viver com outras famílias

Quem está integrado no PER também não vê a situação com bons olhos. Eliseu mora naquele bairro há mais de 37 anos. Sabe que a sua casa vai ser demolida e a solução apresentada pela câmara não lhe parece a mais correcta, ou, como diz, "a mais justa". "Vamos ficar numa casa onde vão estar a viver quatro famílias. A minha e a dos meus irmãos todos. A câmara não apresenta outra hipótese nem vai ponderar sobre isso", afirmou.

O Colectivo pelo Direito à Habitação e à Cidade (Habita) esteve o dia todo a acompanhar a demolição das casas, juntamente com os moradores. Ao longo dos últimos meses tem lutado contra esta situação e no passado dia 17 entregou uma queixa às Nações Unidas contra "os abusos aos direitos humanos" por parte da Câmara da Amadora, referindo-se ao desmantelamento do bairro. Morgane Masterman, membro da Habita, afirmou que a associação vai ter que se reunir para tomar medidas. "Apresentámos queixas a instituições nacionais e internacionais, ao provedor de Justiça e várias organizações reconheceram a legitimidade da queixa e entraram em contacto com o Governo português para suspender a demolição. Mas é o que se está a ver", reclama. "Isto é uma vergonha. A câmara apoia-se em leis e recenseamentos de há 20 anos e não actualiza os dados", continua.

Até meio da tarde de ontem, foram demolidas quatro casas, mas a intenção era demolir mais. Segundo a PSP, o número previsto era 18, mas não se sabia se seria alcançado até ao fim do dia. A subcomissária Carla Duarte, porta-voz do Comando Metropolitano de Lisboa da PSP, adiantou que, durante a manhã, não houve "qualquer situação anormal". À tarde, os ânimos permaneciam calmos. A polícia esteve a acompanhar a demolição e vai continuar no terreno quando as outras casas forem demolidas, para tentar evitar desacatos.

Segundo dados da Habita, cerca de 290 pessoas vão ficar sem casa, o que corresponde a 85 agregados familiares, com crianças menores. O município contraria este número. Em comunicado, afirma que "oito famílias não manifestaram qualquer disponibilidade para procurarem outras alternativas habitacionais" e que os restantes moradores já têm uma solução.

Numa primeira fase, a autarquia está a tentar realojar 46 famílias e para 28 desses agregados inscritos no PER está a ser feito "um grande esforço financeiro", refere. Para outras dez não-inscritas, a câmara conseguiu encontrar soluções no parque habitacional privado através de "arrendamentos aos mesmos valores que suportavam no bairro", adianta ainda o comunicado.

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