Torne-se perito

Sérgio Aires, um português à frente da Rede Europeia Antipobreza

O momento é crítico. Quem melhor para liderar a Rede Europeia Antipobreza do que um representante de uma "rede nacional periférica, do Sul da Europa, com intervenção da troika"?

É da periferia que olha para o mundo. Gosta de "olhar com olhos de ver". O avô materno é que o ensinou. Era um homem de poucas palavras. Sérgio Aires saía com ele e olhava para onde ele olhava e demorava-se nesse olhar como ele se demorava. A pobreza transbordava para as ruas de Campanhã, no Porto relegado, o das fábricas e dos armazéns, das barracas e dos bairros. "Às vezes, fazia perguntas e ele respondia."

Se não tivesse crescido ali, talvez não se tivesse tornado agora presidente da European Anti-Poverty Network (EAPN), a Rede Europeia Antipobreza, coadjuvado por Letizia Sforza (Itália), Peter Kelly (Reino Unido), Olivier Marguery (França) e Kart Mere (Estónia). Era um "remediado", mas até parecia um rico. Muitos miúdos nem tinham sapatos. "A minha avó ficava aborrecida, sobretudo no Inverno, quando me apanhava a tirar os sapatos à porta."

Aprendeu logo ali a não apontar o dedo a quem vive em situação de pobreza: "A pobreza é um problema estrutural, sistémico, e não um problema individual". Anda há anos a dizer isso em mesas-redondas, colóquios, conferências, congressos, seminários por toda a Europa. "Ainda não fizemos disto cultura."

Só concorreu ao curso de Sociologia na Universidade do Porto. "Queria perceber as coisas." Queria, por exemplo, perceber como se formam perspectivas colectivas sobre este ou aquele fenómeno social. A sua tese de licenciatura incidiu sobre representações sociais da justiça penal. No fim, integrou a equipa contratada pela Rede Europeia Antipobreza/Portugal para estudar as representações sociais e os modos de intervenção sobre pobreza e exclusão social nas organizações não governamentais. Foi a sua primeira tarefa de sociólogo.

Dezoito anos e inúmeros projectos depois, em nome da rede portuguesa, lidera a rede europeia. Portugal venceu as eleições na 23.ª assembleia-geral da organização de 29 países, que decorreu no mês passado, na Noruega. "Era importante, até do ponto de vista simbólico, mas também do ponto de vista prático, que a EAPN fosse liderada por uma rede nacional periférica, do Sul da Europa, com intervenção da troika, com problemas de pobreza e desigualdade", diz.

O momento é crítico até dentro da rede europeia, que Sérgio Aires chama EAPN - a sigla inglesa. O que se passa? "Quando os problemas se agudizam, há tendência para a emergência. Organizações como EAPN - que reclamam intervenções que actuem nas causas, que demoram a ter resultados, que passam por coisas que são consideradas um luxo - têm dificuldade em se impor. Não estou a falar só de sobrevivência financeira, mas também de reconhecimento político. Está na moda dar de comer a quem tem fome. Não está na moda perguntar por que é que as pessoas têm fome."

O retrocesso parece-lhe evidente: "Andámos 21 anos a dizer que pobreza não é não ter o mínimo para sobreviver - a isso chama-se pobreza extrema. Andámos 21 anos a dizer que o combate à pobreza não se faz assistindo". E agora? "Acha-se que a verdadeira pobreza é a pobreza extrema, porque as outras, enfim, são pessoas com dificuldades. Voltámos ao tempo em que se acha que pobreza é o que se vê em África ou na Ásia. Nós até devíamos estar calados porque até temos fartura a mais, não sabemos é geri-la."

Lembra-se do tempo em que "uma sardinha tinha de dar para quatro". Tem 43 anos, embora não pareça. O Portugal da sua infância não é longínquo. Os avós alugavam quartos. "A casa parecia um bordel espanhol." Os pais dos colegas cumpriam longas jornadas de trabalho em fábricas e em armazéns que já fecharam, deixando atrás de si tanta gente atarantada. "Era uma pobreza muito dura. Os que progrediam na escola eram os que tinham alguma capacidade em casa. A maior parte tinha de ajudar os pais. Da minha turma, só quatro transitaram para o preparatório. Isso dá uma ideia do que era o abandono escolar."

Todos à porrada

Saiu de Campanhã ainda miúdo. Tornou-se adulto no Marquês de Pombal, confluência das freguesias de Bonfim, Paranhos e Santo Ildefonso. A zona alta da cidade do Porto, outrora tão apetecível, degradava-se. E Aires viu como as drogas alastraram e como muitas famílias rebentaram por dentro. Perdeu muitos amigos assim.

Não quer voltar àquilo. Quem quer voltar àquilo? "Na minha infância, não havia protecção social. Nem pensões havia! A pobreza hoje é pobreza com protecção social. Esta é a grande questão. Querem acabar com o modelo social europeu? Se não fosse o modelo social europeu, o pouco que resta dele, quem aguentava as consequências desta crise? Quem aguentava meio milhão de desempregados em Portugal? Já estávamos todos à porrada."

Portugal, de resto, parece-lhe exemplar: "O assistencialismo foi privilegiado em todas as políticas, com excepção do momento áureo em que se criaram medidas activas de inclusão social, onde surgiu o Rendimento Social de Inserção, que foi pervertido, transformado numa coisa assistencialista, quando tinha uma dimensão inclusiva".

Não aponta o dedo apenas aos políticos: "Estamos todos muito disponíveis para tratar a pobreza com ajuda imediata. Até quem trabalha nesta área. Quem trabalha nesta área precisa de ver resultados, até para manter alguma sanidade mental. É muito mais compensador ouvir a pessoa dizer "entrei com fome e agora estou porreirinho" do que sair de uma sessão de formação a pensar: "O que é que o gajo aprendeu?"".

O também director do Observatório de Luta Contra a Pobreza na Cidade de Lisboa não quer que se pense que "é um animal", que não está "preocupado com quem tem fome". Está. "A emergência não se pode negligenciar. Pode significar a diferença entre vida e morte". Só que quer mais. "Tínhamos dado os primeiros passos para sair dessa cultura."

Mudar o sistema

Face a isto, qual é o plano para os três anos de liderança europeia que tem pela frente? A nível interno, o regresso à essência - "É preciso fazer um esforço de união das redes nacionais. É um trabalho pesado, difícil. Há redes nacionais que estão praticamente com as portas fechadas". A nível externo, continuar a acompanhar a estratégia europeia "2020" e os planos de cada país, tentando influenciá-los, no sentido do investimento social, isto é, da criação de emprego, do reforço da protecção social, do combate à evasão fiscal.

"A EAPN foi sempre uma organização de sistema", lembra o sociólogo. "Somos actores no diálogo com a Comissão Europeia. Não vivemos à margem nem contra o sistema. Estamos dentro do sistema e é aí que tentamos mudá-lo." Mas como influenciar a Comissão Europeia e os países da União Europeia numa fase como esta? A "Europa 2020" engloba os objectivos em matéria de emprego, inovação, educação, inclusão social e energia/clima a alcançar até 2020. Entre eles, está a intenção de reduzir o número de pobres em 20 milhões. "Não diz quem, como, com quê, quando, com que dinheiro, nada." Cada Estado-membro adoptou os seus próprios objectivos. "Alguns nunca se comprometeram com um número. A certa altura, a Comissão Europeia somou os compromissos de cada um. Já não são 20 milhões, são 12 milhões."

A realidade alterou-se desde que a nova estratégia de crescimento da União Europeia foi aprovada, há dois anos. Parece-lhe que se partiu de dados desactualizados e que nunca se criou consenso. "Nem nos indicadores há acordo." Nem todos os países querem associar a taxa de pobreza aos indicadores de privação material e ao número de agregados com pessoas em situação de desemprego. "É da conjugação desses três elementos que a análise da pobreza se torna mais explosiva nalguns países", explica.

A taxa de pobreza relativa baseia-se nos rendimentos. "Se todos tiverem baixos rendimentos, não há pobres", enfatiza. "A Bulgária tinha uma taxa de pobreza inferior à de Portugal, o que é ridículo. A Roménia também." A privação material dará uma fotografia mais real: parte de nove indicadores, como não ter capacidade para pagar de imediato uma despesa inesperada, ter atrasos nos pagamentos de prestações ou despesas correntes, não poder fazer uma refeição de carne ou de peixe de dois em dois dias, não ter telefone.

Por tudo isto, parece-lhe que chegou a hora da EAPN ter uma agenda própria. Que agenda? "Uma agenda que esteja muito mais aberta a uma outra sociedade civil que entretanto se consolidou - movimentos espontâneos, que têm capacidade de mobilização, de resolver problemas concretos." O novo presidente da EAPN dá o exemplo do desempregado que cria um grupo de discussão em busca de estratégias de emprego: "É um movimento informal que deve ser acolhido numa organização como a nossa. Beneficiará de estar próximo do centro de decisão e nós beneficiaremos de termos dentro um movimento que está, à margem do Estado, à procura de soluções".

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