A escrita comprometida do resistente John Berger

O escritor andou por Avignon como quem se passeia entre amigos. A sua escrita, feita de reflexões que se implicam com uma vida feita em luta pela liberdade, ressoou como palavras de esperança

Há no azul profundo dos olhos de John Berger algo de beckettiano, mesmo se os olhos de Samuel Beckett nos tenham sempre parecido cinzentos. Talvez seja do cabelo, branco da cor do saber, um saber antigo, que vai vertendo para os seus livros, os seus argumentos de filmes, os seus poemas, a sua pintura... Tudo, "e nada disto", faz John Berger, nascido em 1926 em Inglaterra mas há anos a viver "quase isolado" no interior da França. E aqueles olhos a olharem para quem o olha, "a quererem ver", "a perguntarem quem fica".

"Nada disto", diz o homem, "porque nada disto fica". E quando se emociona ao ver público levantar-se para o aplaudir, como se o quisesse ajudar a erguer-se do chão negro da Chapelle des Penitents Blancs, onde Berger, acompanhado pela sua filha, Katya, leu um dos seus livros, Lying down to sleep (2010), uma troca epistolar com a filha, mas precisamente, porque também é, ou foi, crítico de arte (alguns dos seus livros estão editados pela Edições 70 e pela Quasi), um olhar sobre o olhar lançado pelos rostos pintados por Mantegna no quarto dos esposos do Palácio Ducal de Mântua, em Itália, Berger diz: "É com vocês que estas viagens se fazem" .

"Nada disto" porque Berger prefere contemplar quem o contempla a ele, e prefere "ouvir o silêncio dos olhos de quem [me] vê". Berger é "o autor associado" desta edição, trazido pela mão "do amigo, do cúmplice", do filho, diríamos, que adoptou um pai literário, Simon McBurney, encenador e autor, ele sim, "artista associado" desta edição. "Só aceitaria vir se trouxesse John comigo". Vieram os dois para mostrar uma obra que se espalha, ao longo dos últimos 60 anos, por uma série de livros, alguns vencedores de prémios, como G. (Booker Prize de 1972), de filmes, como os que realizou com Alain Tanner, entre eles Jonas que terá 25 anos no ano 2000 (1976), ou de peças de teatro, como As Três Vidas de Lucie Chabrol, que o Teatromosca, companhia sedeada em Sintra, encenou em 2010, a partir de Pig Earth, primeiro tomo de uma trilogia iniciada nos anos 1980. Tem sido, aliás, esta companhia portuguesa que, desde 2002, com Dog Art, a partir de King, a street story (1999), se tem dedicado de forma cuidada a uma linguagem que "tem nas palavras as suas armas, e nos livros "actos políticos"". A companhia encenou em 2011 Europa, a partir de Once in Europe, e Tróia, a partir de Lilac and Flag, os outros dois tomos de Into their labours. E, no próximo ano, apresentará em Londres From A to X, texto de 2008, o mesmo texto que Simon McBurney trouxe até à Cour d"Honneur para uma leitura partilhada com Berger e Juliette Binoche (que, aliás, tem razão quando diz que não sabe ler uma história em público).

From A to X - editado em português pela Civilização, em 2009 - é um livro que conta, "contará?", duvidou, a história de Xavier e Aida, apaixonados, mas ela sem o poder ver na prisão e, por isso, história de dois amantes que não o são. A leitura ao público - que pode ser escutada em podcast no site da rádio France Culture - foi, por isso, antecedida por uma outra leitura, exclusiva para os presos do Centro Presidiário de Avigon-Le Pontet. São cartas que Berger inventou a partir das que leu nos encontros que teve com "os presos de um lado e os presos do outro". Cartas onde "por vezes se escreveram coisas que, depois de reflectir, deveriam ter ficado guardadas".

Berger, na imensidão plácida dos seus olhos azuis e dos seus cabelos brancos, na lentidão dos gestos, como se o tempo tomasse conta da acção, terá certamente vivido e rememorado muito do que disse e escreveu mas preferiria guardar para si. A sua escrita viveu sempre de um desejo de tornar mais real a realidade. "É um poeta, e um escritor, que viveu sempre esse compromisso", explicava-se numa das introduções ao seu trabalho: "É por intermédio da ficção produzida pela sua imaginação que aborda temas que lhe são caros: os princípios de solidariedade e fraternidade para com os "sem poder", os oprimidos, os resistentes, todos os que combatem uma nova ordem mundial imposta e à qual chama de "fascismo económico"". Berger é um resistente. Berger é um combatente. Berger é um lutador. Berger apresenta-se, "assim, de mãos nuas", para falar "dos que não renunciam a ir mais longe". E, num olhar "crítico e generoso", "com uma erudição rara", Berger, que esteve do lado do marxismo humanista, que doou parte do dinheiro que recebeu com o Booker Prize ao movimento radical Panteras Negras, que esteve ao lado do subcomandante Marcos, no México, e dos soldados palestinianos, diz escrever porque no seu "desejo de escrita, habita a necessidade de contar, mais do que de escrever". Assim, como numa das cartas de Aida: "A mãe do condenado dizia que nunca precisou de ler nem escrever porque, no seu tempo, as pessoas falavam daquilo que tinham para contar. Hoje precisam de ler por causa de tudo o que se passa durante o silêncio em que nada é contado".

Berger escreve porque quer contar histórias mesmo que, em todos os encontros que fez em Avignon, fosse com o público, sem a máquina de um espectáculo, mas num encontro, fosse nas leituras aos microfones da rádio, ou então, quando se apagava para deixar que outros lessem os seus textos, a história maior que contasse fosse uma sem palavras escritas, mas de palavras ditas, que desapareciam na memória de cada um.

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