Retrato das Caxinas contaminado por actriz

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Anabela Moreira esteve um mês nas Caxinhas, ouvir o que as mulheres não contariam a outras pessoas

A ficção a alimentar-se do real e a alimentar o real. E a procurar, também aqui, redenções. Obrigação é documentário com intrusa pelo meio: Anabela Moreira, que mergulhou entre as mulheres das Caxinas. João Canijo obriga-nos a desfazer lugares-comuns.

Durante mais de um mês, Anabela Moreira andou disfarçada de mulher das Caxinas. Na quase longa-metragem que João Canijo filmou naquela comunidade piscatória, a actriz mostra-se de rabo-de-cavalo, avental preso à cintura, tão igual entre iguais que se confunde com as outras mulheres deste documentário, que é retrato de uma comunidade, mas que é retrato declaradamente contaminado pelo confronto com uma actriz que é corpo estranho naquele universo de mulheres de pescadores.

"Estive cerca de um mês com elas, todos os dias, e fui-as colocando à vontade para contarem aquilo que, se calhar, não contariam a outra pessoa", conta Anabela. Antes do confronto com a câmara de Canijo, a actriz andou, ela própria, num processo big-brotheriano com uma câmara em punho para fazer desaparecer a consciência de se estar a ser filmado. "Filmávamos a viagem toda das Caxinas a Aveiro e elas sabiam que o que João queria para o filme eram pequenos momentos e por isso deixavam-se estar à vontade. E, com o passar do tempo, elas acabavam mesmo por se esquecer da câmara."

As Caxinas que aparecem neste documentário que se chama Obrigação, e que surgiu de uma encomenda da 20ª edição do Curtas de Vila do Conde, fogem dos estereótipos como pescadores da tempestade. Não se esperem dali travellings da Igreja Senhor dos Navegantes ou de mulheres a arrastar o luto absoluto pelas esquinas. "Esses estereótipos já não existem, se é que alguma vez existiram. As mulheres que encontrámos são modernas, são urbanas. Estão ali como poderiam estar em Los Angeles", avisa Canijo. A opção por mostrar a comunidade com a câmara apontada às mulheres terá sido das poucas coisas pensadas previamente e, em tratando-se de Canijo, só podia ser assim - lembrem-se da magistral Márcia em Sangue do Meu Sangue. "A descrição que nos tinham feito das caxineiras como mulheres fortes entusiasmou-me imediatamente e depois a realidade mostrou-se ainda melhor do que a descrição", lembra Canijo.

Anabela Moreira também teve que reduzir a zero tudo o que achava que sabia sobre as Caxinas. "Tinha ido com o João fazer entrevistas a diferentes mestres e, antes disso, a uma pessoa que tinha vivido nas Caxinas, e o que nos descreveram foi uma realidade que não tinha nada a ver com o que depois fomos encontrando. Criamos determinados conceitos antes de experienciarmos as coisas - é uma forma de organizarmos o universo e o que nos rodeia - e não estava nada à espera de encontrar aquela riqueza, mesmo económica, nem ambientes tão polidos. Mesmo em casa da Sónia, não esperava uma mulher tão romântica, tão sonhadora e tão feminina. São características que não associamos à mulher de um pescador. A mim perguntaram-me: "Ah, elas foram muito contidas, porque não disseram asneiras." Mas a verdade é que aquela mestra, Sónia, não dizia asneiras. Simplesmente, não era o universo dela."

Anabela não confirma a imagem das Caxinas como enclave matriarcal num país mais propenso a machismos. "Tinham-nos dito que aquela era uma sociedade em que as mulheres mandavam. E aquilo que observámos foi uma sociedade patriarcal mascarada de sociedade matriarcal." Querem exemplos? "A Cassilda, que vai connosco no carro para Aveiro, teve que pedir autorização ao marido para cantar no filme. É uma coisa com que eu nunca tive que conviver."

Cúmplice

Mostrar o lado "não óbvio" das Caxinas não teria sido possível sem a imersão da actriz naquelas águas. E o exercício, note-se, foi ao ponto de a actriz dormir em casa da mãe de Sónia. Quanto ao resto, foi uma questão de deixar a realidade emergir, sempre com Anabela no papel de entrevistadora (menos) e cúmplice (mais). A própria actriz se expõe. Fala do seu medo de crescer, do medo de que o amor acabe, do medo de permanecer sozinha. É representação ou Anabela a deixar-se escorrer para o filme? "Acaba por ser uma mistura de ambos. É o papel da actriz que está a tentar perceber aquelas mulheres, e é, ao mesmo tempo, uma mulher que vive os seus dramas e que acaba por se relacionar com elas através das mesmas experiências. O meu papel era não manipular, mas fazer com que elas fossem falando de determinadas coisas que nos interessavam e isso implicava alguma troca, embora com um pouco de representação."

O resultado disto é uma metragem (que só não é curta porque tem 55 minutos e que há-de aparecer na edição 2013 do Curtas transformada em filme) que exibe a vida real das mulheres de pescadores quase como se fosse em directo. Há cenas de um kitsch comovedor, como quando Sónia Nunes, a protagonista, partilha um filme caseiro com os filhos (numa primeira comunhão?) e em que ela própria surge ao pé de uma piscina a fazer um playback de Ágata a cantar Francisquinho - é nome da música, mas também do filho da protagonista, Canijo não teria inventado melhor. E há cenas que mostram quatro mulheres numa carrinha a caminho do porto de Aveiro a cantar É o amor de Zezé di Camargo & Luciano. Diz a actriz: "Cada uma delas tinha a sua música; naquela carrinha, nas histórias da vida de Paula, Cassilda e Sónia, as músicas eram do Zezé. São músicas românticas, que falam ao coração, e elas próprias dizem, a dada altura, que ouvem aquelas músicas para depois receberem os maridos e estarem mais... receptivas. É uma forma de elas se remeterem a um estado de enamoramento. Aquela música que aparecemos a cantar, eu ouvi-a tantas vezes, mesmo antes de estar a filmar, que decidi decorá-la para que, se aparecesse durante as filmagens, eu pudesse estar no mesmo estado que elas. No fim, e isto não aparece nesta versão, elas tentaram arranjar uma música para mim também."

Por falta de tempo mais do que por opção, Obrigação foi apresentado no Curtas de Vila do Conde na sua forma inacabada. "O tempo para montar foi muito curto", explica o realizador. "E, nesse pouco tempo, tínhamos que apresentar uma versão coerente." Ficou muito de fora. "Estruturar a relação entre aquelas duas mulheres [Anabela e Sónia] era algo que não se conseguia fazer em 55 minutos. Portanto, o que desenvolveremos na versão longa que vamos começar a montar no princípio de Agosto é a relação entre duas mulheres com perspectivas diferentes perante a vida." Para essa versão Canijo vai voltar a pegar na câmara este fim-de-semana. "Vamos filmar o que nos falta, umas coisinhas, uns erros." E nela surgirá tratada a questão da morte - não, não se consegue falar das Caxinas sem falar de morte e, para isso, bastaria recordar as contas recentes do pároco local, Domingos Araújo, que em 35 anos enterrou 92 pescadores. "Isso não apareceu nesta versão, porque decidimos focar-nos no amor, na forma como estas mulheres vivem as relações à distância. Mas a morte é algo com que lidam diariamente e inclusive arranjam estratégias para conseguirem viver com isso. Julgo que consegui compreender durante o tempo que estive lá que pode ser muito angustiante não acreditar em nada, não acreditar em Deus, e ter de olhar todos os dias para o mar e perceber que as pessoas que amamos podem estar em risco."

O que ainda não vimos, mas haveremos de ver, é Sónia murmurar qualquer coisa como "Deus os traga em salvamento" sempre que vê o seu homem partir para o mar. No que não reparámos mas haveremos de reparar agora são nas imagens de Nossa Senhora de Fátima em todo o lado. O que iremos perceber melhor (quando, na versão final, Anabela surgir sozinha, mergulhada num diário da sua pesquisa e, aí sim, ficará claro para o espectador que ela não é igual entre iguais) é como é que alguém de fora percepciona a ausência de questionamento daquelas mulheres. Sónia diz-se repetidamente uma mulher realizada. Diz frases como: "Só tu é que achas que o amor não é lindo. Para quem sabe amar e para quem sabe viver, a vida é bela." Ou então: "Há dias em que ele não vem com um sorriso de orelha a orelha para casa, vem triste. É nesses dias que nós temos que valorizá-los. Acho que os devemos valorizar quando eles vêm sem peixe. Dizer: "Morzinho, não te preocupes." Dar um abracinho, dizer: "Para a semana é melhor." Ser esposa é mesmo isso."

Sónia é mulher para esconder bilhetinhos de amor entre as cerejas que prepara para o seu pescador. Não é, pelo menos que se veja, mulher para se deixar desgastar em inquietudes existenciais. Para Anabela, essa aparente ausência de questionamento acabou por se transformar na questão do filme. "Na procura de fazer parte daquele grupo de mulheres, estava-me constantemente a confrontar com o facto de elas aceitarem tão bem aquele papel. Admito que seja como a fé que têm em Deus: acreditam, ponto final. Eu sinto-me muito mais angustiada, muito mais infeliz, a levantar questões em relação até à minha crença no amor, à importância do meu papel enquanto actriz, enquanto elas aceitam pacificamente as circunstâncias sugeridas."

Por exemplo, em relação à fidelidade dos homens, sempre ameaçadora em relações com muita distância pelo meio: "Chega a ser bonito a forma como elas resolvem isso. Assumem que eles estão no mar e que no mar não há sereias, ponto. É uma coisa até um bocado cor-de-rosa." Entre risos, Anabela confessa que a dada altura se sentiu tentada a copiar-lhes a existência. "Dizia-lhes muitas vezes: "Vou ficar por cá, arranjar um mestre." Provavelmente não ia conseguir encaixar-me daquela forma." Será preciso, talvez, ter-se nascido nas Caxinas.

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