Aqui não moram rumbas

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Conhecido como "o general rebelde", Jupiter esperou pacientemente até o seu bofenia rock ser descoberto no Congo e tirado do gueto. Aconteceu em 2004. Agora, aos 50 anos, chega a Sines (sábado) pouco antes de lançar o disco de estreia. Por Gonçalo Frota

Jupiter Bokondji tinha a certeza de que seria descoberto. Esperou mais de 20 anos por alguém que viesse do exterior descobrir a música que tinha inventado num bairro periférico de Kinshasa. Enquanto as ruas da capital da República Democrática do Congo se enchiam de grupos a tocar rumbas, animados pelo famoso "artigo 15" - uma popular falsa adenda à Constituição, piada herdada da era de Mobutu, que diria qualquer coisa como débrouillez-vous pour vivre (façam o que for preciso para sobreviver), legitimando as gentes a agarrar-se a tudo: do roubo à mendicidade e à música a troco de umas moedas -, Jupiter inventava o seu bofenia rock.

Depois de acompanhar em criança a sua avó curandeira, que cantava e tocava algo mágico o suficiente para restabelecer os enfermos, Jupiter mudou-se para Berlim-Leste, cidade onde o pai trabalhava como diplomata. Foi por lá que cresceu, a passar duas vezes por dia junto ao Muro enquanto os ouvidos se enchiam de James Brown, Jackson Five ou Rolling Stones, e que teve as primeiras experiências musicais com a banda Der Neger - um encontro entre guitarras "zeppelinescas" e percussões da região congolesa de Mongo ("Era apenas para me distrair, como todos os miúdos que começam a tocar. Quando voltei ao meu país é que tudo começou a sério", conta). Finda a missão do pai junto da embaixada, Jupiter voltou ao Congo em 1980. As memórias que tinha do seu país eram peças soltas de um puzzle sem sentido, pedaços avulsos de imagens de família que em nada o informavam sobre o sítio onde nascera. Daí que o regresso, aos 20 anos, tenha sido, antes de mais, um embate violento: a pobreza tomava conta das ruas e já não escapava a olhos habituados a outros cenários.

A música também vivia ao relento, em cada esquina: "Quando voltei ao meu país é que descobri a música tradicional e foi autenticamente um choque para mim. Esta é que era a verdadeira música. Tudo partiu daí". Essa revelação levou Jupiter, sedento de criar as suas canções, a procurar juntar a sua experiência ocidental e o rock que o apanhara em cheio na adolescência aos ritmos zebola e ekonda que ouvira à avó em criança. A dificuldade seria encontrar quem decifrasse os sons que lhe passavam pela cabeça, uma vez que a música que ouvira insistentemente lá fora tinha pouco eco ali dentro. Fez o que tinha a fazer: começou a cantar em funerais e a tocar percussão em várias orquestras locais, viajando sempre que possível pelo Congo para se deslumbrar com a riqueza rítmica das 450 etnias do país. Do rock, sabia que queria a energia crua e a possibilidade explosiva; mas das suas origens teria de aproveitar o património que o afastaria da rigidez rítmica ocidental e, ao mesmo tempo, esboçar uma tentativa de união de tribos que, para efeitos políticos, tinham sido mantidas separadas.

Aos poucos, Jupiter foi encontrando músicos com ligações à Europa, com os quais podia partilhar abertamente as suas ideias, e começou a esboçar a sua revisitação urbana dos sons tradicionais. Em 1983, experimentou pela primeira vez esta fórmula com o grupo Bongofolk - "música de brancos!", gritavam-lhe. Passados sete anos, fundou finalmente os Okwess International, o veículo certo para a sua música e cuja notoriedade foi severamente prejudicada pela guerra civil que se instalou no país em 1997. "O bofenia rock", linguagem da orquestra Okwess, "é um ritmo que eu baptizei assim porque parte dos ritmos dos curandeiros. É uma música de pesquisa. E serve para mudar as mentalidades dos africanos e dos congoleses em particular - a política sempre nos dividiu, mas a música junta-nos". O resultado, acredita, é que "a maioria das pessoas, mesmo se não há muita democracia, começa a perceber que as coisas em África podem ser diferentes".

De início, foi difícil que os seus conterrâneos vislumbrassem qualquer coisa de positivo na música que fazia. "A rumba faz parte da música", contextualiza, "mas é imposta pela capital e pela política; a música do Congo não é a rumba, é a música tradicional. É isso que quero demonstrar às pessoas - mesmo aos congoleses. A música congolesa é a música de todas as etnias, uma coisa imensa e inexplorada. A minha missão é tirá-la do gueto e dar-lhe uma dimensão universal". Apesar da espera, Jupiter nunca pôs em causa essa missão. "Sabia que estava ligado à música porque ela me prendeu, me agarrou, me orientou. Normalmente, seria como o meu pai, um diplomata. Não sei se feliz ou infelizmente, mas gostava tanto de música que não pensei nisso".

Só em 2004, andavam os realizadores franceses Renaud Barret e Florent de la Tullaye a recolher material para um documentário sobre a música de Kinshasa, Jupiter foi finalmente descoberto. Tranquilamente, disse-lhes nesse primeiro dia: "Sabia que vocês iam chegar, tinha a certeza". O entusiasmo de Barret e Tullaye foi tanto que o filme (La Danse de Jupiter) rapidamente tomou Jupiter como protagonista e os realizadores apressaram-se a encontrar meios para gravar os temas dos Okwess International e de outros grupos na sua vizinhança, como os Staff Benda Bilili.

Amanhã, aos 51 anos, quando Jupiter actuar no FMM em Sines, estará prestes a editar o seu primeiro álbum, Hôtel Univers. No entanto, diz que já cumpriu o seu papel: gerou descendência e impediu que a tradição congolesa ficasse varrida para debaixo do tapete.

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